Introdução
A diabetes mellitus tipo 2 (DM2) é um problema de saúde pública cuja prevalência nacional foi estimada em 13,6%1 em 2018 e é uma patologia frequentemente observada nos cuidados de saúde primários (CSP). Representa elevados custos para os sistemas de saúde, pelo que as recomendações nacionais ou internacionais realçam a importância de um bom controlo glicémico. A DM2 foi definida como um problema de saúde prioritário no Plano Local de Saúde de Almada-Seixal em 2017-2020.2
Atualmente, as recomendações sugerem um controlo metabólico adequado, usando o valor de hemoglobina glicada A1c (HbA1c), que pode ter como valor-alvo 6,5% a 8%.3 A insulina é considerada uma opção no tratamento da DM2 em doentes que apresentem falência no controlo glicémico após a introdução de dois ou três antidiabéticos orais, incluindo metformina em dose máxima tolerada, e medidas não farmacológicas otimizadas, ou mesmo nos doentes recém-diagnosticados, marcadamente sintomáticos e/ou com glicemia ou HbA1c elevadas.4
Contudo, apesar destas estratégias bem definidas, muitos indivíduos continuam a não atingir o controlo metabólico desejado.5 Este fenómeno é de origem complexa e entre as várias causas inclui-se a inércia terapêutica dos médicos.6 A inércia terapêutica é definida como a falha do profissional de saúde em iniciar ou intensificar a insulina num doente cujo valor de HbA1c não é ajustado às suas características.7
As unidades funcionais do Agrupamento de Centros de Saúde (ACeS) de Almada-Seixal definiram, em 2014, a proporção de utentes com DM2 com o último valor de HbA1c inferior ou igual a 8% como indicador na sua carteira básica de serviços.8 Em 2014, na região de Lisboa e Vale do Tejo, a proporção de diabéticos com um valor de HbA1c inferior ou igual a 8% foi de 36,4% nas Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP), 59% nas Unidades de Saúde Familiar (USF) de modelo A e 72,4% nas USF de modelo B, situando-se o valor global da região em 47,2%, valores estes inferiores ao que seria desejável.9 Em dezembro de 2018, no ACeS Almada-Seixal, esta proporção era de 56,7%.10
A probabilidade de ocorrer inércia terapêutica é três vezes superior em médicos de clínica geral comparativamente a médicos especialistas.11 Também os médicos em formação parecem ter uma probabilidade de reconhecer causas de inércia terapêutica inferior à dos médicos especialistas.12 Os médicos especialistas podem também reconhecer menos causas de inércia terapêutica devido à sua maior experiência clínica, confiança e maior número de doentes.13-18 Este fenómeno tem sido de difícil estudo pela escassez de dados no contexto da relação médico-doente.19 Definir fatores específicos associados à inércia terapêutica permite corrigi-los e desenvolver outros indicadores de qualidade para um melhor controlo da doença nos CSP.20
Considerando o facto de esta área do conhecimento ser ainda pouco estudada a nível nacional e internacional pretende-se com este estudo, o primeiro em Portugal, responder à pergunta: Quais as barreiras e os fatores específicos associados à inércia terapêutica, nomeadamente à iniciação de insulina, percecionados pelos médicos especialistas e internos de medicina geral e familiar (MGF) ou não-especialistas clínicos do ACeS Almada-Seixal em 2019?
Material e métodos
Desenho do estudo e população-alvo
Trata-se de um estudo quantitativo, observacional, transversal e analítico. Foram incluídos os médicos especialistas, internos dos 3.o e 4.o anos de MGF e não-especialistas clínicos das UCSP ou USF do ACeS Almada-Seixal. O estudo foi aprovado pela direção clínica e executiva do ACeS e pelo Conselho Diretivo da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, sob parecer favorável da sua Comissão de Ética para a Saúde no dia 5 de julho de 2019. No ACeS Almada-Seixal existem 22 unidades funcionais que contemplam quatro UCSP, quatro USF modelo A e dezasseis USF modelo B, onde trabalham no total 285 médicos.10 Destes, determinou-se estarem elegíveis 203 médicos com a seguinte distribuição: 39 médicos nas UCSP, 38 na USF modelo A e 126 nas USF modelo B.
