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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.39 no.1 Lisboa fev. 2023  Epub 30-Mar-2023

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v39i1.13255 

Opinião e debate

A atuação do médico de família e os cuidados paliativos: o método ACERTAR

The family physician and palliative care: the ‘ACERTAR’ method

Maria Folque Gouveia1  , Médica Assistente de Medicina Geral e Familiar
http://orcid.org/0000-0003-0796-813X

Paulo Reis-Pina2  3 

1. Médica Assistente de Medicina Geral e Familiar. USF Lusa, ACeS Lisboa Ocidental e Oeiras. Carnaxide, Portugal.

2. Unidade de Cuidados Paliativos, Casa de Saúde da Idanha. Sintra, Portugal.

3. Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Lisboa, Portugal.


Resumo

O médico de família (MF) é responsável pela prestação de cuidados continuados longitudinalmente, estando na posição ideal para prestar cuidados paliativos (CP), visto que possui uma relação de confiança e proximidade com o doente/família. Alguns fatores condicionam a prestação de CP pelo MF, como a falta de formação, de tempo e de normas de orientação clínica. Na prática, o MF pode hesitar relativamente ao melhor método a seguir nas situações de CP. Propõe-se um método que visa estruturar a atuação do MF durante as visitas domiciliárias - o método ACERTAR, acróstico que congrega os sete objetivos (e intervenções decorrentes) da prestação de cuidados domiciliários: Avaliar; Comunicar; Empoderar; Rever/Reduzir; Tratar; Antecipar e Referenciar. O MF tem um papel vital no acompanhamento dos doentes com necessidades paliativas. Pretende-se, assim, divulgar um guia que possa ajudar o MF na prestação de cuidados aos utentes com necessidades paliativas.

Palavras-chave: Médicos de família; Cuidados de saúde primários; Cuidados paliativos

Abstract

Family physicians (FPs) are responsible for providing longitudinal and continuous health care to the population. Due to the nature of their relationship with their patients/families, supported by trust and proximity, FPs are in the ideal position to offer palliative care (PC). However, different factors, such as lack of training, time, and guidelines, make it difficult for family physicians to provide PC. Moreover, FPs may struggle to define what is the appropriate method to provide the best care in a PC scenario. Here, we propose a method to clarify FPs’ role during home visits - the ‘ACERTAR’, an acrostic that highlights seven goals (and interventions) in home clinical care: Assess; Communicate; Empower; Review/Reduce; Treat; Anticipate and Refer. FPs have a vital role in the follow-up of palliative needs patients. We, therefore, intend to spread a guide that can help the FPs in the provision of care to patients with palliative needs.

Keywords: Family physicians; Primary health care; Palliative care

A organização dos cuidados paliativos em Portugal

Ao longo dos últimos anos, os cuidados paliativos (CP) em Portugal têm sofrido várias mudanças, entre as quais a criação da Rede Nacional de Cuidados Paliativos (RNCP), em 2012,1 e o Plano Estratégico para o Desenvolvimento dos Cuidados Paliativos (PEDCP), atualmente relativo ao biénio 2019-2020. 2 Devem considerar-se pelo menos três níveis de CP: a abordagem paliativa (APAL); os cuidados paliativos generalistas (CPG); e os cuidados paliativos especializados (CPE). 2-3 Podem ainda ser considerados os Centros de Excelência (Figura 1). A RNCP deve atuar nos três níveis de cuidados de saúde existentes em Portugal - cuidados de saúde primários, cuidados de saúde hospitalares e cuidados continuados integrados (Figura 2). 2

Figura 1 Níveis de diferenciação dos cuidados paliativos. 

Figura 2 Modelo de organização dos cuidados paliativos em Portugal. 

A APAL deve estar presente em todo o sistema de saúde e todos os profissionais de saúde deviam terminar o curso com formação básica em CP. Os CPG, por outro lado, são prestados por profissionais que trabalham em áreas em que a prevalência de doentes com doença incurável e progressiva é alta, como, por exemplo, os cuidados de saúde primários (CSP). Assim, os doentes de complexidade baixa a intermédia poderão serão acompanhados pelo seu enfermeiro e médico de família (MF), podendo receber consultoria e apoio das equipas específicas de CP que se ocupam dos doentes com necessidades mais complexas. Desta forma, pretende-se construir uma rede colaborativa e integrada. 2

