Introdução
Segundo o modelo cooperativo com intervenção nas crises, os cuidados paliativos implicam, para além dos cuidados ao doente, o apoio e o cuidar da sua família durante o fim de vida, prolongando-se após a morte, nomeadamente no luto.1 Este poderá ser definido como uma “reação característica a uma perda significativa”, em que a perda pode ser, por exemplo, de uma pessoa ou de uma expectativa.1 Esta perda poderá ter características comuns, mas terá sempre uma componente individual, uma vez que cada pessoa é única - “eu sou eu e a minha circunstância”, citação de Ortega e Gasset por Lucília Nunes.2
O cuidador informal pode ser definido como um familiar, amigo ou vizinho que presta apoio diário, não remunerado, a uma pessoa incapaz de realizar as atividades inerentes à vida diária.3 Este papel pode gerar impacto emocional, físico e económico, que poderá levar a uma menor qualidade de vida,3-4 ao aumento de prevalência de depressão e sintomas do foro emocional5-6 e também ao desenvolvimento de complicações no luto.7
Em Portugal foi publicado o Estatuto do Cuidador Informal, em setembro de 2019, reconhecendo o impacto que a prestação de cuidados tem no cuidador e, desta forma, regulando os direitos e os deveres do cuidador e da pessoa cuidada, estabelecendo as respetivas medidas de apoio.8
A maioria dos cuidadores terá um luto «normal», adaptativo, conquanto alguns terão uma resposta não adaptativa, prolongada, que poderá exacerbar problemas físicos, psicológicos e sociais.9-12 Estima-se que o luto complicado/prolongado/patológico afete 10-20% dos enlutados,10,13-15 embora um estudo português, de 2015, tenha identificado, em cuidadores de doentes acompanhados em cuidados paliativos, uma prevalência de luto complicado de 28,8%.3 Este luto complicado/prolongado/patológico é designado na DSM-V como Perturbação do Luto Complexo Persistente.16 Esta distingue-se do luto normal pela presença de reações graves de luto que se mantêm por, pelo menos, doze meses (ou seis meses em crianças) após a morte da pessoa próxima. O transtorno é diagnosticado somente quando persistem níveis graves de resposta de luto pelo período indicado, interferindo na capacidade do indivíduo de funcionar, sendo fatores de risco para o seu desenvolvimento ser do sexo feminino, idoso, com antecedentes psiquiátricos, morte do filho ou cônjuge ou morte do súbita do ente querido, entre outros.17
A evidência parece demonstrar que o apoio no luto deverá ser oferecido a todos os enlutados, sendo que o tipo de apoio deverá ser diferenciado de acordo com as necessidades evidenciadas, nomeadamente perante a presença de fatores de risco para luto complicado ou de sinais de patologia psiquiátrica, tendo sempre presente que os indivíduos de baixo risco poderão não beneficiar de ações mais complexas.12-14 Assim, a maioria dos enlutados apresentará necessidades de nível baixo a intermédio, estando indicado o apoio não especializado,18 pelo que outros profissionais de saúde, como os médicos de família e os enfermeiros, serão fundamentais para o assegurar.12 O documento conjunto da European Association for Palliative Care e da WONCA sustenta o apoio aos cuidadores/familiares e prestação de apoio no luto como uma das áreas de intervenção dos médicos de família.19
Em Portugal é desconhecido qual o apoio prestado pelos médicos de família aos cuidadores em luto, bem como o modo como estes utilizam os cuidados de saúde, a incidência de problemas de saúde e o recurso à terapêutica farmacológica após a morte do doente.
Com este estudo pretende-se, assim, caracterizar os cuidadores nos doze meses após a morte do doente de quem cuidavam, no que se refere a características sociodemográficas, acompanhamento clínico no luto, problemas de saúde e terapêutica farmacológica.
Métodos
Realizou-se um estudo observacional, retrospetivo e analítico, entre novembro de 2018 e agosto de 2019, em dois Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS) da Administração Regional de Saúde (ARS) do Norte: Grande Porto VII - Gaia e Grande Porto VIII - Espinho/Gaia.