Instrumentos de avaliação
Perante a inexistência de um questionário prévio foi desenvolvido um questionário com base nos fatores identificados na literatura. Esta pesquisa foi feita através da PubMed, usando os termos MeSH diabetes mellitus, type 2 e inertia para artigos publicados entre 2007 e 2017. De um total de 142 artigos consultados foram selecionados 21, através da leitura do resumo, cuja temática se relacionava com a presente investigação. Os fatores identificados como causa de inércia terapêutica no uso da insulina foram compilados em 30 questões finais baseadas em 21 artigos12-33 (Tabela 1). Foi pedido aos participantes que indicassem, para cada fator, em que medida este constituía uma barreira à decisão de iniciar insulinoterapia, segundo uma escala tipo Likert de 1 a 5 (1. Discordo totalmente; 2. Discordo; 3. Não concordo, nem discordo; 4. Concordo; 5. Concordo totalmente). O questionário foi submetido a um pré-teste, tendo sido apresentado a especialistas e internos de MGF exteriores ao ACeS, com o objetivo de cronometrar o tempo de preenchimento, verificar a clareza das questões colocadas e recolher sugestões de melhoria das mesmas. As sugestões resultantes do pré-teste foram incorporadas no modelo definitivo do questionário. Foram ainda recolhidos elementos relativos ao género, à idade, categoria profissional, tipo de unidade funcional, número médio de doentes observados semanalmente, número médio de doentes com DM2 observados semanalmente e número médio de horas de trabalho semanal.
Os questionários foram colocados em envelopes sem identificação e foram entregues presencialmente pelos investigadores a cada coordenador das unidades funcionais, que ficou responsável por distribuí-los aos médicos elegíveis da sua unidade. Estes foram recolhidos posteriormente, durante um período de três meses, entre outubro e dezembro de 2019. O consentimento informado foi entregue e considerado tácito com o ato de preenchimento. Foram excluídos os participantes cujos questionários apresentavam preenchimento incompleto para os campos de informação demográfica e laboral.
Métodos estatísticos
Foi feita análise descritiva através do cálculo de medidas de localização central (média/mediana) e de dispersão (desvio-padrão/amplitude interquartil) para as variáveis quantitativas, conforme apropriado. Para as variáveis qualitativas foram calculadas frequências absoluta (n) e relativa (%). Para estudar a associação entre o nível de discordância/concordância para cada uma das questões e as diferentes variáveis independentes estimaram-se as Odds Ratio (OR) ajustadas para sexo e idade, usando a regressão logística ordinal.34 Foi determinado o valor p para avaliar a associação entre cada variável independente em estudo e nível de discordância/concordância, fixando o nível de significância em 5%. Foi definida como variável dependente a pontuação de cada afirmação e, como variáveis independentes, a idade, sexo, categoria profissional, unidade funcional, média de doentes observados semanalmente, média de utentes com DM2 observados semanalmente e horário semanal. Dado o reduzido número de participantes nas categorias de médico de clínica geral e médico especialista ainda não integrado na carreira, para o estudo estatístico estes foram incluídos na categoria assistente. O pacote estatístico utilizado foi o IBM SPSS Statistics v. 24 e o software R (v. 1.1.463).
Resultados
Dos 203 questionários entregues nas 22 unidades funcionais do ACeS Almada-Seixal foram devolvidos 151, o que representou uma taxa de resposta de 74% com a seguinte distribuição: 131 com preenchimento completo (87%), 15 com preenchimento incompleto (10%) e cinco sem preenchimento (3%). A taxa de resposta foi de 56%, 79% e 76% para as UCSP, USF modelo A e modelo B, respetivamente.
As características sociodemográficas dos participantes estão descritas na Tabela 2. A idade média dos participantes foi de 44 anos, tendo a maioria menos de 40 anos (54%). Cerca de 75% dos participantes eram do sexo feminino. A maioria pertencia à categoria profissional de assistente graduado (32%) e assistente (38%), seguido da categoria de médico interno (17%). A maioria dos participantes trabalhavam em USF modelo B (64%).
Da análise das Figuras 1 e 2 verificou-se que a proporção de doentes com DM2 e o tempo despendido com estes doentes foi semelhante nas USF modelo A e B. Nas UCSP a variabilidade foi maior e o número de DM2 consultados e o tempo despendido foram tendencialmente mais elevados para a maioria dos médicos. Os médicos na categoria de médico interno foram os que consultaram o maior número de utentes e os que despendiam mais tempo com doentes com DM2, seguidos dos assistentes graduados e assistentes. O estudo dos outliers das Figuras 1 e 2, relativos às USF modelo B, não revelou características em comum.
