Introdução
A pandemia causada pela doença COVID-19 tem gerado mudanças radicais na vida das pessoas e das comunidades, implicando ajustes nas mais diversas áreas e contextos: educação e formação (Borges et al., 2021), vida familiar (Carroll et al., 2020; Silva et al., 2020), trabalho (Diab-Bahman e Al-Enzi, 2020) ou movimentos sociais (Pleyers, 2020). Perante os confinamentos obrigatórios, grande parte da comunicação e da interação entre as pessoas, seja profissional, pessoal ou cívica, passou para formatos online, obrigando a adaptações mais ou menos exigentes conforme os contextos e circunstâncias de cada pessoa ou coletivo, constituindo uma das mudanças mais notáveis resultantes da pandemia.
Não obstante a constatação de que a pandemia veio trazer desafios a todas as pessoas, existe já evidência de que, apesar da sua transversalidade disruptiva da vida de indivíduos e comunidades, os seus impactos têm expressões diversas, colocando certos grupos de pessoas em situações de maior vulnerabilidade (Carmo et al., 2020). Diversos autores têm vindo a sublinhar que a pandemia reforçou e reproduziu desigualdades pré-existentes (e.g., Blundell et al., 2020), tendo por base fatores como o género (Czymara et al., 2021), a pertença étnica (Hooijer e King, 2021), as desigualdades socioeconómicas (Wachtler et al., 2020) ou a idade (Pentaris et al., 2020).
Por força da evidência científica que, logo no início da pandemia, indicava que as pessoas com 70 e mais anos tinham maior vulnerabilidade em relação à infeção por SARS-CoV-2 e às suas consequências mais gravosas (Rothan e Byrareddy, 2020), as pessoas mais velhas acabaram por se transformar num grupo especialmente lesado no que respeita aos impactos da pandemia, sobretudo se pensarmos em questões como o isolamento (Pentaris et al., 2020) ou a evolução de outras doenças, como a demência, que afeta maioritariamente os mais velhos (Lazzari e Rabottini, 2021). Contudo, estudos realizados logo no primeiro ano da pandemia, isto é, em 2020, começaram a demonstrar que as pessoas adultas mais velhas evidenciaram menores níveis de stress e maior capacidade de resiliência em relação à pandemia e às suas contingências quando comparados com os mais jovens (Nelson e Bergeman, 2021).
Diversas medidas e orientações foram tomadas tendo apenas por base critérios etários, desconsiderando outras dimensões que devem ser tidas em conta para a avaliação de fatores de risco e de vulnerabilidade. Esta situação foi dando aso a crescentes situações de violação de direitos das pessoas mais velhas, nomeadamente no que diz respeito aos seus direitos enquanto cidadãs (D’Cruz e Banerjee, 2020). Também na comunicação social, a perceção de fragilidade e de vulnerabilidade das pessoas mais velhas foi explorada persistente e intensamente, reforçando imagens estereotipadas, nomeadamente em Portugal (Filipe, 2020).
Paralelamente às situações de discriminação a que se assistiu a nível global, fortaleceram-se movimentos que reivindicam a garantia dos direitos das pessoas adultas mais velhas e que denunciam a violação dos mesmos, com diversas organizações internacionais a defender a criação de uma convenção das Nações Unidas sobre os direitos das pessoas mais velhas.2 Em Portugal esta discussão começa a ser feita em alguns contextos (essencialmente na academia e em associações), mas há ainda um longo caminho a percorrer, nomeadamente no que respeita à visibilidade das reivindicações e dos alertas apresentados.
Neste estudo procuramos perceber como é que uma associação, constituída e totalmente dinamizada por pessoas adultas mais velhas reformadas, se organizou para dar resposta às limitações à sua ação trazidas pela pandemia e como foi acompanhando o seu impacto na vida dos mais velhos, considerando aquela que é a sua missão: representar as pessoas mais velhas junto do poder político e reivindicar os seus direitos. Recorrendo a uma etnografia online ao longo dos primeiros 18 meses de pandemia, foi acompanhada a página pública da APRe! - Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados na rede social Facebook, complementada com contactos pontuais com dirigentes da associação (por telefone ou e-mail).
