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Revista Crítica de Ciências Sociais
versão On-line ISSN 2182-7435
Revista Crítica de Ciências Sociais no.121 Coimbra maio 2020
RECENSÃO
Gago, Verónica (2018), A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular
Rodrigo de Araujo Monteiro
https://orcid.org/0000-0002-8415-5477
Programa de Pós-graduação em Sociologia Política, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro da Universidade Cândido Mendes | Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense Rua da Assembleia, 10, 7.º Andar, Sala 702, Centro, CEP: 20011-901, Rio de Janeiro, Brasil rodearmo@yahoo.com.br
Verónica Gago
Gago, Verónica (2018), A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular. São Paulo: Editora Elefante, 367 pp. Tradução de Igor Peres
Neoliberalismo, política dos governados e precariedades: o caso de La Salada a partir de Verónica Gago
A obra da cientista social argentina Verónica Gago é apresentada ao público, em especial ao latino-americano, em um momento muito feliz para a compreensão dos desafios políticos, teóricos e metodológicos das mutações que estamos atravessando em grandes cidades latino-americanas, nas relações laborais e nas dinâmicas de gênero.
O livro surge a partir de uma pesquisa qualitativa em La Salada, um espaço de comércio popular em Buenos Aires, conhecido como “a maior feira ilegal da América Latina” (p. 37), fundado por bolivianos na década de 1990. Impulsionada a partir da crise argentina de 2001, paralelamente, Gago analisa a villa 1-11-14, noticiada como o bairro mais perigoso de Buenos Aires,1 e também aborda as chamadas Oficinas (ateliês têxteis e minifábricas de roupas – com uma média de cinco trabalhadores –, cujo número ultrapassa os 5000 em Buenos Aires). Ao leitor que desconhece La Salada bastará fazer uma breve busca na internet para ficar com noção do gigantismo bem como dos impactos e demais características da configuração socioespacial do local.
Na obra de Gago, La Salada, a villa e as Oficinas integram uma trama que propõe pensar a cidade como heterogênea, desprovida de uma ordem única, onde se pensa o trabalho, o consumo e o comunitário através do desenvolvimento de uma sociedade neoliberal a partir não só dos governos, mas também dos governados. Gago consegue apresentar uma análise com nós desatados a partir de uma rigorosa e eficaz metodologia, sem deixar a qualidade textual cair ou permitir que a leitura fique enfadonha.
O livro é instigante pela qualidade da escrita, pela engenhosidade intelectual que manobra e por operar conceitos e apresentar novas categorias para pensar com cuidado e, de forma apurada, as dinâmicas inerentes à socialização via economia popular, consumo, direitos e inclusão. Se destaca também por lançar luz sobre o aprofundamento da sociedade neoliberal, com suas contradições, paradoxos e insurgências.
A autora identifica em sua obra especificidades de relações: de trabalho, com a cidade, de consumo, de migração e de gênero a partir de perspectivas de complexidade, não se limitando a uma visão dogmática ou binária. Gago demonstra que a desigualdade aprofundada por políticas neoliberais de cima para baixo não opera apenas em padrão macro ou nas altas camadas da estrutura social, nos Consensos de Washington e nos summits do G8, mas também se produz e reproduz por meio do micro e, nesse caso, em todos os caminhos que levam à La Salada.
Analisando um contexto de extrema precariedade, Gago produz conceitos que tratam os precarizados como “agentes em resistência”, protagonistas de movimentos anti-hegemônicos e que contestam – por vias não necessariamente políticas ou de formas tradicionais – a ordem estabelecida. Segundo Gago, isso é perceptível através da formulação de desejo, contestação e ironia e através de formas de lidar com a expropriação. Gago define essa percepção com o conceito de pragmática vitalista (p. 30), ou seja, indicando que tais agentes não são seres inanimados, alienados ou passivos. Gago não apresenta seus interlocutores nem os sujeitos de sua pesquisa como vítimas, nem tão pouco como sujeitos orientados apenas pela racionalidade neoliberal, mas sim como portadores de desejos, ainda que afetados por políticas de exclusão (de direitos e de territórios).