A Figura 3 apresenta o nível de concordância dos participantes com os 30 fatores que limitam o início de insulinoterapia. Constata-se que as cinco afirmações que geraram maior concordância como barreiras ao início de insulinoterapia foram, por ordem decrescente: a perceção do médico sobre o impacto positivo da insulinoterapia no prognóstico do doente, a má relação médico-doente, a noção de que os doentes não têm a capacidade de aprender os procedimentos técnicos necessários, as características socioeconómicas dos utentes e o facto de o médico ter uma equipa multidisciplinar com elementos suficientes para gerir os doentes insulino-tratados. Contrariamente, as afirmações que geraram maior discordância foram: dúvidas em relação ao valor alvo de HbA1c individualizado a cada doente, custo da insulinoterapia para o SNS, receio de que a proposta de insulinoterapia prejudique a relação médico-doente, perceção do médico de que a insulinoterapia é uma competência do endocrinologista e preferência do médico em adiar a insulinoterapia até que surjam as primeiras complicações da doença.
Estudo das variáveis
Idade
Com o aumento da idade, os profissionais tendencialmente discordaram com as afirmações de que a decisão de iniciar insulina é influenciada pelo medo de agulhas do utente (OR=0,950, p<0,001), por este a encarar como um castigo (OR=0,973, p=0,026) ou como uma ameaça à sua qualidade de vida (OR=0,975, p=0,035) e, finalmente, pela perspetiva de má adesão ao tratamento e consultas por parte do utente (OR=0,972, p=0,018). No mesmo sentido, os profissionais tendencialmente discordaram que a presença de comorbilidades (OR=0,955, p=<0,001), polimedicação (OR=0,955, p=<0,001) ou a má relação com o doente (OR=0,934, p=<0,001) influenciassem esta decisão. A existência de dúvidas da aplicabilidade das recomendações sobre DM2 (OR=0,967, p=0,008) e o valor alvo HbA1C (OR=0,972, p=0,032) pareceram contribuir para a inércia terapêutica à medida que diminuía a idade do profissional. Por outro lado, à medida que a idade aumentava, o profissional tendia a concordar que a competência de iniciar insulinoterapia cabe ao endocrinologista (OR=1,046, p=0,003) e que a maioria dos utentes vai precisar desta terapêutica, independentemente das medidas de estilo de vida e farmacológicas adotadas (OR=1,030, p=0,016).
Categoria profissional
À medida que a categoria profissional aumentava, os clínicos tendencialmente discordaram que a falta de consenso na literatura (OR=0,127 nos assistentes graduados seniores, p=0,032), a possibilidade de prejudicar a relação médico-doente (OR=0,055 nos assistentes graduados seniores, p=0,009) e a pouca experiência na gestão da insulinoterapia fossem barreiras (OR=0,039 nos assistentes graduados seniores, p<0,001). Também discordaram que o início da insulinoterapia deva ser adiado até ser absolutamente essencial (OR=0,145 nos assistentes graduados seniores, p=0,044). Os médicos assistentes, os especialistas não integrados, os clínicos gerais e os assistentes graduados tendencialmente discordaram que a dificuldade em adaptar as recomendações à prática clínica (OR=0,183 nos assistentes graduados, p<0,009), a existência de dúvidas quanto ao valor alvo da HbA1c (OR=0,229 nos assistentes graduados, p=0,032) e a decisão de adiamento da insulinoterapia por circunstâncias da vida diária (OR=0,222 nos assistentes graduados, p=0,019) constituíam barreiras à insulinoterapia quando comparados com os médicos internos. Os médicos assistentes, especialistas não integrados e de clínica geral discordaram que tenham conhecimento científico insuficiente sobre o tema, opinião diferente dos médicos internos (OR=0,317, p=0,012). Finalmente, os assistentes graduados discordaram que seja preferível adiar a insulinoterapia até que surjam as primeiras complicações da doença (OR=0,185, p=0,040) e que os registos clínicos incompletos interfiram com o início de insulinoterapia (OR=0,274, p=0,007), contrariamente aos internos.
Tipo de unidade funcional
Os médicos das USF modelo A (OR=4,56, valor-p=0,005) e modelo B (OR=6,18, valor-p<0,001), quando comparados com os profissionais da UCSP, apresentaram maior tendência para concordarem com a afirmação de que têm uma equipa multidisciplinar com elementos suficientes para gerir os doentes insulino-tratados. A OR dos médicos das UCSP, para tendencialmente concordarem com a dificuldade em adaptar as recomendações à prática clínica diária, foi 2,46 vezes maior, comparativamente aos médicos das USF modelo B.