1. A participação das pessoas adultas mais velhas em contexto pandémico e o desocultar de fenómenos idadistas
Os movimentos protagonizados por pessoas adultas mais velhas têm vindo a desempenhar um papel relevante para o aumento da reflexão sobre a velhice e o envelhecimento. Assumindo-se como representantes das pessoas mais velhas, há já evidência de que estas organizações se debatem com dificuldades de mobilização e retenção de pessoas em situações de maior vulnerabilidade ou de exclusão social (Serrat et al., 2018). Isto sugere que na velhice, tal como noutras etapas do ciclo vital (Ribeiro et al., 2016), a participação é fortemente condicionada pelo maior ou menor capital cultural e social que as pessoas vão acumulando ao longo da vida (Barnes et al., 2012), o que reforça a necessidade de se olhar para o envelhecimento a partir de uma perspetiva interseccional (Holman e Walker, 2021).
Nas últimas décadas tem aumentado o interesse pelo estudo da participação das pessoas mais velhas (Serrat et al., 2020). Apesar de ser ainda pouco visível (Almeida, 2016), a participação social, cívica e política protagonizada por pessoas mais velhas tem expressão nessas áreas em Portugal (Martins et al., 2021).
O conceito de participação é complexo e permeável a muitas interpretações (Zask, 2011). Ekman e Amnå (2012) propuseram uma tipologia abrangente para a análise da participação política e do envolvimento cívico, considerando formas latentes e manifestas de participação, bem como experiências de participação individuais e coletivas. As organizações constituídas por pessoas mais velhas e que têm como objetivo representá-las, nomeadamente junto do poder político, são uma expressão da participação política manifesta e coletiva, sendo consideradas por Ekman e Amnå (ibidem) como participação política formal.
Estudos focados em narrativas de ativistas mais velhos envolvidos em contextos políticos formais, como sindicatos, partidos políticos e associações de moradores (Serrat et al., 2021) contribuem para uma mais alargada compreensão deste fenómeno, potenciando a sua leitura a partir de uma perspetiva mais política, como defendiam Martinson e Minkler (2006), argumentando a necessidade de o analisar a partir da gerontologia crítica.
Organizações de pessoas mais velhas e/ou que as representam, têm vindo a organizar-se com o assumido intuito de defesa dos seus interesses e direitos. A nível europeu temos como exemplo agregador a AGE Platform Europe,3 da qual são membros mais de 150 organizações de diferentes países. Estas organizações têm vindo a trazer para o debate público e político questões prementes para as pessoas mais velhas, com destaque para fenómenos como o idadismo.4
O ano de 2020 será para sempre recordado como um marco no que diz respeito ao reconhecimento e aumento da preocupação com o fenómeno do idadismo. De acordo com os dados do European Social Survey, o idadismo é o fenómeno de discriminação com maior taxa de prevalência, tendo mais expressão do que a discriminação de género e racial (Ayalon, 2014). As experiências de idadismo associam-se a níveis mais baixos de bem-estar subjetivo, tanto em termos de satisfação com a vida, como de felicidade (Abrams e Swift, 2012).
Definido pela primeira vez por Robert Butler (1969), o idadismo tem vindo a ser estudado em diversos contextos (e.g., Ayalon e Tesch-Römer, 2018) e pode resumir-se como a expressão explícita ou implícita de estereótipos, positivos ou negativos, de preconceitos e/ou de discriminação, contra (ou em benefício de) pessoas mais velhas, com base na sua idade cronológica, podendo verificar-se a nível micro, meso ou macro (Iversen et al., 2009). Este fenómeno manifesta-se tanto na relação entre indivíduos como a nível institucional e estrutural, ou seja, na forma como a sociedade e as suas instituições reforçam esta perspetiva estereotipada e discriminatória em relação às pessoas mais velhas, seja nas famílias (Gordon, 2020), nos contextos de trabalho (Cabral e Ferreira, 2014) ou nas instituições de prestação de cuidados (Forss, 2020).
A pandemia veio tornar mais flagrantes os fenómenos de idadismo (Previtali et al., 2020), tanto ao nível da interação social (Vervaecke e Meisner, 2021) como, e de forma dramática, nas instituições e na sociedade. Um relatório divulgado em agosto de 2020 em Espanha revelou uma realidade alarmante em muitas instituições residenciais para pessoas idosas.5 Também na forma como a comunicação social explorou a questão da idade na sua relação com a pandemia houve situações flagrantes de idadismo (Filipe, 2020). Assim, a pandemia contribuiu para acentuar e, consequentemente, expor um fenómeno que era já uma realidade tanto em Portugal como no resto do mundo.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) deu, em março de 2021, um passo relevante ao lançar uma campanha global de combate ao idadismo, procurando mobilizar governos, organizações da sociedade civil e cidadãos/ãs.6 Objetivamente esta campanha da OMS poderá ser um contributo fundamental para o reconhecimento e identificação do idadismo, já que, como acontece com outros fenómenos semelhantes, o reconhecimento da sua existência é o primeiro passo para o combater.