Vários estudos mostraram já o benefício que os CP trazem aos doentes e às suas famílias, sobretudo se aplicados precocemente, na redução da carga sintomática e no aumento da probabilidade de morrer em casa. 4 Para além disto, vários estudos mostraram que os CP estão associados a uma redução dos custos em saúde e a um aumento da satisfação dos doentes e familiares. 5

A maioria dos doentes preferia que o seu local de morte fosse o domicílio. Uma investigação mostrou que 51,2% dos portugueses prefere morrer em casa. 6 É, pois, essencial constituir mais equipas comunitárias e hospitalares de CP, mas não será suficiente. 2 É igualmente importante capacitar os profissionais de saúde dos CSP com um nível de formação intermédia, para que possam detetar precocemente os doentes que necessitam de CP, realizar CPG e referenciar os doentes mais complexos para os CPE.

Os cuidados paliativos: o papel do médico de família

De acordo com a definição europeia da medicina geral e familiar, o MF é responsável pela prestação de cuidados continuados longitudinalmente, ou seja, é responsável por seguir a pessoa desde a sua conceção até à sua morte. 7 O PEDCP define que os doentes de complexidade baixa a intermédia deverão ser acompanhados pelo seu MF e enfermeiro de família (EF). 2 De facto, o MF tem uma posição privilegiada, uma vez que conhece o doente, a família, o contexto social e muito provavelmente já criou uma relação de confiança e proximidade. Para além disso, o MF trabalha em articulação com o EF que presta igualmente cuidados continuados aos seus doentes, o que pode facilitar uma abordagem em equipa, mais eficiente. Assim, o MF e o EF estão na posição ideal para prestar CP aos seus doentes, com base nas suas competências profissionais, capacidade para criar relação com os doentes e suas famílias e capacidade de coordenação de recursos médicos. 8-9

Apesar de ter uma posição privilegiada, por que motivo o MF não faz pleno uso dos CPG na abordagem de doenças crónicas e progressivas? Por que razão o MF dificilmente aborda assuntos relativos ao fim de vida com os seus utentes? Por que razão o MF deixa de acompanhar os seus doentes nos últimos dias/horas de vida? Por que razão o MF não está preparado para lidar com situações de final de vida? Por que razão os doentes morrem no hospital quando o seu desejo era morrer em casa?

Um dos fatores que dificulta a prestação de CP é a falta de formação na área.8,10 Investigação recente tem mostrado que os MF, após treino em CP, aumentam as suas competências, identificam mais doentes com necessidades paliativas e mais frequentemente realizam CP. 11-12 É, assim, importante considerar a integração de um estágio obrigatório em CP na formação especializada de medicina geral e familiar. 13 É crucial estimular a realização de formação de nível intermédio, garantindo, assim, que todos os MF tenham formação nesta área.

A falta de formação nesta área dificulta a identificação dos doentes com necessidades paliativas. Para isso existem várias ferramentas internacionais que podem ajudar o MF a identificar estes doentes, de uma forma precoce, como The Gold Standards Framework - Proactive Identification Guidance.14 Para além desta ferramenta existem outras, como a Supportive and Palliative Care Indicators Tool (SPICT), 15Necesidades Paliativas (NECPAL) 16 ou RADbound Indicator for PAlliative Care Needs (RADPAC), 17 que auxiliam os profissionais de saúde a identificar os doentes com necessidades paliativas.

Um ponto relevante na dificuldade em identificar os doentes que necessitam de CP em CSP está relacionada com a evolução das doenças não oncológicas. De forma diferente do cancro, que tem em regra uma trajetória bem definida, as doenças não oncológicas cursam com um declínio progressivo e com vários períodos de exacerbação, sendo muitas vezes difícil a identificação da fase terminal. 18-19

Para além da falta de formação existe escassez de tempo para que os MF possam ter uma prestação de cuidados, adequada e de qualidade, a estes utentes. 8,10 Não é exequível, em consultas com vinte minutos de duração, abordar temas tão complexos como o final de vida. Não é possível responder às necessidades constantes (por agravamento sintomático) de visitas domiciliárias que estes doentes têm. Para além disto, coloca-se a problemática da dimensão das listas do MF, com números superiores àquilo que seria o ideal e com uma pressão para cumprimento de indicadores que nem sempre refletem cuidados de qualidade, dificultando também a abordagem adequada destes doentes. A quantificação exagerada do ato médico não é benéfica para doentes com necessidades de CP, cujas intervenções são mais qualitativas e centradas numa relação de suporte, visando a sensação de não-abandono. Será, assim, importante repensar a forma como as listas dos MF estão organizadas, para que estes possam prestar CPG de qualidade.

