Introdução
A diabetes mellitus (DM) é uma das doenças crónicas com maior impacto a nível mundial, estimando-se que existam atualmente perto de 500 milhões de pessoas com esta patologia.1-2 Em Portugal, a prevalência estimada na população entre os 20 e os 79 anos de idade é de 13,6%, o que corresponde a cerca de um milhão de indivíduos. 2 A prevalência de DM tem aumentado de forma progressiva nas últimas décadas, principalmente a custo da DM tipo 2, sendo que a Organização Mundial da Saúde prevê que esta tendência crescente se mantenha nos próximos anos.3-4
A DM representa um fator de risco independente de doença cardiovascular (DCV). Por outro lado, a DCV é a principal causa de morbilidade e mortalidade em pessoas com diabetes e a presença de vários fatores de risco cardiovascular em simultâneo é frequente, o que torna desafiante a prevenção de eventos cardiovasculares nestes doentes. 3,5 Em relação ao excesso de peso e obesidade, estes são uma comorbilidade frequente na DM, principalmente no tipo 2. A perda de peso, mesmo que modesta, pode estar associada a melhoria do controlo glicémico e redução do risco cardiovascular e, neste sentido, as medidas de estilo de vida são a primeira linha de atuação; contudo, na prática não apresentam eficácia a longo prazo quando utilizadas de forma isolada. 6-9 Assim, a associação da DM com a doença cardiovascular tem gerado interesse na procura de terapêuticas que permitam não só a redução dos níveis de glicose, mas também um bom controlo de fatores como o peso corporal, a tensão arterial, o perfil lipídico e as complicações renais. 1,5
Os inibidores do co-transportador tipo 2 de sódio/glicose (iSGLT2) são um agente hipoglicemiante recente, com eficácia demonstrada no controlo glicémico, independente da secreção de insulina. 1,10-12 Adicionalmente, estes fármacos demonstraram em vários estudos efeitos na redução do risco cardiovascular e renal em pessoas com diabetes e, apesar de os mecanismos não estarem completamente elucidados, incluem adicionalmente a diminuição do peso corporal, da tensão arterial, do perfil lipídico e do ácido úrico, o que iniciou um novo paradigma no tratamento e gestão da DM. 7-9,13-15 A diminuição inicial do peso corporal ocorre precocemente seis semanas após início da terapêutica, independentemente do índice de massa corporal basal. 4,9 Os mecanismos atualmente apresentados como prováveis responsáveis deste efeito incluem a perda calórica devido à excreção de glicose, a perda de água corporal devido à diurese osmótica e a perda de gordura devido a um processo metabólico complexo. 4,9,15 Para os iSGLT2 aprovados há, em média, uma perda de peso de cerca de 2 kg e reduções consistentes de hemoglobina glicada entre 0,5% e 1,4% e da glicose em jejum de aproximadamente 20 a 40 mg/dl. 4,7,12,15 Portanto, atualmente, o tratamento com iSGLT2 é indicado em doentes com DM e especialmente aqueles com doença cardiovascular estabelecida, insuficiência cardíaca ou doença renal crónica, conforme recomendado pela Associação Americana de Diabetes (ADA) e pela Associação Europeia para o Estudo da Diabetes (EASD). 15 Em Portugal, os dados publicados relativos à utilização desta classe farmacológica são escassos.
Este artigo reporta a experiência de uma unidade de saúde familiar portuguesa no tratamento de pessoas com diabetes com iSGLT2. O seu objetivo foi avaliar o efeito desta classe de fármacos no peso corporal, no perímetro abdominal, assim como no controlo glicémico, ao longo de doze meses de seguimento.
Método
Foi conduzido um estudo observacional retrospetivo. Para o efeito foi selecionada uma amostra de conveniência de todos os doentes com diagnóstico de diabetes inscritos numa unidade de saúde familiar suburbana, que iniciaram iSGLT2 entre janeiro de 2017 e dezembro de 2021 e que completaram pelo menos doze meses consecutivos de terapêutica. Foram excluídos todos os doentes com outra alteração terapêutica nos seis meses anteriores ao início da terapêutica ou durante o período de seguimento, assim como os doentes com intercorrência médica ou cirúrgica, internamento ou gravidez durante os doze meses de seguimento. Os doentes com perda de seguimento na unidade de saúde não foram incluídos na análise.