2. A inclusão digital como resposta aos constrangimentos trazidos pela pandemia
A inclusão digital de pessoas adultas mais velhas era, muito antes da pandemia, um tema premente nas discussões académicas e políticas sobre envelhecimento. Em 2007 a União Europeia (UE) assumiu a inclusão digital como uma prioridade estratégica, apelando à mobilização para uma sociedade digital para todas as pessoas. Neste apelo, evidenciaram a importância da inclusão digital das pessoas da UE com mais de 64 anos. À altura, na UE, apenas 10% das pessoas com mais de 64 anos utilizavam a Internet, enquanto a média europeia de utilizadores era de 47%.7
Têm-se problematizado estratégias levadas a cabo por diferentes países e instituições com vista a uma maior inclusão digital das pessoas mais velhas (e.g., Hepburn, 2018). A tentativa de compreender as suas motivações para a utilização da tecnologia originou estudos a partir dos quais se reforçou a perspetiva de que, entre os mais velhos, existem diferentes razões para a utilização de dispositivos tecnológicos e da Internet. Destaca-se a dimensão instrumental da tecnologia, que inclui, entre outras coisas, a possibilidade de comunicar com outras pessoas (Pelizäus-Hoffmeister, 2016). Isto reforça a ideia de que as pessoas mantêm o interesse pela aprendizagem ao longo de toda a vida e que a educação poderá ser fundamental para que as pessoas se mantenham mais autónomas e independentes em etapas mais avançadas do ciclo vital (Boulton-Lewis et al., 2006).
Não obstante os esforços para a inclusão digital anteriores à pandemia, foi possível constatar que esta terá reforçado situações de solidão e isolamento entre as pessoas mais velhas (Seifert, 2020), como aliás seria previsível considerando a evidência científica existente em relação à literacia digital dessas pessoas, que alertava para a necessidade de se desenvolverem abordagens mais criativas e desafiantes (Rasi et al., 2021). Contudo, com a pandemia verificou-se que, perante a necessidade de adaptação a novas circunstâncias e de desenvolvimento de novas competências (nomeadamente digitais), muitas pessoas mais velhas fizeram esta transição para meios de comunicação online, desenvolvendo competências mais ou menos aprofundadas conforme as suas circunstâncias, necessidades e interesses (Martínez-Alcala et al., 2021).
A pandemia veio sublinhar a grande heterogeneidade que caracteriza as pessoas com idades mais avançadas, nomeadamente no que respeita às suas necessidades de aprendizagem e de desenvolvimento de competências. A transição para a aprendizagem online trouxe desafios e oportunidades (Adedoyin e Soykan, 2020), contribuindo para o lançamento de novas questões - inclusive no que à educação de adultos mais velhos diz respeito (Talmage et al., 2020). Alguns autores avançam que é possível que a pandemia venha, através do mais acelerado desenvolvimento de competências digitais das pessoas mais velhas, contribuir para potenciar o contacto intergeracional, reduzir o isolamento social das mesmas e aumentar a sua capacidade para mais autonomamente gerirem questões pessoais e formais que tendem a ser cada vez mais digitalizadas (Morrow-Howell et al., 2020).
Em Portugal, a partir de dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística,8 podemos perceber que, entre 2017 e 2021, era entre os grupos etários mais velhos (55-64 anos e 65-74 anos - pois não existem, ou pelos menos não são disponibilizados, dados sobre grupos etários mais avançados) que se verificava um aumento mais acentuado do número de pessoas que utilizavam a Internet, sendo certo que era também entre estes grupos etários que se encontra(va)m as mais baixas taxas de utilização. Em 2017, 56,4% das pessoas que tinham entre 55 e 64 anos utilizaram Internet nos 12 meses anteriores à entrevista, enquanto que em 2021 a percentagem aumentou para os 71,5%. Por sua vez, no grupo etário dos 65 aos 74 anos, a percentagem de utilização era de 32,6% em 2017 e passou para 49,2% em 2021. Ainda que este facto possa também dever-se a alguma renovação geracional (embora se trate apenas de um período de quatro anos), a pandemia e a necessidade de uma transição para a comunicação online podem ter contribuído maioritariamente para esta alteração. O facto de o aumento mais expressivo da percentagem de utilizadores da Internet ter ocorrido entre 2019 e 2020 reforça esta explicação (55-64 anos: 2019 - 59,3%, 2020 - 67,6%; 65-74 anos: 2019 - 34,1%, 2020 - 40,4%).
