Introdução
O lúpus eritematoso sistémico (LES) é uma doença inflamatória crónica, multissistémica e imunomediada de etiologia desconhecida.1)-(2 O LES afeta cerca de 0,07% dos portugueses e mais tipicamente mulheres em idade jovem. Os primeiros sintomas da doença manifestam-se habitualmente entre a faixa etária dos 16 e dos 49 anos (75% dos casos), embora estejam descritos diagnósticos em crianças e em idosos. (2
As manifestações clínicas do LES são múltiplas e relacionam-se com o caráter multissistémico desta patologia. Deste modo, a heterogeneidade da apresentação clínica estende-se desde as alterações muco-cutâneas ou articulares ligeiras (90%) até ao comprometimento da função renal, pulmonar, cardíaca, hematológica ou neuropsiquiátrica. (2
A pericardite consiste na manifestação cardíaca mais comum do LES, afetando cerca de 25% dos doentes ao longo da sua vida. (3 A pericardite lúpica surge frequentemente em contextos de agudização da doença, embora estejam descritos casos de apresentação inicial do LES associado a este quadro clínico. (4)- (5 Por outro lado, é frequente a descoberta de doença do pericárdio em doentes assintomáticos, através da realização de exames de imagem. (5
A pericardite sintomática manifesta-se como uma dor torácica subesternal, em facada ou opressiva, de características pleuríticas, frequentemente associada a febre. O quadro clínico pode apresentar-se de forma insidiosa ou, mais frequentemente, de forma súbita. O caráter pleurítico da dor torácica pode ser determinado através do agravamento da dor subesternal com a inspiração profunda ou com a tosse. Frequentemente, os doentes relatam um alívio das queixas álgicas com a flexão anterior do tórax quando sentados. (6
O quadro clínico de pericardite pode muitas vezes ser confundido com um quadro de dor torácica enquadrada numa infeção respiratória, nomeadamente em contextos epidemiológicos particulares, pelo que o seu conhecimento e diagnóstico diferencial são fulcrais na abordagem de clínica suspeita.
Descrição do caso
História da doença atual
Adolescente de 18 anos, sexo feminino, estudante, reside em casa dos pais.
A utente integra uma família nuclear, em fase V do ciclo familiar de Duvall de classe socioeconómica III (média), segundo a escala de Graffar adaptada.
Como antecedentes pessoais apresentava o diagnóstico de LES desde abril de 2020, acompanhada em consulta hospitalar de reumatologia, estando medicada com hidroxicloroquina 400 mg e 200 mg em dias alternados, metotrexato 10 mg uma vez por semana, prednisolona 15 mg id, ácido fólico 5 mg dois comprimidos por semana e vitamina D mensal. Fez ciclo de rituximab em novembro de 2020 por artrite refratária. Internamento a 08/10/2020 por síndroma febril prolongado enquadrado no diagnóstico de agudização do LES (realizou pesquisa de SARS-CoV-2, que foi negativa). Apresenta mutação em heterozigotia da protrombina G20210A, com episódio de trombose venosa profunda em janeiro de 2018. Sem antecedentes familiares de relevo. Pais não consanguíneos.
A 15/01/2021 solicita, através do contacto realizado pela mãe, consulta aberta na USF Tondela por queixas de toracalgia associada a febre e tosse.
A colheita da anamnese permitiu aferir que a adolescente apresentava um quadro de dor torácica subesternal em «facada», com cerca de um mês de evolução e agravamento progressivo na última semana, tornando-se contínua e com surgimento de dor concomitante em «picada» na região infra-mamária esquerda. Negava irradiação da dor. Referia como fatores de agravamento da dor a inspiração profunda e movimentos repentinos do tórax. Mantinha a dor em repouso e manifestava como fator de alívio a flexão anterior do tronco. Melhoria parcial das queixas com toma ocasional de ibuprofeno 600 mg. Referia, portanto, uma dor de início insidioso e agravamento progressivo, que classificava como intensa na última semana.
Apresentava febre de caráter intermitente de longa duração, com cerca de quatro meses de evolução, com internamento há cerca de três meses em contexto de agudização do LES. Noção de hipertermia, com temperaturas maioritariamente sub-febris, sem alteração do padrão habitual em relação à data de alta do internamento - pico máximo de 38°C, com intervalos de apirexia irregulares e intervalo máximo de apirexia de 72 horas.
