A organização dos cuidados paliativos em Portugal
Ao longo dos últimos anos, os cuidados paliativos (CP) em Portugal têm sofrido várias mudanças, entre as quais a criação da Rede Nacional de Cuidados Paliativos (RNCP), em 2012,1 e o Plano Estratégico para o Desenvolvimento dos Cuidados Paliativos (PEDCP), atualmente relativo ao biénio 2019-2020. 2 Devem considerar-se pelo menos três níveis de CP: a abordagem paliativa (APAL); os cuidados paliativos generalistas (CPG); e os cuidados paliativos especializados (CPE). 2-3 Podem ainda ser considerados os Centros de Excelência (Figura 1). A RNCP deve atuar nos três níveis de cuidados de saúde existentes em Portugal - cuidados de saúde primários, cuidados de saúde hospitalares e cuidados continuados integrados (Figura 2). 2
A APAL deve estar presente em todo o sistema de saúde e todos os profissionais de saúde deviam terminar o curso com formação básica em CP. Os CPG, por outro lado, são prestados por profissionais que trabalham em áreas em que a prevalência de doentes com doença incurável e progressiva é alta, como, por exemplo, os cuidados de saúde primários (CSP). Assim, os doentes de complexidade baixa a intermédia poderão serão acompanhados pelo seu enfermeiro e médico de família (MF), podendo receber consultoria e apoio das equipas específicas de CP que se ocupam dos doentes com necessidades mais complexas. Desta forma, pretende-se construir uma rede colaborativa e integrada. 2
Vários estudos mostraram já o benefício que os CP trazem aos doentes e às suas famílias, sobretudo se aplicados precocemente, na redução da carga sintomática e no aumento da probabilidade de morrer em casa. 4 Para além disto, vários estudos mostraram que os CP estão associados a uma redução dos custos em saúde e a um aumento da satisfação dos doentes e familiares. 5
A maioria dos doentes preferia que o seu local de morte fosse o domicílio. Uma investigação mostrou que 51,2% dos portugueses prefere morrer em casa. 6 É, pois, essencial constituir mais equipas comunitárias e hospitalares de CP, mas não será suficiente. 2 É igualmente importante capacitar os profissionais de saúde dos CSP com um nível de formação intermédia, para que possam detetar precocemente os doentes que necessitam de CP, realizar CPG e referenciar os doentes mais complexos para os CPE.
Os cuidados paliativos: o papel do médico de família
De acordo com a definição europeia da medicina geral e familiar, o MF é responsável pela prestação de cuidados continuados longitudinalmente, ou seja, é responsável por seguir a pessoa desde a sua conceção até à sua morte. 7 O PEDCP define que os doentes de complexidade baixa a intermédia deverão ser acompanhados pelo seu MF e enfermeiro de família (EF). 2 De facto, o MF tem uma posição privilegiada, uma vez que conhece o doente, a família, o contexto social e muito provavelmente já criou uma relação de confiança e proximidade. Para além disso, o MF trabalha em articulação com o EF que presta igualmente cuidados continuados aos seus doentes, o que pode facilitar uma abordagem em equipa, mais eficiente. Assim, o MF e o EF estão na posição ideal para prestar CP aos seus doentes, com base nas suas competências profissionais, capacidade para criar relação com os doentes e suas famílias e capacidade de coordenação de recursos médicos. 8-9
Apesar de ter uma posição privilegiada, por que motivo o MF não faz pleno uso dos CPG na abordagem de doenças crónicas e progressivas? Por que razão o MF dificilmente aborda assuntos relativos ao fim de vida com os seus utentes? Por que razão o MF deixa de acompanhar os seus doentes nos últimos dias/horas de vida? Por que razão o MF não está preparado para lidar com situações de final de vida? Por que razão os doentes morrem no hospital quando o seu desejo era morrer em casa?
Um dos fatores que dificulta a prestação de CP é a falta de formação na área.8,10 Investigação recente tem mostrado que os MF, após treino em CP, aumentam as suas competências, identificam mais doentes com necessidades paliativas e mais frequentemente realizam CP. 11-12 É, assim, importante considerar a integração de um estágio obrigatório em CP na formação especializada de medicina geral e familiar. 13 É crucial estimular a realização de formação de nível intermédio, garantindo, assim, que todos os MF tenham formação nesta área.
A falta de formação nesta área dificulta a identificação dos doentes com necessidades paliativas. Para isso existem várias ferramentas internacionais que podem ajudar o MF a identificar estes doentes, de uma forma precoce, como The Gold Standards Framework - Proactive Identification Guidance.14 Para além desta ferramenta existem outras, como a Supportive and Palliative Care Indicators Tool (SPICT), 15Necesidades Paliativas (NECPAL) 16 ou RADbound Indicator for PAlliative Care Needs (RADPAC), 17 que auxiliam os profissionais de saúde a identificar os doentes com necessidades paliativas.