Outros fatores foram descritos como dificultadores da prestação de CP pelo MF, como a complexidade elevada dos doentes, comunicação/articulação pobre com os serviços hospitalares, escassez de recursos e falta de normas de orientação clínica. 8,10 Apesar destes fatores limitadores, a maioria dos MF considera que tem um papel importante a desempenhar no acompanhamento dos doentes com necessidades paliativas. 8,10,20-22

A atuação do médico de família e os cuidados paliativos: o método ACERTAR

Percebemos, pelo descrito, que existem múltiplos fatores dificultadores da prestação de CP pelo MF, nomeadamente a falta de formação e de normas/modelos que possam guiar o MF na prestação deste tipo de cuidados. Ou seja, o MF, na prática, em termos de APAL/CPG, pode hesitar no melhor modelo a seguir nas situações de menor complexidade e, eventualmente, numa fase mais precoce da doença. Propõe-se, assim, a utilização do método ACERTAR para guiar o MF na prestação de CP aos utentes que identifique com necessidades paliativas. Importa referir que será necessário, antes da aplicação do método, identificar quais os utentes com estas necessidades, podendo o MF utilizar as ferramentas acima referidas.

Propõe-se um método que visa estruturar a forma de atuação do MF durante uma visita domiciliária (VD) (Figura 3). Esta VD seria preferencialmente realizada em equipa, pelo MF e o EF, com enfoque no método ACERTAR, acróstico que congrega os sete objetivos (e intervenções decorrentes) da prestação de cuidados domiciliários: Avaliar; Comunicar; Empoderar; Reduzir; Tratar; Antecipar e Referenciar (Tabela 1).

Figura 3 A atuação do médico de família em cuidados paliativos: o método ACERTAR. 

Tabela 1 Descrição da atuação do médico de família em cuidados paliativos segundo o método ACERTAR 

No centro da atuação do MF é colocada a VD por ser o local onde é possível uma maior proximidade com o doente, a sua família e o seu ambiente. Um estudo mostrou que a hipótese de o doente morrer em casa aumenta com o número de VD realizadas pelo MF, o que reforça a importância desta atuação. 22

Uma das competências nucleares do MF é a utilização de uma abordagem holística, em que se deverá utilizar um modelo biopsicossocial, tendo em conta também as dimensões existencial e cultural. 7 Assim, o MF estará, à partida, treinado para avaliar o doente e os entes próximos com a aplicação deste modelo. É importante, contudo, não esquecer, que o MF deve treinar esta abordagem de uma forma contínua. Esta tarefa constitui um desafio nos dias de hoje, uma vez que existe alguma “pressão” para a realização de um grande número de consultas, sendo apenas avaliada a componente física do sofrimento individual. O MF deve colaborar com o seu EF e com outros recursos da comunidade, nomeadamente o assistente social e o psicólogo, nas situações que assim o justifiquem. O intuito é avaliar as necessidades paliativas da díade doente-família.

Outro dos pontos-chave em termos de atuação do MF é a sua capacidade de comunicar. Existe evidência que demonstra que a comunicação tem grandes benefícios nos indivíduos com doenças ameaçadoras da vida e suas famílias. 23 Assim, o MF deve desenvolver técnicas de comunicação adequadas que incluam a capacidade de escutar, de empatizar, de prestar apoio emocional e de saber resolver crises. 24 É importante o MF saber comunicar o diagnóstico e prognóstico de cada doença de forma assertiva, adaptada a cada situação clínica, bem como saber trabalhar e ajustar as expectativas do doente e família.

Outro ponto importante que os autores propõem é o empoderamento do doente e também da sua família/cuidador. Este é definido como um processo através do qual o doente ganha maior controlo sobre as decisões e ações que afetam a sua saúde. 25 A relação que se estabelece entre o doente e o médico é um fator importante para a promoção da autonomia do doente. 26 O MF deverá, de forma proativa, promover o empoderamento do doente através do esclarecimento de dúvidas, receios e mitos e desenhando os cuidados de acordo com as preferências do doente. 23