A utente referia, concomitantemente a este quadro, noção de dispneia por dor intensa despertada pela inspiração profunda, pelo que realizava ciclos inspiratórios mais frequentes e superficiais. Apresentava também tosse de caráter irritativo desde o dia anterior, motivo que também a terá preocupado, dado o contexto epidemiológico.
Ao exame objetivo a utente apresentava-se consciente, colaborante e orientada no espaço e no tempo. Apresentava-se hemodinamicamente estável com valores tensionais de 124/61 mmHg, com frequência cardíaca de 122 batimentos por minuto, apirética (temperatura axilar 36,9°C), eupneica, com saturação de O2 periférico a ar ambiente de 98%. A auscultação cardíaca apresentava-se rítmica, taquicárdica com sopro sistólico II/VI audível no foco aórtico. Sem auscultação de atrito pericárdico (mesmo quando realizada após flexão anterior do tronco). A auscultação pulmonar apresentava um ligeiro aumento do tempo expiratório, mas com sons pulmonares mantidos e simétricos e sem a presença de ruídos adventícios.
A utente foi encaminhada para o serviço de urgência do Centro Hospitalar Tondela-Viseu (CHTV) por suspeita primária de pericardite lúpica.
Evolução
No serviço de urgência, após avaliação clínica, foram realizados os seguintes exames complementares de diagnóstico: gasimetria de sangue arterial, estudo analítico (nomeadamente hemograma completo, velocidade de sedimentação [VS], proteína C reativa [PCR], marcadores de necrose miocárdica - mioglobina e troponina I), eletrocardiograma (ECG) e raio-X do tórax. O estudo analítico revelou anemia microcítica e hipocrómica (hemoglobina 7,9 g/dL, volume globular médio 77,3 fL) e PCR elevada (10,51 ng/mL). Restante avaliação analítica e gasimetria de sangue arterial sem alterações. No ECG apresentava ritmo sinusal e inversão das ondas T nas derivações pré-cordiais. O raio-X do tórax revelou derrame pleural esquerdo ligeiro e aumento do índice cardiotorácico, pelo que posteriormente realizou ecocardiograma transtorácico, que veio a revelar ligeiro derrame pericárdico circunferencial (máximo 8mm), sem tamponamento ou outras alterações das restantes estruturas cardíacas.
Após avaliação em contexto de urgência, a utente foi internada no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra de 19 a 27 de janeiro de 2021 (onde é habitualmente acompanhada pela especialidade de reumatologia) por quadro de flare lúpico associado a febre prolongada, anemia microcítica e hipocrómica, pericardite aguda associada a derrame pericárdico ligeiro e serosite pleural com ligeiro derrame pleural esquerdo. O teste de pesquisa SARS-CoV-2 revelou-se negativo. Durante o internamento terá desenvolvido uma pneumonia bacteriana com insuficiência respiratória hipoxémica, com resolução após instituição de antibioterapia.
À alta apresentava-se hemodinamicamente estável, com resolução das queixas que motivaram o internamento, apresentava índice Systemic Lupus Erythematosus Disease Activity Index (SLEDAI) de 8. Medicada em ambulatório com prednisolona 60 mg em esquema de desmame, colquicina 0,5 mg id, enoxaparina 60 mg bid, cefuroxima 500 mg bid durante oito dias, furosemida 40 mg id e nifedipina 30 mg id, mantendo a restante medicação habitual.
Comentário
Os critérios de diagnóstico de LES definidos pelo American College of Rheumatology baseiam-se essencialmente em características clínicas do doente, achados laboratoriais e alterações da autoimunidade. Estes critérios foram definidos em 1982 e atualizados em 1997. (11 De facto, a presença de serosite, pleurite ou pericardite constitui um dos onze critérios de diagnóstico do LES e, frequentemente, uma das alterações comuns associadas à agudização da patologia.