Um ponto relevante na dificuldade em identificar os doentes que necessitam de CP em CSP está relacionada com a evolução das doenças não oncológicas. De forma diferente do cancro, que tem em regra uma trajetória bem definida, as doenças não oncológicas cursam com um declínio progressivo e com vários períodos de exacerbação, sendo muitas vezes difícil a identificação da fase terminal. 18-19
Para além da falta de formação existe escassez de tempo para que os MF possam ter uma prestação de cuidados, adequada e de qualidade, a estes utentes. 8,10 Não é exequível, em consultas com vinte minutos de duração, abordar temas tão complexos como o final de vida. Não é possível responder às necessidades constantes (por agravamento sintomático) de visitas domiciliárias que estes doentes têm. Para além disto, coloca-se a problemática da dimensão das listas do MF, com números superiores àquilo que seria o ideal e com uma pressão para cumprimento de indicadores que nem sempre refletem cuidados de qualidade, dificultando também a abordagem adequada destes doentes. A quantificação exagerada do ato médico não é benéfica para doentes com necessidades de CP, cujas intervenções são mais qualitativas e centradas numa relação de suporte, visando a sensação de não-abandono. Será, assim, importante repensar a forma como as listas dos MF estão organizadas, para que estes possam prestar CPG de qualidade.
Outros fatores foram descritos como dificultadores da prestação de CP pelo MF, como a complexidade elevada dos doentes, comunicação/articulação pobre com os serviços hospitalares, escassez de recursos e falta de normas de orientação clínica. 8,10 Apesar destes fatores limitadores, a maioria dos MF considera que tem um papel importante a desempenhar no acompanhamento dos doentes com necessidades paliativas. 8,10,20-22
A atuação do médico de família e os cuidados paliativos: o método ACERTAR
Percebemos, pelo descrito, que existem múltiplos fatores dificultadores da prestação de CP pelo MF, nomeadamente a falta de formação e de normas/modelos que possam guiar o MF na prestação deste tipo de cuidados. Ou seja, o MF, na prática, em termos de APAL/CPG, pode hesitar no melhor modelo a seguir nas situações de menor complexidade e, eventualmente, numa fase mais precoce da doença. Propõe-se, assim, a utilização do método ACERTAR para guiar o MF na prestação de CP aos utentes que identifique com necessidades paliativas. Importa referir que será necessário, antes da aplicação do método, identificar quais os utentes com estas necessidades, podendo o MF utilizar as ferramentas acima referidas.
Propõe-se um método que visa estruturar a forma de atuação do MF durante uma visita domiciliária (VD) (Figura 3). Esta VD seria preferencialmente realizada em equipa, pelo MF e o EF, com enfoque no método ACERTAR, acróstico que congrega os sete objetivos (e intervenções decorrentes) da prestação de cuidados domiciliários: Avaliar; Comunicar; Empoderar; Reduzir; Tratar; Antecipar e Referenciar (Tabela 1).
No centro da atuação do MF é colocada a VD por ser o local onde é possível uma maior proximidade com o doente, a sua família e o seu ambiente. Um estudo mostrou que a hipótese de o doente morrer em casa aumenta com o número de VD realizadas pelo MF, o que reforça a importância desta atuação. 22
Uma das competências nucleares do MF é a utilização de uma abordagem holística, em que se deverá utilizar um modelo biopsicossocial, tendo em conta também as dimensões existencial e cultural. 7 Assim, o MF estará, à partida, treinado para avaliar o doente e os entes próximos com a aplicação deste modelo. É importante, contudo, não esquecer, que o MF deve treinar esta abordagem de uma forma contínua. Esta tarefa constitui um desafio nos dias de hoje, uma vez que existe alguma “pressão” para a realização de um grande número de consultas, sendo apenas avaliada a componente física do sofrimento individual. O MF deve colaborar com o seu EF e com outros recursos da comunidade, nomeadamente o assistente social e o psicólogo, nas situações que assim o justifiquem. O intuito é avaliar as necessidades paliativas da díade doente-família.
Outro dos pontos-chave em termos de atuação do MF é a sua capacidade de comunicar. Existe evidência que demonstra que a comunicação tem grandes benefícios nos indivíduos com doenças ameaçadoras da vida e suas famílias. 23 Assim, o MF deve desenvolver técnicas de comunicação adequadas que incluam a capacidade de escutar, de empatizar, de prestar apoio emocional e de saber resolver crises. 24 É importante o MF saber comunicar o diagnóstico e prognóstico de cada doença de forma assertiva, adaptada a cada situação clínica, bem como saber trabalhar e ajustar as expectativas do doente e família.