A população em estudo era constituída pelos cuidadores dos doentes falecidos no ano de 2017, identificados como tal pelo médico de família dos últimos. Foram incluídos cuidadores com, pelo menos, 18 anos de idade, que se encontrassem inscritos, tal como o doente, num dos ACeS, na mesma unidade e com médico de família atribuído. Definiram-se como critérios de exclusão: cuidadores de doentes falecidos que não tenham tido contacto (presencial e/ou não presencial) com o médico de família nos doze meses que antecederam a sua morte ou cujo médico de família tenha sido atribuído por um período inferior a doze meses prévios à morte; cuidadores sem contacto (presencial e/ou não presencial) com médico de família nos três anos prévios à morte do doente ou sem consulta médica presencial nos doze meses após; cuidador principal desconhecido; médico de família indisponível.
Realizou-se um censo, com contagem exaustiva, identificando todos os óbitos ocorridos em 2017 em cada um dos ACeS envolvidos.20 Após este processo, contactaram-se, via email, todos os coordenadores das Unidades Funcionais - Unidade de Saúde Familiar (USF) e Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP) -, endereçando um convite à participação de todos os médicos de família. Aos que aceitaram, após identificação dos óbitos na lista de utentes que lhes estava atribuída, solicitou-se a identificação do cuidador principal do doente falecido e o cumprimento dos pressupostos apresentados no fluxograma (Figura 1).
Nos casos em que se aplicavam os critérios de inclusão e nenhum dos critérios de exclusão obtiveram-se os seguintes dados: caracterização do cuidador; caracterização do doente falecido; acompanhamento clínico, problemas de saúde identificados e terapêutica farmacológica, de novo ou com dosagem alterada, do cuidador nos doze meses após a morte do doente.
Os problemas de saúde foram definidos de acordo com a codificação da Classificação Internacional dos Cuidados de Saúde Primários - 2ª edição (ICPC-2).21
Construiu-se uma base de dados e realizou-se o tratamento dos dados através do programa informático Statistical Package for the Social Sciences®, v. 26.
Avaliou-se a normalidade da distribuição da amostra nas variáveis quantitativas através do teste Kolmogorov-Smirnov.
Procedeu-se a uma análise descritiva, utilizando para as variáveis qualitativas as frequências absolutas e relativas e para as variáveis quantitativas a mediana, mínimo e máximo, quando a distribuição não cumpria os princípios da normalidade. Na análise estatística inferencial foram utilizados os testes de hipóteses χ2 para as variáveis qualitativas e Mann-Whitney e Kruskal-Wallis para as variáveis quantitativas sem distribuição normal.
Definiu-se um nível de significância de 0,05. As variáveis que demonstraram um nível de significância menor ou igual a 0,08 foram analisadas num modelo de regressão logística.
As regras de conduta ética e de boas práticas foram sempre acauteladas para que fossem cumpridos os preceitos da Declaração de Helsínquia.22
Obtiveram-se pareceres favoráveis dos Conselhos Clínicos e de Saúde do ACeS Gaia e do ACeS Espinho/Gaia, formalizados pelos seus Presidentes do Conselho Clínico e da Saúde, e da Comissão de Ética para a Saúde da ARS do Norte.
Resultados
Em 2017, os ACeS Gaia e Espinho/Gaia eram constituídos por 12 e 23 unidades de saúde (respetivamente, sete - USF modelo A, 13 - USF modelo B, 15 - UCSP), que abrangiam uma população residente de 329.561 habitantes, representando cerca de 9,2% da população da região Norte, em 2016.23
Faleceram 2.653 indivíduos inscritos nestes ACeS no ano de 2017; 19,3% dos óbitos ocorreram em doentes inscritos nas USF modelo A, 53,0% em USF modelo B e 27,7% em UCSP.
Aceitaram participar 61 médicos de família, que tinham ao seu cuidado 844 doentes falecidos em 2017 (31,8% do total de óbitos ocorridos nos ACeS estudados).