Foram recolhidos dados no início, seis e doze meses após a introdução da terapêutica, sendo que a data de referência utilizada foi a data da prescrição. As características dos doentes, como género, idade, duração da DM e tratamento antidiabético prévio foram obtidas a partir do processo clínico informatizado, através do programa SClínico®. Foram analisadas variações no peso corporal, perímetro abdominal e hemoglobina glicada (HbA1c), nos zero, seis e doze meses após início da terapêutica. A análise estatística foi realizada utilizando o programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS)®, v. 26. Foi considerado estatisticamente significativo um valor de p<0,05. As variáveis categóricas foram apresentadas sob a forma de frequências e percentagens. Médias e desvios-padrão foram utilizados para as variáveis contínuas. A comparação dos valores obtidos nos diferentes períodos de seguimento foi realizada através do teste ANOVA medidas repetidas no caso das variáveis com distribuição normal e do teste de Friedman no caso das variáveis com distribuição não normal. A influência de variáveis categóricas na variação temporal das variáveis numéricas foi analisada utilizando a mixed ANOVA medidas repetidas.
Este estudo foi realizado de acordo com os princípios da Declaração de Helsínquia e aprovado pela Comissão de Ética para a Saúde da ARS Norte.
Resultados
Do total de 962 doentes com diagnóstico de diabetes inscritos na unidade, 367 foram medicados com iSGLT2 durante o período em análise. Destes, apenas 187 preencheram os critérios de inclusão. Quanto aos doentes medicados excluídos, a maioria (44,4%; n=80) iniciou a terapêutica durante o período em análise, não tendo, no entanto, atingido os 12 meses de seguimento durante esse período. Dos restantes, 75 doentes foram excluídos por alteração da terapêutica, 16 por suspensão do fármaco antes de cumprir 12 meses de tratamento (12 dos quais por efeitos adversos e quatro por fraca adesão terapêutica do doente), seis por intercorrência médica aguda e três por perda de seguimento.
As características demográficas e clínicas dos doentes incluídos encontram-se discriminadas na Tabela 1. A idade média dos doentes incluídos na análise foi de 65 anos, observando-se uma ligeira predominância do género masculino (62%). A duração média da DM na amostra foi de 9,0 anos, com um mínimo de um ano e um máximo de 31 anos. Para efeitos de análise estatística, os utentes foram divididos em duas categorias de duração de DM: menor ou igual a 10 anos ou superior a 10 anos de duração. A maioria das pessoas com diabetes incluídas apresentava uma duração de doença inferior a 10 anos (66,3%). Foram utilizadas as categorias de índice de massa corporal (IMC) definidas pela Organização Mundial da Saúde (baixo peso, normal, excesso de peso, obesidade grau I, grau II ou grau III). No presente grupo, a maioria dos doentes, 38,5% (72), apresentava excesso de peso, seguida por obesidade grau I, 35,8% (67).
Observou-se uma grande variedade de terapêuticas antidiabéticas prévias ao início da terapêutica com iSGLT2, sendo que a mais frequente foi metformina isolada, em 32,6% (61) dos doentes, seguida por terapêutica tripla com metformina, inibidores da dipeptidil peptidase 4 (iDPP4) e sulfunilureia com 26,2% (49). A maioria dos doentes, correspondente a 65,8% (123), iniciou terapêutica com dapagliflozina (5-10 mg) e os restantes 34,2% (64) com empagliflozina (5-25 mg). Nenhum doente na amostra estava medicado com canagliflozina, também aprovada em Portugal para o tratamento da diabetes no período em análise.
As características clínicas analisadas nos três momentos de avaliação encontram-se descritas na Tabela 2. Na avaliação inicial, antes do início da terapêutica, o peso médio era de 81,5 ± 14,4 kg, a HbA1c média de 7,9 ± 1,1% e o perímetro abdominal de 105 ± 10,4 cm.
Variação de peso
Ao longo do estudo, o peso variou de forma estatisticamente significativa (p<0,001). Seis meses após o início da terapêutica foi detetada uma redução estatisticamente significativa de 2,3 ± 0,2 kg (p<0,001). Após 12 meses, ainda que em menor magnitude, foi também observada uma redução significativa adicional de cerca de 0,5 ± 0,2 kg comparativamente aos seis meses (p=0,01). No total foi observada uma redução média significativa de cerca de 2,8 ± 0,3 kg (p<0,001).
A variação da média de peso demonstrou uma redução acentuada inicial, seguindo-se um declínio gradual após os seis meses de tratamento, sem atingir o ponto de plateau aos 12 meses, como se pode observar na Figura 1. A variação de peso não foi influenciada de forma significativa pelo género (p=0,97), terapêutica antidiabética prévia utilizada (p=0,47) ou duração da DM (p=0,58). O padrão de perda de peso também não variou significativamente segundo o tipo de iSGLT2 utilizado (p=0,37) nem segundo a categoria de IMC inicial (p=0,33).