O LES, devido ao seu caráter multissistémico e crónico, é responsável por um amplo conjunto de manifestações clínicas, sendo considerado por muitos “um dos grandes imitadores”. (12 No contexto epidemiológico em referência a presença de sintomas como febre, dor torácica e tosse sugere de imediato a hipótese diagnóstica da doença COVID-19 que, indubitavelmente, deve ser excluída. Contudo, o papel do médico de família, como conhecedor privilegiado dos antecedentes pessoais do utente, nomeadamente das suas doenças crónicas e do seu seguimento, bem como das manifestações clínicas associadas à sua recorrência ou agudização, permite-lhe uma suspeição diagnóstica sustentada que, noutro contexto, e numa primeira avaliação da utente, poderia não ser tão óbvia. Neste caso, a avaliação prévia da utente pelo seu médico de família e a orientação do mesmo com base em diagnósticos diferenciais sustentados pela cuidada anamnese e semiologia permitiu o rápido diagnóstico, internamento e tratamento da agudização em curso.
O Systemic Lupus Erythematosus Disease Activity Index (SLEDAI 2000) constitui uma ferramenta útil na determinação da atividade da doença ao longo do tempo e com validade como preditor de mortalidade específica. (13 O acompanhamento longitudinal, característico dos cuidados de saúde primários, torna a aplicação do SLEDAI em utentes diagnosticados com LES numa ferramenta a considerar na deteção precoce de agravamento do LES. Neste sentido, é fundamental uma articulação próxima entre os cuidados de saúde primários e os cuidados de saúde secundários, nomeadamente com a consulta de reumatologia, onde estes utentes são habitualmente acompanhados.
O conhecimento dos antecedentes pessoais da utente e da sua medicação habitual suporia que, perante um diagnóstico de doença infectocontagiosa, existiria também um risco acrescido de complicações, dado o quadro de imunossupressão presente. De facto, apesar de tal complicação não estar presente na avaliação inicial, a utente veio a desenvolver um quadro de pneumonia bacteriana no decurso do seu internamento, com necessidade de tratamento com antibioterapia.
O exame objetivo do doente com LES com suspeita de agudização do quadro deve ser completo, dado o caráter multissistémico da doença e das suas agudizações.
No exame físico, a auscultação de atrito pericárdico é altamente específica para o diagnóstico de pericardite aguda. O som auscultatório de atrito pericárdico é classicamente definido como trifásico e resulta do som gerado pela fricção da lâmina visceral e parietal inflamadas, frequentemente de caráter intermitente. No entanto, na presença de derrame ou tamponamento cardíaco este pode não ser audível. (7
Nos casos suspeitos de pericardite lúpica deve-se ponderar a realização dos seguintes exames auxiliares de diagnóstico: ECG, raio-X do tórax, hemograma completo com doseamento de marcadores de necrose do miocárdio, VS, PCR e ecocardiograma transtorácico (urgente se suspeita de tamponamento cardíaco). Em casos selecionados, a realização de tomografia computorizada do tórax ou ressonância magnética cardíaca deverá ser equacionada, mediante a suspeita de complicações associadas ou dúvidas relativamente à etiologia do quadro. (8)- (9
A pericardite associada ao LES apresenta uma boa evolução na maioria dos doentes. No tratamento da pericardite não complicada são usados como fármacos de primeira linha os anti-inflamatórios não esteroides (AINE), hidroxicloroquina e doses baixas a moderadas de glicocorticoides orais. (10 Em casos selecionados pela severidade ou elevada recorrência de pericardite lúpica deve ser equacionada a introdução ou ajuste da terapêutica imunosupressora. (10
Alguns doentes com LES podem permanecer por longos períodos em remissão clínica; no entanto, alguns estudos demonstram que mais de 50% dos doentes acabam por ser hospitalizados pelo menos uma vez por ano por agudização ou complicação associada à LES. Deste modo, os doentes com LES são aqueles mais frequentemente admitidos para internamento hospitalar com doença autoimune conhecida. (14 Por sua vez, as lesões orgânicas acumuladas ao longo do tempo, devido aos múltiplos flares, culminam em hospitalizações longas, associadas a uma elevada taxa de complicações e readmissões hospitalares. Neste sentido, a admissão e orientação inicial destes doentes requer uma abordagem de caráter multidisciplinar, com necessidade de avaliação precoce do prognóstico na admissão. (15
Assim, é de realçar a importância do papel do médico de família no seguimento de utentes com patologias multissistémicas, nomeadamente no reconhecimento precoce de eventuais agudizações e na suspeição de um envolvimento multi-orgânico associado.