Considerando os utentes dos médicos de família que participaram no estudo, cerca de 80,5% (n=679) dos doentes que faleceram tiveram algum tipo de contacto com o seu médico de família nos 12 meses anteriores à sua morte (87,5% nas UCSP; 75,4% nas USF modelo A; 81,4% nas USF modelo B). Não existiu diferença estatisticamente significativa entre as diferentes tipologias de unidade funcional [USF modelo B vs UCSP (p=0,336); USF modelo A vs UCSP (p=0,100); USF modelo A vs USF Modelo B (p=0,075)].
Os médicos de família participantes identificaram 349 cuidadores, o que corresponde a 51,4% dos doentes com contacto com o médico de família nos últimos 12 meses de vida.
Quarenta e um cuidadores não tiveram contacto com o seu médico de família nos três anos prévios à morte ou consulta presencial nos 12 meses após, pelo que foram excluídos, tendo-se obtido 308 indivíduos para inclusão no estudo. Este valor corresponde a cuidadores de 11,6% dos óbitos ocorridos nos dois ACeS.
Nenhuma das variáveis contínuas apresentou distribuição normal.
A maioria dos cuidadores estava inscrito no ACeS Espinho/Gaia (63,0%) e em unidades de saúde com tipologia USF modelo B (77,3%) (Tabela 1).
A mediana da idade dos cuidadores foi de 66,5 anos, sendo que 79,2% eram mulheres, a maioria tinha como estado civil o de viúvo (58,4%), 40% cumpriram quatro a 12 anos de escolaridade, 62% eram profissionalmente inativos, 39% viviam sozinhos e 59,4% não eram cuidadores únicos. No que se refere ao parentesco, 56,5% eram cônjuges e 33,8% filhos do doente falecido. A mediana de fatores de risco para Perturbação de Luto Prolongado (PLP)17 foi de três; a mediana do tempo de prestação de funções foi de 30 meses (43,3% dos cuidadores prestou cuidados durante menos de um ano e 24,7% por mais de três anos) e em 71,8% das situações o local de prestação de cuidados era a residência do cuidador e do doente (Tabela 1).
Dos doentes falecidos 57,5% eram homens, sendo que a mediana da idade foi de 81,0 anos. Em 31,8% dos casos a causa de morte foi doença oncológica e em 30,5% insuficiência de órgãos, desconhecendo-se a causa de morte do doente em 15,3% das situações (Tabela 2).
Relativamente ao acompanhamento clínico ao cuidador nos 12 meses após a morte do doente, 93,2% dos cuidadores foram acompanhados apenas pelo seu médico de família. Treze (4,2%) foram acompanhados em psiquiatria e 11 (3,5%) em psicologia. Cinco cuidadores foram simultaneamente acompanhados pelo médico de família, em psiquiatria e em psicologia (1,6%). A mediana do número de consultas presenciais na unidade de saúde, no período analisado, foi de quatro. Cerca de 95% dos cuidadores que tiveram consulta recorreram a consulta programada e 56,8% a consulta do próprio dia; 22 (7,1%) utilizaram as três tipologias de cuidados: consulta programada, consulta do próprio dia e serviço de urgência (Tabela 3).
Cerca de 7% dos cuidadores estiveram internados nos 12 meses após o falecimento do doente; em 63,6% das situações o motivo de internamento foi por causa cirúrgica.
Em nenhum cuidador existiu aplicação de instrumento de avaliação de PLP ou uso de instrumento de apoio ao luto (carta, folheto ou outro). Em 82,5% dos cuidadores não foi efetuada nenhuma referenciação e em 15,3% ocorreu referenciação para uma especialidade médica; em dois (0,6%) casos a especialidade médica para a qual se referenciou o cuidador foi a psiquiatria.
Foram identificados 335 novos problemas de saúde em 58,1% dos cuidadores; 11% dos problemas codificados pertenciam ao Capítulo P-Psicológico da ICPC-2, afetando 8,1% dos cuidadores (Tabela 4).
No que se refere aos fármacos prescritos, em 58,4% dos cuidadores ocorreu a prescrição de um novo fármaco, com uma mediana de 1,0 fármacos por utente. Foram prescritos psicotrópicos de novo a 28,6% dos cuidadores e, pelo menos, um antidepressivo a 15,6%. Em cerca de 14% dos indivíduos existia registo de prescrição de, pelo menos, um fármaco ansiolítico de novo.