Género
Os profissionais do sexo feminino tendencialmente concordaram com a dificuldade em adaptar as recomendações à sua prática clínica diária, uma vez que a OR foi 2,11 vezes maior do que no sexo masculino (p=0,045).
Horas semanais
À medida que aumentaram as horas de trabalho dos médicos aumentou a concordância com a afirmação de que a insulinoterapia deverá ser adiada até que surjam as primeiras complicações da doença (OR=1,106, p=0,039).
Discussão
Do conhecimento dos autores, este é o primeiro estudo em Portugal que identifica fatores que justifiquem a inércia no início de insulinoterapia em doentes diabéticos nos CSP.
Na amostra estudada, os cinco principais fatores que geraram maior concordância, como influenciadores do início de insulinoterapia, foram por ordem decrescente: a perceção do médico sobre o impacto positivo da insulinoterapia no prognóstico do doente, a má relação médico-doente, a noção de que os doentes não têm a capacidade de aprender a gerir insulina, as características socioeconómicas dos utentes e o facto de o médico ter uma equipa multidisciplinar que permite gerir os doentes insulino-tratados. Relativamente ao fator da má relação médico-doente, este tinha mais influência quanto mais novo fosse o médico.
No estudo internacional DAWN,25 49,2% dos profissionais acreditavam que o início precoce de insulinoterapia não teria um impacto positivo no tratamento da DM2. Os resultados do presente estudo são contrários, o que pode refletir a evolução do conhecimento científico nas últimas décadas e a formação dos profissionais. No estudo de Hayes e colaboradores, 75% dos médicos de família concordava que o início de insulina em doente com mau controlo metabólico evitava complicações. As dificuldades relacionais e de comunicação com o doente, bem como as condições socioeconómicas, foram também apontadas como fator limitante ao início de insulina em diversos trabalhos.17,26-29 Lakkis e colaboradores concluíram que 27% dos médicos de família admitia relutância em iniciar insulina se o doente era de um nível socioeconómico baixo. À semelhança dos resultados obtidos, a existência de equipas multidisciplinares capacitadas para o início de insulinoterapia era frequentemente referida como essencial no combate à inércia terapêutica.17-18,24 Quanto à perceção dos médicos em relação às capacidades do doente, os resultados na literatura foram menos consensuais.17,24,35 Segundo o estudo de Hayes e colaboradores, 58% dos clínicos nos EUA discordava que a técnica de administração de insulina fosse demasiado complexa para a maioria dos seus doentes.24 No estudo TRIAD, 43% dos médicos de família referiram como fator limitante a falta de capacidade de autogestão da terapêutica pelos doentes.
Relativamente às afirmações que geraram maior discordância, estas foram, por ordem crescente: existir dúvidas em relação ao valor alvo de HbA1c individualizado para cada doente, custo da insulinoterapia para o SNS, receio de que a proposta de insulinoterapia prejudique a relação médico-doente, perceção do médico de que a insulinoterapia é uma competência do endocrinologista e preferência do médico em adiar a insulinoterapia até que surjam as primeiras complicações da doença. A possibilidade de o médico considerar que a insulinoterapia é uma competência do endocrinologista aumentou com a idade do clínico.
As dificuldades na aplicação prática dos conhecimentos teóricos, a falta de experiência e de confiança no início de insulinoterapia nos CSP foram frequentemente referidos na literatura como fator limitante.17,26-28,30-31 Contudo, a maioria dos médicos do ACeS Almada-Seixal discordou de que questões relativas ao conhecimento científico, aplicabilidade das recomendações e falta de experiência fossem barreiras ao início de insulinoterapia.
No estudo qualitativo de Fuler e colaboradores, os médicos dos CSP destacavam como barreira a possibilidade de o início de insulina ser uma ameaça à relação médico-doente, enquanto no presente estudo a maioria discorda que seja um fator limitante. Outros trabalhos apontaram para a discordância em atribuir esta responsabilidade ao endocrinologista,17,27,32 o que está de acordo com os resultados ora obtidos.