Este incremento do uso da Internet não envolveu, durante a pandemia, apenas as pessoas individualmente. Também as associações e coletivos ativistas foram confrontados com o confinamento e tiveram que reforçar o uso das redes sociais que existia já antes da pandemia (Haßler et al., 2021). No entanto, e embora a investigação revele a existência de uma relação positiva entre o uso das redes sociais e a participação cívica e política (Boulianne, 2015), não há, tanto quanto sabemos, estudos que tenham explorado a forma como a esfera digital foi um contexto de participação cívica e política das pessoas mais velhas.
3. A etnografia online como estratégia metodológica para acompanhar o trabalho de uma associação durante a pandemia
As etnografias online têm vindo a ganhar cada vez mais espaço enquanto opção metodológica. Devido à disseminação que o Facebook tem tido nos mais diversos contextos e à forma como esta rede social é organizada, têm vindo a aumentar os estudos em que o Facebook é utilizado como contexto preferencial de recolha de dados etnográficos. Em estudos como os de Baker (2013) - desenvolvidos com jovens - ou os de Airoldi (2018) - com estudantes europeus em programas de mobilidade - é evidenciado o potencial do Facebook enquanto “contexto” em estudos etnográficos. Têm vindo a ser discutidos as vantagens e os limites desta abordagem com autores/as alertando para duas dicotomias que se cruzam entre si: a distinção entre os domínios público e privado, por um lado, e entre espaço online e offline, por outro (Eysenbach e Till, 2001; Baker, 2013). Em redes sociais como o Facebook estas distinções são cada vez menos claras, podendo gerar questões ontológicas potencialmente problemáticas em investigações etnográficas (Baker, 2013).
Consideramos que neste estudo a dicotomia entre espaço público e privado, frequentemente associada às questões da privacidade de quem participa, poderá estar mais esbatida, uma vez que foi analisada a página pública de Facebook de uma associação e não de pessoas concretas. Confrontamo-nos, contudo, com uma outra questão, que se prende com o pedido ou não de consentimento para a recolha de dados, apesar do carácter público da página de Facebook em análise. Alguns autores consideram que quando se trata de analisar dados inequivocamente públicos, partilhados com o claro interesse de ter visibilidade pública, a questão do consentimento não se coloca (Eysenbach e Till, 2001). Este é, claramente, o caso desta associação de cariz ativista que usa o Facebook como uma das suas plataformas de comunicação com o exterior. Contudo, o pedido de consentimento em recolhas de dados online continua a ser uma questão ética premente (Roberts, 2015) que decidimos salvaguardar. Como tínhamos já contactado com a associação no âmbito de um estudo mais alargado sobre participação social, cívica e política de pessoas mais velhas em Portugal (Martins et al., 2021), pedimos consentimento à Direção da associação para a realização desta etnografia online (via e-mail). Numa reunião posterior, na qual se abordou a questão da salvaguarda da confidencialidade da identidade da associação - como previsto no protocolo de gestão de dados -, foi-nos solicitado que identificássemos explicitamente a associação. A Direção considerou que a ocultação da identidade da associação seria mais uma forma de invisibilidade, o que é sentido como um dos problemas com que se deparam na sua ação enquanto associação cívica.