A autora propõe pensar o neoliberalismo a partir de duas perspectivas: a de cima para baixo e a de baixo para cima. Trata-se de uma proposta metodológica para fertilizar a capacidade e a potência da obra, que pressupõe, em especial nas práticas de sociabilidade inerentes às classes populares (segmentos mais baixos das classes médias e seus grupos inferiores), que também de baixo se internalize ou se opere a partir de subjetividades que podem ser, adequadamente, chamadas de neoliberais.2
Gago destaca ainda um caráter do novo padrão de capitalismo destas economias informalizadas: a feminilização. Para a autora, este se deve a alguns fatores empiricamente observáveis, tais como maior presença pública de mulheres e deslocamento para o cenário público de características específicas do lar. Aqui, observamos a mutação do saber fazer do trabalho doméstico para o meio pelo qual se irá garantir a sobrevivência e, talvez, uma reorientação do papel atribuído ao feminino e, em especial, a um maior intercâmbio entre lar e fábrica.
Outro dado dessa nova fase da economia informalizada é a produção de caráter comunitário, encontrada, por exemplo, nos migrantes bolivianos que trabalham nas Oficinas. A autora revela os fluxos intensos que estes acabam por criar a partir de uma relação de confiança entre patrões e empregados num ambiente comunitário. Uma vez forjadas justamente nesse ambiente – e não no modelo de relações impessoais idealizado do mundo ocidental – as relações de trabalho, dominação e comunidade acabam por se tornar ainda mais turvas.
As Oficinas, espaço marcante do tal caráter comunitário, são geridas por uma nova “empresarialidade” (p. 20) e descritas como local reservado aos migrantes bolivianos, enquanto empresários ou trabalhadores precarizados. Nesse aspecto, revela Gago, o empreendedor ou empresário popular não é chamado pelos demais como patrão ou chefe, mas como “tio”, ainda que inexistam vínculos familiares. Dos trabalhadores das Oficinas, recrutados na Bolívia, se espera um saber fazer comunitário e flexível, transformando a própria percepção e construção social do comunitário em um capital. Assim, o caráter comunitário não representa, necessariamente, um retorno ao essencial, uma recusa do global, mas um modo estratégico de combinar escalas, saberes e circuitos. Aqui, ao contrário, o exercício metodológico é a tentativa de compreensão do seu significado no atual contexto do capitalismo (rentista e financista para cima, precarizado e empreendedor para baixo).
Ao trazer conceitos como economia barroca, “cidade bigarrada”, “empresarialidade”, “ensamblagem”, a obra permite construir ferramentas teóricas para dar conta de temas nevrálgicos como a migração, o trabalho, os direitos, a inclusão e as lutas feministas. A promessa representada por La Salada é a de que qualquer um pode ser empresário (ainda que seja um empreendedor popular) e, mais do que isso, de que qualquer um pode se vestir como um executivo (ainda que use cópias de roupa de marca, chamadas popularmente de “falsificadas”, mas produzidas pelos mesmos trabalhadores que produzem os originais).
Ao se referir a Chatterjee na conclusão de sua obra, Gago instiga a pensar na “política dos governados”, onde os membros de La Salada, da villa e das Oficinas não são tratados como agentes passivos ou como vítimas, mas como operadores de um complexo padrão de atividades sociopolíticas. Nesse universo estudado por Gago, os direitos não são garantidos pelo Estado – como o direito à propriedade ou como os direitos políticos – sendo estes apenas garantidos para as classes médias e superiores que possuem influência junto da chamada sociedade civil (partidos políticos, instituições públicas e privadas, entre outros). Ao contrário, o universo social estudado por Gago está excluído da sociedade civil, restando a “sociedade política” (como definido por Chatterjee e referenciado na obra), ou seja, a organização a partir de arranjos paraestatais e paralegais. Tal proposta de abordagem sociológica acaba por produzir uma revisão da dimensão clássica dominados vs. dominantes, dividindo as sociedades em dois grupos: o dos cidadãos, portadores dos direitos burgueses, e o da população, onde, na prática, seria exercida a política dos governados, como o caso de La Salada. Seria possível pensar nas populações periféricas brasileiras a partir desse paradigma?
O livro é uma contribuição essencial para quem decide pensar criticamente o neoliberalismo, pois tece uma profunda análise de como tal lógica se difundiu por baixo, demonstrando como este não se restringe a programas de privatizações, desregulação e financeirização da economia.
NOTAS
1 Ver https://brasil.elpais.com/brasil/2015/04/08/internacional/1428515768_851996.html (consultado a 24.12.2019).
2 Ver Dardot, Pierre; Laval, Christian (2016), A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo. Tradução de Mariana Echalar.