A inércia terapêutica foi demonstrada em vários trabalhos publicados. No estudo de Lakkis e colaboradores, 73,6% dos médicos de família admitiram optar por adiar o início de insulina até que seja absolutamente necessário, enquanto no estudo de Peyrot e colaboradores essa percentagem foi de 55%. Os médicos do ACeS Almada-Seixal tendencialmente discordaram do adiamento da insulinoterapia até que surjam as primeiras complicações da doença ou se o doente justifica o mau controlo metabólico por circunstâncias temporárias da vida ou eventos. Os resultados de Carratalá-Munera e colaboradores indicaram conclusões semelhantes.
Alguns estudos demonstraram que os médicos em formação reconhecem menos causas de inércia terapêutica do que médicos especialistas.12 Porém, outros trabalhos indicaram que médicos especialistas podem reconhecer menos causas devido à sua maior experiência e confiança clínica.13-19 O presente estudo revelou que não só os médicos internos eram os que consultavam o maior número de diabéticos e os que despendiam mais tempo com doentes com DM2, como eram os que identificavam mais barreiras ao início de insulina; o que foi corroborado pela análise da variável idade. Verificou-se que, com o aumento da idade, os profissionais tendiam a discordar com as afirmações relacionadas com alguns receios e mitos por parte dos doentes. Igualmente com o aumento da idade, os profissionais tendiam a discordar de que a perspetiva de má adesão ao tratamento e consultas por parte do utente, a presença de comorbilidades, a polimedicação ou a má relação com o doente influenciassem esta decisão. Estes dados apontaram, por isso, para que os fatores mencionados constituíssem uma barreira ao início de insulinoterapia para os médicos mais novos. A existência de dúvidas na aplicabilidade das recomendações sobre DM2 e o valor alvo HbA1C pareceram contribuir para a inércia à medida que diminuía a idade do profissional; o que também se verificou na análise por categoria profissional para o grupo dos médicos internos. Observou-se ainda que, com o aumento da idade, os profissionais tendiam a concordar que a maioria dos utentes iria precisar desta terapêutica, independentemente das medidas de estilo de vida e farmacológicas adotadas, o que está em concordância com o estudo de Carratalá-Munera e colaboradores, não existindo consenso no estudo de Hayes e colaboradores. Por outro lado, à medida que a idade aumentava, o profissional tendia a concordar que a competência de iniciar insulinoterapia cabia ao endocrinologista. Porém, num estudo chileno de 2010,33 a maioria dos médicos, independentemente da idade, discordava que a insulina devesse ser iniciada por um especialista; poderá dever-se a diferenças culturais, à formação dos profissionais, à acessibilidade à consulta de endocrinologia e a diferenças na organização dos sistemas de saúde.
Os médicos internos apresentaram maior concordância sobre a falta de consenso na literatura, a possibilidade de o início de insulina prejudicar a relação médico-doente, a pouca experiência na gestão da insulinoterapia e a ideia de que o início da insulinoterapia deva ser adiado até ser absolutamente essencial constituirem barreiras ao início da terapêutica; poderá estar relacionado com o facto de médicos mais jovens estarem menos capacitados para gerir doentes insulino-tratados por terem menos formação, autonomia na gestão terapêutica e menor confiança na tomada de decisão. A experiência clínica permite melhorar e adaptar progressivamente a abordagem do tema com o doente diabético, apostando na sua educação para superar potenciais dificuldades. Foram obtidos resultados semelhantes noutros estudos, em que médicos com mais anos de experiência apresentavam atitudes mais positivas relativamente à insulinoterapia.24 Os médicos assistentes, os especialistas não integrados, os clínicos gerais e os assistentes graduados tendiam a discordar que a dificuldade em adaptar as recomendações à prática clínica, a existência de dúvidas quanto ao valor alvo da HbA1c e a decisão de adiamento da insulinoterapia por circunstâncias da vida fossem barreiras à insulinoterapia quando comparados com os médicos internos; o que também reforça o papel da experiência como fator preponderante. O mesmo se aplica aos resultados relativos ao conhecimento científico insuficiente sobre o tema, com os quais os médicos assistentes, especialistas não integrados e de clínica geral tendencialmente discordaram, contrariamente aos internos, que revelaram menos confiança no seu conhecimento.14-19 Finalmente, os assistentes graduados discordaram que seja preferível adiar a insulinoterapia até que surjam as primeiras complicações da doença e que os registos clínicos incompletos interfiram com o início de insulinoterapia, contrariamente à opinião dos internos. O estudo de Carratalá-Munera e colaboradores identificou, à semelhança dos internos da amostra, que o registo clínico incompleto poderia ser causa de inércia terapêutica.