Aproximadamente 18% dos cuidadores tiveram a dosagem dos fármacos habitualmente prescritos alterada; em 8,4% das situações a alteração foi relativa a um fármaco psicotrópico.
Em 66,2% dos cuidadores ocorreu a prescrição de um novo fármaco e/ou alteração de dosagem. Os fármacos psicotrópicos foram os visados em 35,1% dos cuidadores, sendo o subgrupo mais representado o dos antidepressivos (18,5%).
Analisou-se a relação do acompanhamento clínico, dos problemas de saúde e da terapêutica farmacológica do cuidador nos doze meses após a morte do doente, com as características do cuidador e do doente, inicialmente de forma individual e, posteriormente, recorrendo a um modelo de regressão logística (Tabela 5).
Embora seja um parâmetro de acompanhamento clínico e não de caracterização do cuidador ou do doente, incluiu-se a variável número de consultas na análise - por se considerar que poderá representar um viés de confundimento - de forma a eliminar a sua potencial influência na relação entre as restantes variáveis.
A existência de, pelo menos, uma consulta programada nos doze meses após a morte do doente associava-se a quatro variáveis, mas após aplicação do modelo de regressão logística apenas a idade do cuidador e o número de consultas mantiveram uma relação estatisticamente significativa (p=0,034; p<0,001). Os cuidadores mais velhos e com maior número de consultas apresentavam maior probabilidade de ter tido consulta programada.
Também relativamente à consulta do próprio dia, apenas as variáveis idade do cuidador e número de consultas apresentaram relação estatisticamente significativa (p=0,018; p<0,001). Utentes mais novos e com mais consultas apresentavam maior probabilidade de ter tido consulta do próprio dia.
Quando considerado o recurso ao serviço de urgência, as três variáveis (tipo de família, número de fatores de risco para PLP, número de consultas) que demonstraram relação significativa na análise individual mantiveram esse efeito após aplicação do modelo de regressão logística (p=0,033; p=0,020; p=0,001). Os cuidadores inseridos em famílias alargadas e de tipologia «outras» tinham maior probabilidade de ter recorrido ao serviço de urgência, comparativamente com os inseridos em famílias monoparentais. Utentes com mais fatores de risco para PLP e maior número de consultas também apresentavam maior probabilidade de ter recorrido a este serviço.
Era mais provável ter maior número de consultas apresentando menor nível de escolaridade (p=0,040); mais nenhuma variável estudada mostrou associação, estatisticamente significativa ou no limiar da significância, com o número de consultas.
Menor tempo de prestação de cuidados e maior número de consultas associavam-se à codificação de problemas de saúde de novo nos doze meses após a morte do doente, mantendo-se uma relação estatisticamente significativa quando ambas as variáveis foram consideradas num modelo de regressão logística (p=0,020; p<0,001). Considerando os problemas de saúde apenas do capítulo P-Psicológico do ICPC-2 foi demonstrada associação significativa com o número de fatores de risco para PLP (p=0,029), havendo maior probabilidade de haver codificação de um problema deste capítulo nos utentes com mais fatores de risco.
Considerando a probabilidade de referenciação do cuidador a especialidades médicas ou outras, esta era tanto maior quanto menor a escolaridade ou quanto maior o número de consultas realizado (p=0,027; p=0,001).
Encontrou-se maior probabilidade de internamento no ano após a morte do doente quando o cuidador do doente não era único (p=0,031).
Em termos de farmacoterapia, após análise conjunta, apenas o sexo masculino do doente falecido e o maior número de consultas se associou a maior probabilidade de prescrição de, pelo menos, um fármaco novo (p=0,001; p<0,001).
Atendendo apenas aos fármacos psicotrópicos, a probabilidade de prescrição de novo era maior nos enlutados que cuidaram de doentes do sexo masculino e mais novos (p=0,023; p=0,012).
Em termos de alteração de dosagem de fármacos, apenas o maior número de consultas mostrou associação com maior probabilidade de alteração de dose (p=0,021). Analisando os fármacos psicotrópicos de forma isolada, quanto maior o número de fatores de risco para PLP, maior a probabilidade de alteração de dose (p=0,016).