Variação de perímetro abdominal
Relativamente ao perímetro abdominal foi detetada uma variação estatisticamente significativa ao longo do tempo (p<0,001). O perímetro abdominal reduziu de forma significativa 1,5 ± 0,3 cm entre o início do estudo e seis meses após início da terapêutica (p<0,001), mas não entre seis e 12 meses (p=1,00), como observado na Figura 2.
Nenhum dos fatores analisados, género (p=0,91), terapêutica antidiabética prévia (p=0,22), duração da DM (p=0,88), tipo de iSGLT2 (p=0,16) e categoria de IMC (p=0,59) influenciou de forma significativa a variação do perímetro abdominal.
Variação de HbA1c
A média de HbA1c reduziu de forma significativa 0,9% após seis meses de tratamento, reduzindo de 7,9 ± 1,1% para 7,0 ± 0,8% (p<0,001). No entanto, este valor manteve-se estável após 12 meses de tratamento, como se observa na Figura 3. Não foram detetadas diferenças significativas entre a HbA1c aos seis e 12 meses de tratamento (p=0,53).
Adicionalmente não foram detetadas diferenças significativas no padrão de redução de HbA1c nos subgrupos de género (p=0,51), terapêutica antidiabética prévia (p=0,16), duração da DM (p=0,62) e tipo de iSGLT2 (p=0,45), nem quando estratificado para as categorias de IMC de base (p=0,38).
Discussão
A prevalência crescente de diabetes na população portuguesa, o risco cardiovascular associado e os benefícios complementares ao controlo glicémico tornam os iSGLT2 uma opção terapêutica apelativa no tratamento de pessoas com diabetes. Há uma escassez de dados relativamente à utilização destes fármacos em Portugal. O presente estudo demonstrou que, no tratamento de diabéticos no contexto de uma unidade de saúde portuguesa, após a adição de iSGLT2 ocorreu uma melhoria significativa do controlo glicémico, perda de peso e redução do perímetro abdominal.
No entendimento dos autores, este é o primeiro estudo em Portugal que avalia o efeito no peso da terapêutica com iSGLT2 em pessoas com diabetes ao nível dos cuidados de saúde primários.
De forma geral, os resultados da investigação vão ao encontro do descrito na literatura. A perda de peso com a terapêutica com iSGLT2 tem sido observada de forma consistente em vários estudos, independentemente da sua utilização isolada ou como terapêutica de combinação. Esta perda de peso parece ser dose-dependente e constituir um efeito de classe. 7,14 No presente estudo, após o início da terapêutica com iSGLT2 ocorreu uma redução de peso significativa a seis meses que, apesar do menor grau de redução, aos 12 meses ainda se revela uma perda de peso significativa, independentemente do género, do tipo de iSGLT2 utilizado e da categoria inicial de IMC. Na amostra, a redução de peso a seis meses foi de 2,3 ± 0,2 kg e foi observada uma perda total de 2,8 ± 0,3 kg a 12 meses. O resultado deste estudo é semelhante a meta-análises e estudos em contexto clínico real que revelaram uma redução de peso de cerca de 2 kg com a terapêutica com iSGLT2, sustentada até quatro anos, independentemente do IMC basal e do tipo de iSGLT2 utilizado. 3-4,7,12,15-17 O principal mecanismo proposto como responsável pela perda de peso na terapêutica com iSGLT2 é a perda calórica secundária à excreção renal de glicose. No entanto, a perda observada na clínica é substancialmente inferior ao esperado, pelo que se equaciona que mecanismos compensatórios sejam ativados. 7-8,10,18 A perda de peso sustentada pode melhorar o controlo glicémico e o risco cardiovascular, pelo que a redução ponderal é recomendada pela ADA e pela EASD nas pessoas com diabetes. No entanto, as medidas de estilo de vida e a dieta apresentam-se ainda como ferramentas limitadas quando utilizadas de forma isolada e a sua eficácia a longo prazo é moderada. 6,8 Assim, é importante a consideração de fármacos hipoglicemiantes que auxiliem a perda de peso sustentada na gestão das pessoas com diabetes. No estudo realizado nenhum dos fatores clínicos analisados influenciou de forma significativa a variação de peso. Dúvidas permanecem relativamente aos doentes que mais beneficiam do tratamento com estes fármacos, sendo que fatores como a presença de comorbilidades (e.g., a doença renal) ou o risco cardiovascular não foram considerados na investigação.