Os médicos das USF modelo A e B, comparativamente com os das UCSP, apresentaram maior tendência para concordarem com a afirmação de que têm uma equipa multidisciplinar que permita gerir doentes insulino-tratados, o que coincide com estudos anteriores.15-18 Nas UCSP, o elevado número de utentes sem médico de família e a ausência de equipas de família foram documentados como potenciais obstáculos ao seguimento adequado de doentes com DM2,18 podendo explicar o facto dos médicos das UCSP da amostra consultarem em maior número e despenderem mais tempo com utentes com DM2. Os médicos das UCSP revelaram ainda uma maior tendência para concordarem com a existência de dificuldades em adaptar as recomendações à prática clínica diária, comparativamente aos médicos das USF modelo B. Uma justificação possível será a dificuldade no seguimento continuado dos diabéticos nas UCSP que possibilite o cumprimento adequado das recomendações. De acordo com a literatura, esta diferença poderá estar relacionada com a falta de motivação profissional para o controlo metabólico rigoroso dos doentes, e que é decorrente da ausência de contratualização por indicadores de saúde e de incentivos financeiros.18
Era expectável que médicos com um maior número de doentes atendidos por dia e maior número de horas de trabalho por dia definissem, como fator limitante, a falta de tempo na consulta.14-19 No entanto, no estudo, esta relação não foi identificada. Verificou-se que a proporção de doentes com DM2 e o tempo despendido com estes doentes era semelhante nas USF modelo A e B, sendo a variabilidade maior nas UCSP, onde o número de DM2 consultados e o tempo despendido eram tendencialmente superiores.
Os médicos do sexo feminino apresentavam maior dificuldade em adaptar as recomendações à sua prática clínica diária. Relativamente ao horário semanal, no modelo final apenas se encontrou associação com a questão referente ao adiamento da insulinoterapia até ao surgimento das primeiras complicações da doença. Na literatura não se encontrou referência a estes dados, pelo que poderá ser relevante estudá-los em futuras investigações.
As principais limitações do estudo incluiram vieses de seleção, uma vez que não foi possível aos investigadores garantirem o preenchimento de todos os questionários entregues, pelo que as respostas obtidas poderão não ser representativas da perceção geral de todos os médicos do ACeS. Poderão existir vieses de informação, que incluem o facto das respostas se referirem a experiências retrospetivas, influenciáveis pela memória e estado de espírito dos participantes. Apesar de se tratar de um questionário elaborado pelos investigadores, não validado, foi realizado um pré-teste de forma a ultrapassar eventuais interpretações desadequadas das perguntas. Assinala-se também, neste contexto, que os internos poderão ser sugestionados pela prática clínica dos seus orientadores de formação e que a categoria profissional não é um proxy direto para os anos de experiência clínica.
Conclusão
A insulinoterapia é fundamental no controlo da diabetes, pelo que é necessário identificar barreiras que possam comprometer a sua utilização atempada e eficaz. A presente investigação sugeriu que foram os médicos mais novos, em formação e profissionais das UCSP que identificaram maior número de barreiras, que contribuem para a inércia terapêutica na DM2 no ACeS Almada-Seixal. Estes resultados podem ser usados localmente e de forma dirigida para melhorar a formação destes profissionais. O internato pode ser uma oportunidade para formar cientificamente os profissionais mais novos, mas também para treinar competências que facilitem a comunicação com os utentes diabéticos. O incentivo à criação de equipas multidisciplinares dedicadas à DM2 nas UCSP, permitindo que todos os diabéticos tenham acesso a cuidados personalizados e longitudinais, pode melhorar a qualidade do seguimento.
Contributo individual dos autores
Sara Rosa: conceptualização, investigação, recursos, escrita, revisão e validação do texto do artigo; Joana Reis: conceptualização, investigação, recursos, escrita, revisão e validação do texto do artigo, visualização; Sara Ferreira: conceptualização, investigação, recursos, escrita, revisão e validação do texto do artigo; Ricardo Alves: conceptualização, metodologia, software, análise formal, recursos, escrita, revisão e validação do texto do artigo, visualização; Ricardo Silva: conceptualização, investigação, recursos, escrita, revisão e validação do texto do artigo; Pedro Pinto Leite: conceptualização, metodologia, software, análise formal, recursos, escrita, revisão e validação do texto do artigo; Mariana Faria: conceptualização, metodologia, software; Anabela Ribeiro: recursos.