Discussão
Estão descritos na literatura os vários benefícios do envolvimento dos médicos de família na prestação de cuidados em fim de vida, nomeadamente melhor qualidade dos cuidados prestados,24 maior satisfação dos utentes25 e maior probabilidade de morte no domicílio.26-28 Cerca de 80,5% dos doentes que faleceram tiveram algum tipo de contacto com o seu médico de família nos doze meses anteriores à sua morte, tendo sido mais frequente este contacto nos utentes inscritos nas UCSP, sem diferença estatisticamente significativa quando comparado com as USF modelo A e as USF modelo B. Realça-se o facto dos grupos comparados serem assimétricos, o que poderá não ter permitido verificar a existência de diferenças com significado estatístico entre as unidades funcionais (UCSP - 35 óbitos, USF modelo B - 509).
Foram incluídos para análise 308 indivíduos, o que corresponde a cuidadores de 11,6% dos óbitos ocorridos nos dois ACeS. A amostra poderá ser considerada como baixa, podendo ter contribuído para este valor a aplicação dos critérios de exclusão, mais concretamente o facto de cerca de 20% dos doentes não terem tido contacto com o seu médico de família no último ano de vida, alguns médicos estarem indisponíveis para a colheita de dados ou por não lhes ser possível identificar o cuidador. A taxa de resposta foi maior nas USF modelo B (11 das 13) e menor nas UCSP (três das 15). Este facto poderá estar relacionado com o próprio modelo de organização e filosofia de trabalho, mais concretamente por nas USF modelo B existirem estruturas específicas que atuam como interlocutoras com autores de trabalhos de investigação, maior sensibilização decorrente de incentivos e prática mais frequente de atividades de investigação na própria unidade.
Os cuidadores tinham uma mediana de 66,5 anos de idade, sendo maioritariamente do sexo feminino (79,2%), viúvos ou casados/união de facto (78,5%), com quatro a doze anos de escolaridade (40,3%), inativos profissionalmente (62,0%), cônjuges (56,5%) ou filhos (33,8%) do doente, pertencentes a família unitária (39,0%) ou nuclear (19,2%), não sendo cuidadores únicos (59,4%) e residindo conjuntamente com o doente (71,8%). Os dados obtidos são sobreponíveis aos descritos a nível nacional, em diferentes regiões e diferentes contextos de prestação de cuidados (Norte,29 Centro,30 Lisboa e Vale do Tejo31 e do Algarve32), e a nível internacional.33-35
No que se refere à análise estatística não foi encontrada diferença entre sexos, provavelmente por baixa representatividade do sexo masculino.
A mediana do tempo de prestação de funções como cuidador foi de 30 meses, sendo que 43,3% cuidou menos de um ano e 24,7% mais de três anos. Contrariamente aos estudos nacionais, em que os cuidadores na sua maioria afirmavam cuidar há mais de dois anos,29,32,36 no presente trabalho o que se verificou foi que a maioria cuidava há menos de dois anos (64,0%). Esta diferença estará relacionada com diferenças metodológicas entre os estudos citados e o atual, uma vez que, nos primeiros, a quantificação do tempo de prestação de cuidados foi obtida por autorrelato do cuidador, ao invés do que aconteceu neste estudo, no qual esta quantificação foi fornecida por um profissional de saúde (possível viés de memória e registo).
Verificou-se que um menor tempo de prestação de funções estava associado a uma maior probabilidade de codificação de problemas de saúde de novo nos doze meses após a morte do doente (p=0,020). Esta associação poderá ser explicada pelo facto de, numa fase inicial de prestação de cuidados a um doente, surgirem vários fatores (questões clínicas, sociais, familiares e laborais) que podem atuar como agentes de stress no cuidador e levar a problemas de saúde, podendo presumir-se que cuidadores que prestam cuidados durante mais tempo poderão ter, mais frequentemente, problemas de saúde codificados previamente à morte do doente. Por outro lado, o tipo de trajetória da doença poderá ter um contributo, uma vez que a imprevisibilidade da morte pode condicionar uma menor preparação para a mesma e dificultar o processo de luto do cuidador, aumentando a probabilidade de diagnóstico de novos problemas de saúde pós-morte, em situações de menor duração da prestação de cuidados.