Relativamente ao perímetro abdominal, no presente estudo foram detetadas reduções estatisticamente significativas aos seis meses de cerca de 1,5 ± 0,3 cm após o início da terapêutica com iSGLT2, que estabilizaram aos doze meses. O perímetro abdominal é utilizado como um marcador de gordura visceral, representando, assim, um fator de risco cardiovascular importante.19 No entanto, poucos estudos analisaram a variação do perímetro abdominal neste contexto. A informação existente denota que a perda de peso se associa a uma diminuição da gordura corporal e, paralelamente, a uma redução ligeira mas significativa do perímetro abdominal. 20-21 Mais estudos são necessários nesta área para compreender a interligação entre a redução de gordura corporal, o perímetro abdominal e o risco cardiovascular associados à DM e à utilização de iSGLT2.
Em relação à HbA1c, este estudo mostrou uma tendência de decréscimo inicial de cerca de 0,9% a seis meses, que atinge plateau aos doze meses. Esta variação é consistente com a observada na literatura. A redução da HbA1c é descrita de forma uniforme na literatura em todos os períodos de seguimento, sendo de cerca de 1% quer comparativamente com placebo quer como terapêutica adicional em contexto clínico real. 1,3,7-8,13 No entanto, é relevante referir que o baixo valor inicial de HbA1c no presente estudo pode contribuir para a modesta amplitude de variação observada. A capacidade de redução de HbA1c dos iSGLT2, pelo seu mecanismo de ação, é dependente do valor de glicemia, o que minimiza o risco de hipoglicemias e pode justificar o baixo grau de redução observado nesta população.
Dever-se-ão reconhecer algumas limitações no estudo realizado. Em primeiro lugar, este é um estudo retrospetivo sem grupo controlo e, portanto, não foram comparadas as alterações encontradas nas pessoas com diabetes sem terapêutica com iSGLT2. Adicionalmente não foram analisados os dados relativos a doentes com necessidade de alteração de terapêutica durante os doze meses de seguimento, o que pode influenciar os resultados obtidos, especialmente relativamente ao controlo glicémico, uma vez que foram incluídos os doentes com boa resposta à terapêutica. Por outro lado, os resultados obtidos são apenas para a empagliflozina e dapagliflozina, uma vez que a canagliflozina não foi utilizada em nenhum dos doentes avaliados. O presente estudo não recolheu informações relativamente à adesão a um plano alimentar e de exercício físico, que podem influenciar de forma significativa os resultados da terapêutica com iSGLT2; contudo, a inclusão da avaliação destes fatores é complexa e de difícil aplicação ao nível dos cuidados de saúde primários. Adicionalmente não foram analisadas informações como comorbilidades, terapêutica em curso ou características socioeconómicas da amostra. Estes fatores limitam a aplicabilidade dos resultados a outras populações, assim como podem representar um viés nos resultados obtidos.
O estudo permitiu observar as alterações no peso corporal, perímetro abdominal e controlo glicémico na população diabética medicada com iSGLT2 numa unidade de saúde familiar portuguesa. Os resultados apresentados encontram-se de acordo com o descrito na literatura a nível internacional. De forma a colmatar a escassez de dados nacionais relativos a este tema, estudos adicionais são necessários para avaliar se as alterações observadas podem ser diretamente atribuídas à introdução desta terapêutica em comparação a um grupo controlo. Por último, estudos a longo prazo são fundamentais para avaliar a durabilidade da perda de peso, assim como para determinar o benefício cardiovascular do tratamento com este tipo de fármacos na população portuguesa.
Conclusão
A DM e o risco cardiovascular apresentam uma interação complexa. Dados os benefícios associados à manutenção de um peso adequado em pessoas com diabetes e os potenciais riscos do excesso de peso, o desenvolvimento de terapêuticas hipoglicemiantes associadas a perda de peso tornam-se uma arma importante na gestão terapêutica individualizada destes doentes. A redução do risco cardiovascular deverá constituir, paralelamente ao controlo glicémico, um foco principal da abordagem terapêutica das pessoas com diabetes. Este estudo permitiu concluir que, na nossa população, foram observadas reduções de peso e perímetro abdominal após a introdução de dapagliflozina e empagliflozina, assim como uma melhoria no controlo glicémico dos utentes incluídos.
Contributo dos autores
Conceptualização, CV e SS; metodologia, CV, AR e SS; software, CV, AV e RF; validação, SS e AR; análise formal, CV e SS; investigação, CV, SS, RF e AV; recursos, CV e AR; curadoria de dados, CV e SS; redação do draft original, CV e SS; revisão, validação e edição do texto final, CV, RF, AV, SS e AR; supervisão, SS e AR. Todos os autores leram e concordaram com a versão final do manuscrito.