Assim, neste estudo acompanhamos a página pública de Facebook de uma associação constituída e totalmente dinamizada por pessoas reformadas em Portugal, a APRe! - Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados. Esta associação surgiu em 2012, no seguimento da sua mobilização contra a proposta do Governo de avançar com um novo imposto sobre as reformas. Definem-se como uma associação cívica, laica, apartidária, sem fins lucrativos e de âmbito nacional, e querem representar as pessoas aposentadas e reformadas enquanto “cidadãos de pleno direito”, na expectativa de assim contribuírem para “uma sociedade mais justa e solidária”. Reivindicam um “papel activo na definição das políticas públicas”, procurando envolver-se com outras entidades - públicas e da sociedade civil - para “lutar contra a discriminação da terceira idade” e advogar um “envelhecimento participativo”.9
A APRe! tem vindo a ter alguma visibilidade a nível nacional, que resulta da sua mobilização para participar no debate público e político sobre questões relacionadas com pessoas mais velhas, envelhecimento e proteção social. Tem tido presença na comunicação social e desenvolvido diversas iniciativas em diferentes locais do país relacionadas com a sua missão e interesses, inclusivamente em parceria com outras instituições. Está representada em organizações nacionais, como o Conselho Económico e Social ou a ADSE - Assistência na Doença aos Servidores do Estado, e internacionais, como a AGE Platform Europe e o OEWGA (sigla em inglês do Grupo de Trabalho Aberto para o Envelhecimento), da Organização das Nações Unidas. A associação tem atualmente cerca de 4500 pessoas associadas, organizando-se no território nacional em quatro delegações regionais e vários núcleos locais.
O início da pandemia coincidiu com a eleição (a 28 de fevereiro de 2020) e posterior tomada de posse dos novos órgãos sociais da associação (que aconteceu já em formato online no início de abril de 2020). As reuniões entre os membros da Direção aconteceram sempre através de plataformas de comunicação online, como o Zoom. Tal como sucedeu com todas as outras pessoas que tiveram que fazer esta transição para os ambientes digitais (e.g., Borges et al., 2021), isto obrigou a um processo de aprendizagem para a utilização destas plataformas e de outros recursos digitais.
Este estudo foi desenvolvido entre janeiro de 2020 e junho de 2021, procurando-se um acompanhamento exaustivo da página pública de Facebook da APRe! (totalmente gerida pelos seus membros efetivos), nos primeiros meses da pandemia de COVID-19. Consultámos a página duas a três vezes por semana nesse período e as publicações realizadas foram registadas num documento Excel, no qual constam: data da publicação, tema/assunto da publicação, conteúdo da publicação, e link para a publicação.
Posteriormente foi realizada uma análise de conteúdo categorial do material recolhido (Vala, 2007). As categorias foram definidas e discutidas entre os/as autores/as deste trabalho, que participaram na codificação e revisão do material analisado. Tendo em conta os objetivos da pesquisa desenvolvida, a definição das categorias obedeceu aos atributos que garantem a sua validade interna, designadamente: objetividade, exclusividade e exaustividade (Vala, 2007).
No seguimento do que é proposto por outros investigadores (Baker, 2013), mantivemos contacto direto com membros da organização por telefone, e-mail e reuniões por Zoom. Todos estes contactos foram registados e guardados como notas de campo ao longo destes 18 meses. Após a recolha e uma primeira análise dos dados, foi realizada uma reunião com membros da Direção da APRe! para devolução e discussão dos dados recolhidos e analisados. Através desta etnografia online procurámos perceber como é que a associação deu resposta aos constrangimentos à sua ação trazidos pela pandemia, por um lado, e como se foi posicionando, ao longo do período analisado, em relação ao impacto da pandemia na vida das pessoas mais velhas.
Perante a pandemia, a atividade da associação passou a acontecer maioritariamente online, tendo sido reativados canais de comunicação que já tinham existido, e foram desenvolvidas novas estratégias e iniciativas para poderem dar continuidade ao trabalho que constitui a sua missão: a representação das pessoas mais velhas junto do poder político e a reivindicação dos seus direitos. Na página pública de Facebook, que tem aproximadamente 5500 seguidores, foram realizadas 114 publicações durante o período analisado no âmbito deste estudo (janeiro de 2020 a junho de 2021, ver Figura 1).
As variações na intensidade das publicações ao longo do tempo podem associar-se por exemplo à evolução da própria pandemia: o período de março e abril de 2020 correspondeu ao primeiro confinamento, durante o qual foram sobretudo partilhadas informações e alertas sobre a COVID-19 e suas possíveis consequências para as pessoas mais velhas; o mês de outubro de 2020 coincidiu com a efeméride do Dia Internacional das Pessoas Idosas, mote para a partilha de documentos e eventos diversos; em março de 2021 a Campanha Global de Combate ao Idadismo foi tema de diversas publicações.