A nenhum cuidador foram aplicados instrumentos de avaliação de PLP ou de apoio ao luto, apesar de a mediana de fatores de risco para PLP apresentada pelos participantes ter sido de três, da prevalência de luto prolongado ser de 10 a 20% nos enlutados,10,13-15 e de, em Portugal, se ter identificado uma prevalência de luto complicado de 28,8%.3
Relativamente aos doentes falecidos, 57,5% eram homens, a mediana da idade foi de 81,0 anos e a média de 77,8 anos; em 31,8% a causa de morte foi doença oncológica e em 30,5% foi insuficiência de órgão. A nível nacional, em 2017, a idade média ao óbito foi de 78,2 anos, a principal causa de morte foram as doenças do aparelho circulatório (29,4%) e os tumores malignos constituíram 25% das causas de óbito; existiu um discreto predomínio dos homens (50,3%).37 Analisando os dados apresentados destaca-se a inversão das causas de morte. Neste estudo a principal causa de morte foi a doença oncológica. Vários fatores podem justificar esta diferença, nomeadamente o facto de, em 15,3% dos doentes falecidos, a causa ser desconhecida. Tradicionalmente a doença oncológica apresenta trajetória de declínio mais previsível com limitação funcional mais acentuada38 e que se traduz, mais frequentemente, em maiores necessidades, quer clínicas quer sociais, tanto do doente como do cuidador e, por isso, poderão recorrer de forma mais reiterada ao médico de família, facilitando a identificação do cuidador pelo profissional (e aumentando a representatividade deste grupo neste estudo). Esta previsibilidade da trajetória da doença é menos comum nas situações de insuficiência de órgão ou doença neurodegenerativa, dificultando a identificação de cuidador. As doenças cardiovasculares poderão estar subrepresentadas neste estudo por frequentemente serem causa de morte súbita, não existindo cuidador associado.
No que se refere ao acompanhamento clínico dos cuidadores no primeiro ano após a morte do doente, a maioria foi acompanhada só pelo seu médico de família. A baixa taxa de acompanhamento em psiquiatria e psicologia poderá estar subquantificada, uma vez que o cuidador poderá ter recorrido a entidades privadas para obtenção deste tipo de cuidados, não tendo informado o médico de família ou não tendo este registado esse acompanhamento. O recurso aos serviços de saúde privados justifica-se pelo tempo de espera para primeira consulta de psiquiatria no hospital de referenciação - 122 dias em média39 - e para a primeira consulta de psicologia nos ACeS. Relativamente a este último aspeto existiam, nos dois ACeS, um psicólogo para cada 50.000 inscritos quando o recomendado é de um para cada 5.000 inscritos.40 A mediana do número de consultas com o médico de família foi de quatro. Cerca de 95,1% dos cuidadores que tiveram consulta recorreram a consulta programada e 56,8% a consulta do próprio dia. Destaca-se o facto de a maioria dos internamentos ser por causa cirúrgica eletiva, possivelmente traduzindo a necessidade dos cuidadores adiarem intervenções clínicas, por exemplo procedimentos cirúrgicos. Em 82,5% dos cuidadores não foi efetuada nenhuma referenciação e em 15,3% ocorreu referenciação para uma especialidade médica. Sobressai a elevada taxa de referenciação neste primeiro ano após a morte do doente quando comparada com a literatura nacional - 10,1%41 -, o que poderá refletir não só a indisponibilidade do cuidador para cuidar dos seus próprios problemas de saúde, como acima referido, mas também o desenvolvimento de novos problemas de saúde. Quanto a este último aspeto foram identificados 335 novos problemas de saúde em 58,1% dos cuidadores, sendo que 11,0% dos problemas eram do foro psicológico.