Outro dos componentes-chave que o método ACERTAR propõe, na prestação de CPG pelo MF, é a revisão regular da situação clínica e a redução do esforço terapêutico fútil, também chamado de obstinação terapêutica e que é condenado deontologicamente quando se trata de decisões em fim de vida. 27 O MF deve dar enfoque à desprescrição dos fármacos cujos potenciais danos causados ultrapassam os benefícios para determinado doente. O MF deverá ter especial atenção a algumas classes de fármacos que podem deixar de ter benefício no fim de vida: estatinas, antiagregantes/anticoagulantes, inibidores da bomba de protões e hipoglicemiantes. A desprescrição deve ser aplicada sobretudo nos doentes em fim de vida e deve ser feita com critério ético-clínico, adequando os objetivos de cuidados para cada doente. 28

Outro aspeto importante do método ACERTAR é o tratamento. Nos CSP os sintomas mais frequentemente descritos nos doentes com necessidades paliativas, no último ano de vida, são a dor, dispneia, náuseas, vómitos, obstipação, fadiga, ansiedade e depressão. 29-30 O MF deverá estar capacitado para gerir estes sintomas, através do conhecimento dos fármacos disponíveis, farmacocinética, vias de administração e posologia. Será importante a aprendizagem e treino com a via de administração subcutânea, ainda pouco utilizada em CSP. Para além de tratar os sintomas existentes é importante antecipar outros sintomas que possam eclodir ou reaparecer e é também importante monitorizar o aparecimento de eventuais efeitos secundários da medicação.

Em relação ao objetivo “antecipar” do modelo ACERTAR é sabido que o MF - devido ao relacionamento de longa duração mantido com os seus doentes e respetivos agregados familiares - se encontra numa posição ideal para dar corpo a um plano avançado de cuidados (PAC), preferencialmente numa fase precoce da doença. 18 Um estudo mostrou que os doentes se sentem confortáveis em discutir cuidados de fim de vida com o seu médico de família, quando a sua situação é estável. 31 O PAC é um processo contínuo, onde a situação clínica e o prognóstico do doente são revistos e as suas preferências são consideradas. Idealmente deve ser uma discussão conjunta entre o doente, profissionais de saúde e os familiares próximos e deve ocorrer longitudinalmente no percurso da doença. 32 O objetivo do PAC é ajudar a garantir que os doentes recebem os cuidados médicos que são consistentes com os seus valores, objetivos e preferências, especialmente se existir uma doença ameaçadora da vida ou à medida que o fim de vida se aproxima. 33-34 Entre os pontos que devem ser abordados no PAC devem constar a escolha do local de preferência de cuidados em fim de vida e a realização de Diretrizes Avançadas de Vontade (Testamento Vital). 35

Por último, o sétimo ponto-chave na atuação do MF, segundo o modelo ACERTAR, é a avaliação frequente da necessidade de consultoria ou referenciação para as ECSCP, sempre que a situação seja de maior complexidade ou caso o MF não se sinta capaz de prestar CPG. Como referido anteriormente, o PEDCP define que os doentes de complexidade baixa a intermédia deverão ser acompanhados pelo seu MF e EF e as situações de maior complexidade deverão ser acompanhadas pelas equipas específicas de CP. 2 É importante referir que mesmo que o doente não seja acompanhado pelas equipas especificas de CP, o MF pode e deve pedir consultoria a estas equipas sempre que a situação o justifique.

Conclusão

O MF tem, indubitavelmente, um papel importante no acompanhamento dos doentes com necessidades paliativas. De modo a facilitar o acompanhamento destes utentes propõe-se a utilização do método ACERTAR, para guiar o MF na prestação de CP aos seus utentes. Trata-se de um método simples de aplicar, que pode ser utilizado na realização de VD e que tem como objetivo estruturar intervenções paliativas que podem ser aplicadas aos utentes que o MF tenha identificado como tendo necessidade deste tipo de cuidados. Pretende-se, assim, divulgar um guia que possa ajudar o MF na prestação de cuidados aos utentes com necessidades paliativas, pois é seu dever não abandonar os doentes vulneráveis e garantir uma morte digna, sem sofrimento evitável.

Contributo dos autores

Conceptualização, MFG e PRP; metodologia, MFG e PRP; investigação, MFG; gestão de dados, MFG; redação do draft original, MFG; revisão, edição e validação do texto final, MFG e PRP; supervisão, PRP; administração do projeto, MFG e PRP.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse.

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Recebido: 25 de Maio de 2021; Aceito: 09 de Dezembro de 2022

Endereço para correspondência Maria Folque Gouveia E-mail: maria.folque.gouveia@gmail.com

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