4. Participação cívica e política na velhice em tempos de pandemia - Transições e adaptações de uma associação portuguesa de pessoas reformadas
A partir da análise das publicações da APRe! na sua página pública de Facebook foram definidas quatro categorias: “Notícias” (24), “Divulgação” (44), “Intervenções na comunicação social” (26) e “Reivindicação política” (20), como apresentado na Tabela 1.
Número de publicações | |
---|---|
Notícias | 24 |
Notícias APRe! | 15 |
Breves | 9 |
Divulgação | 44 |
Divulgação de eventos | 30 |
Informações institucionais | 6 |
Divulgação de documentos | 8 |
Intervenções na comunicação social | 26 |
Reivindicação política | 20 |
Comunicações com o Governo | 3 |
Comunicados | 15 |
Petições | 2 |
Fonte: elaboração própria.
4.1. Notícias
Nas publicações identificadas como “Notícias” incluem-se os documentos Notícias APRe! e Breves, publicados pela associação.
4.1.1. Notícias APRe!
Em abril de 2020 foi lançado o primeiro número do Notícias APRe!, que pretende ser um canal de comunicação institucional (sobretudo interna, mas também externa), tendo sido publicados 15 documentos no período em análise. Nas Notícias APRe! são publicados textos reflexivos sobre temas diversos (de que são exemplo o idadismo, a violência contra as pessoas mais velhas, o voluntariado), iniciativas promovidas pela associação (com informação sobre iniciativas futuras ou notícia sobre iniciativas já realizadas) e outras informações relevantes, nomeadamente de entidades nacionais (como por exemplo a Direção Geral da Saúde) ou internacionais (como a AGE Platform Europe ou o OEWGA). Foram aqui divulgados na íntegra os contributos da associação para documentos políticos estratégicos, como por exemplo o Plano de Recuperação e Resiliência que esteve em discussão pública em fevereiro de 2021. Esta publicação tem regularidade mensal; é organizada por membros da Direção da associação e conta regularmente com textos e outros contributos de outras pessoas associadas. As Notícias APRe! são enviadas por correio eletrónico, ou por correio tradicional (em formato impresso) para quem, entre as pessoas associadas, o peça explicitamente (cerca de 300 pessoas).
4.1.2. Breves
A associação elabora e divulga outras publicações mais pequenas (denominadas como Breves), sem regularidade pré-determinada, sobre temas concretos que consideram relevante destacar. No período estudado foram publicadas nove Breves: sobre violação de direitos das pessoas mais velhas devido à pandemia e sobre a salvaguarda de direitos numa perspetiva mais abrangente, como a celebração de datas como o 25 de Abril ou o 8 de março (Dia Internacional das Mulheres).
4.2. Divulgação
Publicações com o intuito de divulgar eventos, informações institucionais e documentos de relevo para a associação tiveram uma expressão significativa entre as publicações nesse período, como se pode ver na Tabela 1.
4.2.1. Divulgação de eventos
A divulgação de eventos (30), organizados pela associação (22) ou em que participou (8), constituiu boa parte das publicações realizadas nesse período na página pública de Facebook. Praticamente todas as atividades presenciais previstas para o ano de 2020 foram suspensas. No entanto, a APRe! realizou o seu encontro nacional em formato presencial, em Lisboa, em outubro de 2020, com várias pessoas convidadas para discutir a questão da pandemia e os seus impactos para as pessoas mais velhas. Considerando a situação pandémica e as restrições ao número de participantes, a Conferência foi também transmitida online, através da página do Facebook e do canal de YouTube da associação. Desta forma procuraram assegurar que mais membros da associação, bem como outras pessoas interessadas no tema, assistissem à Conferência.
Em 2021, a APRe! criou e dinamizou novas atividades online. Em janeiro de 2021 começaram a dinamizar um ciclo de webinars mensais sobre temas diversos, sob o mote “Aceite o convite para falar de…”. Na Tabela 2 sistematizamos os temas dos webinars, bem como as datas da sua realização. Para estas conversas foram convidadas pessoas externas à associação ou membros com conhecimentos nos temas em discussão.
Ciclo de webinars “Aceite o convite para falar de…” | Data |
---|---|
“Campanha de vacinação contra a COVID-19” | Janeiro 2021 |
“Pandemia, pandemónio e saúde mental” | Fevereiro 2021 |
“A mulher em Portugal desde o Estado Novo” | Março 2021 |
“25 de Abril: o que ainda temos para andar…” | Abril 2021 |
“Duas décadas de reformas regressivas” | Maio 2021 |
“Violência sobre pessoas mais velhas” | Junho 2021 |
Fonte: elaboração própria.