Estatisticamente verificou-se que o sexo masculino do doente falecido se associou a maior probabilidade de prescrição de, pelo menos, um fármaco novo ao cuidador (p<0,001); atendendo apenas aos fármacos psicotrópicos, a probabilidade de prescrição de novo era maior nos enlutados que cuidaram de doentes do sexo masculino e mais novos (p=0,023; p=0,012). Apenas o maior número de consultas mostrou associação com maior probabilidade de alteração de dose de qualquer classe de fármaco (p=0,021). De acordo com estes resultados, aparentemente terá um impacto diferente e no sentido negativo a circunstância de o doente ser homem e mais novo. O papel social do homem nas famílias portuguesas e o facto de ainda representar a principal fonte de rendimentos poderá justificar esta associação. A idade jovem do doente falecido constitui um fator de risco para PLP, como consta da checklist apresentada na Norma.17 Outros fatores de risco descritos na Norma e prevalentes nesta amostra, como cuidador do sexo feminino e cônjuge do falecido, não revelaram associação estatisticamente significativa com as variáveis em estudo.
No que se refere à temática central do estudo - a abordagem do luto ao nível dos cuidados de saúde primários -, pode inferir-se que são desconhecidas ou inexistentes as intervenções realizadas pelos médicos de família no processo de luto (aplicação de instrumentos de avaliação de risco no luto e/ou fornecimento de ferramentas de apoio ao luto) e, aparentemente, não existiu uma abordagem por níveis aos enlutados. O luto, no seu primeiro ano, foi «medicalizado» (em 35,1% dos cuidadores ocorreu introdução e/ou alteração de dose de fármacos psicotrópicos), não tendo ocorrido referenciação, na mesma proporção, para psicologia e/ou psiquiatria. Estes dados reforçam os apresentados no relatório do Conselho Nacional de Saúde (Sem mais tempo a perder: saúde mental em Portugal - Um desafio para a próxima década). Portugal regista a 5ª posição na OCDE no consumo de medicamentos antidepressivos e um consumo «preocupante» de ansiolíticos.42 A introdução de fármacos nesta fase de vida, particularmente vulnerável, sem recurso a outras medidas de apoio/terapêuticas, poderá contribuir para este problema nacional. Esta abordagem poderá refletir, por um lado, a desadequação do número de profissionais de psicologia nos cuidados de saúde primários e, por outro, a formação insuficiente dos médicos de família para a abordagem e orientação do processo de luto, o tempo de consulta desadequado ao nível dos cuidados de saúde primários para a prestação de cuidados, o número excessivo de utentes inscritos por médico de família, tornando-se, assim, mais rápido medicar do que efetuar uma intervenção global e multidisciplinar.
Como pontos fortes deste trabalho destacam-se o tema inovador e pertinente, a inexistência de estudos semelhantes em Portugal, o tamanho amostral obtido e o processo de colheita e análise de dados, uma vez que este foi realizado por duas das autoras, de forma independente, preservando a consistência interna dos resultados.
Por outro lado, identificam-se, como limitações, a baixa taxa de resposta e o possível viés de seleção, de memória e de registo na obtenção dos dados. Existiram grupos entre os quais não foi possível estabelecer comparações por tamanho amostral assimétrico, podendo, assim, existir associações estatisticamente significativas que não foram demonstradas.
Conclusão
Este trabalho possibilitou caracterizar os cuidadores, do ponto de vista sociodemográfico e clínico, nos doze meses que se sucederam à morte do doente.
Esta caracterização permite refletir sobre os diferentes aspetos da vulnerabilidade do cuidador, da procura de cuidados em determinada fase/etapa da sua vida ou/e em situação de crise familiar e da resposta que lhe é proporcionada pelo seu médico de família. Atendendo ao papel essencial deste no apoio no luto poderá ser útil o desenvolvimento de ações formativas, a elaboração de manuais de boas práticas sobre apoio no luto ao nível dos cuidados de saúde primários, bem como a definição de indicadores de processo e resultado na área do luto.
Permanecem desconhecidos muitos aspetos, que deverão ser alvo de outros estudos, como: perceber se os médicos de família portugueses identificam os doentes em fim de vida, se, nessa circunstância, adequam os seus cuidados ao doente e ao cuidador e que tipo de apoios/recursos de saúde e comunitários são disponibilizados ao cuidador, previamente e após a morte do doente.