Outro ponto importante que os autores propõem é o empoderamento do doente e também da sua família/cuidador. Este é definido como um processo através do qual o doente ganha maior controlo sobre as decisões e ações que afetam a sua saúde. 25 A relação que se estabelece entre o doente e o médico é um fator importante para a promoção da autonomia do doente. 26 O MF deverá, de forma proativa, promover o empoderamento do doente através do esclarecimento de dúvidas, receios e mitos e desenhando os cuidados de acordo com as preferências do doente. 23
Outro dos componentes-chave que o método ACERTAR propõe, na prestação de CPG pelo MF, é a revisão regular da situação clínica e a redução do esforço terapêutico fútil, também chamado de obstinação terapêutica e que é condenado deontologicamente quando se trata de decisões em fim de vida. 27 O MF deve dar enfoque à desprescrição dos fármacos cujos potenciais danos causados ultrapassam os benefícios para determinado doente. O MF deverá ter especial atenção a algumas classes de fármacos que podem deixar de ter benefício no fim de vida: estatinas, antiagregantes/anticoagulantes, inibidores da bomba de protões e hipoglicemiantes. A desprescrição deve ser aplicada sobretudo nos doentes em fim de vida e deve ser feita com critério ético-clínico, adequando os objetivos de cuidados para cada doente. 28
Outro aspeto importante do método ACERTAR é o tratamento. Nos CSP os sintomas mais frequentemente descritos nos doentes com necessidades paliativas, no último ano de vida, são a dor, dispneia, náuseas, vómitos, obstipação, fadiga, ansiedade e depressão. 29-30 O MF deverá estar capacitado para gerir estes sintomas, através do conhecimento dos fármacos disponíveis, farmacocinética, vias de administração e posologia. Será importante a aprendizagem e treino com a via de administração subcutânea, ainda pouco utilizada em CSP. Para além de tratar os sintomas existentes é importante antecipar outros sintomas que possam eclodir ou reaparecer e é também importante monitorizar o aparecimento de eventuais efeitos secundários da medicação.
Em relação ao objetivo “antecipar” do modelo ACERTAR é sabido que o MF - devido ao relacionamento de longa duração mantido com os seus doentes e respetivos agregados familiares - se encontra numa posição ideal para dar corpo a um plano avançado de cuidados (PAC), preferencialmente numa fase precoce da doença. 18 Um estudo mostrou que os doentes se sentem confortáveis em discutir cuidados de fim de vida com o seu médico de família, quando a sua situação é estável. 31 O PAC é um processo contínuo, onde a situação clínica e o prognóstico do doente são revistos e as suas preferências são consideradas. Idealmente deve ser uma discussão conjunta entre o doente, profissionais de saúde e os familiares próximos e deve ocorrer longitudinalmente no percurso da doença. 32 O objetivo do PAC é ajudar a garantir que os doentes recebem os cuidados médicos que são consistentes com os seus valores, objetivos e preferências, especialmente se existir uma doença ameaçadora da vida ou à medida que o fim de vida se aproxima. 33-34 Entre os pontos que devem ser abordados no PAC devem constar a escolha do local de preferência de cuidados em fim de vida e a realização de Diretrizes Avançadas de Vontade (Testamento Vital). 35
Por último, o sétimo ponto-chave na atuação do MF, segundo o modelo ACERTAR, é a avaliação frequente da necessidade de consultoria ou referenciação para as ECSCP, sempre que a situação seja de maior complexidade ou caso o MF não se sinta capaz de prestar CPG. Como referido anteriormente, o PEDCP define que os doentes de complexidade baixa a intermédia deverão ser acompanhados pelo seu MF e EF e as situações de maior complexidade deverão ser acompanhadas pelas equipas específicas de CP. 2 É importante referir que mesmo que o doente não seja acompanhado pelas equipas especificas de CP, o MF pode e deve pedir consultoria a estas equipas sempre que a situação o justifique.
Conclusão
O MF tem, indubitavelmente, um papel importante no acompanhamento dos doentes com necessidades paliativas. De modo a facilitar o acompanhamento destes utentes propõe-se a utilização do método ACERTAR, para guiar o MF na prestação de CP aos seus utentes. Trata-se de um método simples de aplicar, que pode ser utilizado na realização de VD e que tem como objetivo estruturar intervenções paliativas que podem ser aplicadas aos utentes que o MF tenha identificado como tendo necessidade deste tipo de cuidados. Pretende-se, assim, divulgar um guia que possa ajudar o MF na prestação de cuidados aos utentes com necessidades paliativas, pois é seu dever não abandonar os doentes vulneráveis e garantir uma morte digna, sem sofrimento evitável.