4.2.2. Informações institucionais
As informações sobre o funcionamento interno da APRe! divulgadas na página pública do Facebook são relativamente poucas (apenas seis) e são todas de 2020 e anteriores à reabertura do grupo privado de Facebook para associados, reativado em março de 2020, para onde terá transitado a partilha deste género de informações (como atas de assembleias gerais, por exemplo).
Na página pública de Facebook da associação foi colocada, em março de 2020, informação sobre a reativação deste grupo, apelando-se à participação dos associados e à integração de novos membros na associação. Este é um grupo de partilha e discussão entre as pessoas associadas e tem pessoas responsáveis pela sua moderação. No n.º 1 das Notícias APRe! foi explicado que as publicações no grupo seriam sujeitas a aprovação prévia pelas pessoas responsáveis pela administração do grupo, para evitar a circulação inadvertida de notícias falsas ou informações incorretas. No final do período em análise, o grupo tinha aproximadamente 1000 membros.
4.2.3. Divulgação de documentos
Em conformidade com a intenção da associação de partilhar informação relevante sobre envelhecimento e condições de vida na velhice com as pessoas associadas e com a comunidade em geral, verificámos que no período em análise divulgaram alguns documentos/publicações que correspondem a esse intuito na página pública de Facebook, incluindo relatórios nacionais e internacionais sobre a COVID-19 e sobre idadismo.
4.3. Intervenções na comunicação social
O trabalho da associação em prol dos direitos das pessoas adultas mais velhas junto da comunicação social (desde o seu surgimento, em 2012), e o foco que a pandemia acabou por dar a estas, terão contribuído para que a associação tenha tido uma presença regular nos meios de comunicação social nacionais. A APRe! foi frequentemente chamada para participar em direto em telejornais diários, para comentar temas da atualidade para a imprensa escrita, para colaborar com artigos de opinião em jornais nacionais, entre outros. Na página pública de Facebook foram partilhadas 26 intervenções de representantes da associação na comunicação social. Destas 26 publicações, 10 relacionam-se explicitamente com situações de idadismo, de que são exemplo a possibilidade que chegou a ser equacionada de existirem regras de desconfinamento distintas em função da idade (em dezembro de 2020), ou a discriminação das pessoas mais velhas que vivem em instituições residenciais no exercício do direito ao voto (em janeiro de 2021, aquando das eleições presidenciais).
4.4. Reivindicação política
As publicações realizadas na página pública de Facebook da associação vão ao encontro da sua natureza enquanto organização eminentemente política e reivindicativa. Assim, as publicações identificadas como de reivindicação política foram organizadas em três subcategorias: comunicações com o Governo (3), comunicados (15) e petições (2).
4.4.1. Comunicações com o Governo
As interpelações ao Governo e a outros atores políticos fazem parte da ação da associação, como podemos ver em publicações com as propostas dirigidas à Comissão de Orçamento e Finanças da Assembleia da República para a proposta de lei do Orçamento de Estado para 2021 (10 de novembro de 2020), e nas questões dirigidas à Ministra da Saúde sobre o Plano de Vacinação, numa altura em que começou a ser posto em causa o plano definido para as pessoas com mais de 60 anos bem como a qualidade e a segurança da vacina que estava a ser administrada à maioria das pessoas dos grupos etários mais avançados (15 de junho de 2021). Para além disso, a APRe! partilhou informação sobre o resultado da petição número 642/XIII/4.ª, uma iniciativa sua, na qual se solicitava alteração da legislação relativa ao Complemento Solidário para Idosos (21 de julho de 2020).
4.4.2. Comunicados
No período em análise foram divulgados na página pública de Facebook 15 comunicados. Estes relacionam-se maioritariamente com o impacto da pandemia na vida das pessoas mais velhas. É disto exemplo o comunicado publicado em março de 2020, no qual a APRe! manifestava preocupação em relação ao maior risco que as pessoas com mais de 70 anos corriam perante a pandemia que na altura se começava a conhecer, apelando a uma ação urgente das autoridades portuguesas para minimizar os impactos da pandemia junto das pessoas mais velhas.
Para além disso, fenómenos de idadismo estiveram na origem de vários comunicados, podendo dar-se como exemplo o comunicado que foi apresentado contestando os limites etários impostos nos espetáculos teste promovidos pelo Governo, em maio de 2021:
A APRe! exige ver esclarecidos, com toda a urgência e publicamente, os motivos que justificam a inédita limitação da idade das pessoas admitidas para assistirem aos eventos já realizados na cidade de Braga […] Recordamos que as pessoas com 65 anos ou mais são cidadãs de pleno direito e muito ciosas de todos os seus direitos, em todos os momentos da sua vida […]. Não aceitamos atestados de menoridade nem assomos de segregacionismo com base na idade.10
Os restantes comunicados não se relacionam diretamente com a pandemia, mas sim com questões políticas que impactam a vida das pessoas mais velhas, como a questão da atualização das pensões. Para além dos comunicados próprios, foram também partilhados seis comunicados da AGE Platform Europe, em 2020, relacionados com a pandemia e as pessoas mais velhas.
4.4.3. Petições
Ainda que a APRe! tenha partilhado sobretudo iniciativas por si promovidas, pontualmente partilhou e divulgou iniciativas com as quais se identifica e que vão ao encontro da sua missão, como uma petição pública sobre os lares de idosos, partilhada em junho e agosto de 2020.
Discussão e considerações finais
A pandemia de COVID-19 originou grandes disrupções à escala global, trazendo novos desafios para a vida das pessoas. A transição para processos de comunicação mediados por dispositivos eletrónicos obrigou a uma adaptação e desenvolvimento de competências digitais sem precedentes, obrigando também as organizações a reorganizar as suas lógicas de trabalho e de ação, com as redes sociais a assumir para algumas organizações um destaque que nunca tinham tido enquanto estratégias de comunicação primordial. Com este estudo percebemos que a APRe!, um exemplo desse fenómeno, reconfigurou o seu trabalho, transitando a maioria da sua comunicação para o formato digital.
Esta transição aconteceu ao mesmo tempo que o fenómeno do idadismo se tornou mais visível e quotidiano, expressando-se nas mais diversas esferas da vida das pessoas adultas mais velhas e na sua interação com praticamente todas as estruturas da sociedade. A questão do idadismo acabou por ser transversal ao longo do período analisado, sendo manifesta e explícita em muitas das publicações realizadas pela associação. Isto vai ao encontro do crescente movimento de denúncia de situações de idadismo que tem vindo a acontecer globalmente, inclusivamente por entidades internacionais11 e na comunidade científica (e.g., Fraser et al., 2020).
A flagrante perda de direitos dos mais velhos, cujo potencial de agravamento parecia proporcional ao aumento dos casos de COVID-19, colocou esta associação perante a urgência de agir e de se fazer ouvir na sociedade portuguesa. O Facebook passou a ser um dos canais de comunicação mais relevantes da organização, nomeadamente entre os seus membros (através do grupo reservado a associados, reativado em março de 2020, e da página pública), sendo que divulgaram a partir desta plataforma todas as iniciativas que promoveram e em que participaram. A necessidade de um maior acesso a recursos online para comunicar e aceder a informações - através de redes sociais ou de plataformas como o Zoom, bem como para dinamizar novas atividades, como os webinars - poderá ter contribuído para a melhoria das competências digitais dos membros da APRe!, como aconteceu noutros contextos durante a pandemia (Martínez-Alcala et al., 2021).
Esta possibilidade de um rápido desenvolvimento de competências digitais dos membros da associação, que valeria a pena explorar em estudos futuros, fortalece-se nas pistas que se encontram na literatura que indica que as motivações são fundamentais em qualquer processo de aprendizagem, inclusive para as pessoas mais velhas (Boulton-Lewis et al., 2006). Neste caso, a utilidade e a necessidade da tecnologia terá sido um fator fundamental para que muitas pessoas se disponibilizassem a usar novas ferramentas ou a explorar mais aprofundadamente as suas possibilidades, como sugeria Pelizäus-Hoffmeister (2016). Apesar da amplamente discutida exclusão digital das pessoas mais velhas, que é muitas vezes usada como mais um rótulo totalizador, percebemos que este coletivo ativista, como outros (Haßler et al., 2021), potenciou o recurso ao espaço digital para continuar a fazer o seu trabalho de reivindicação política durante a pandemia. A par dos dados que demonstram o aumento do uso da Internet entre as pessoas mais velhas,12 consideramos que este estudo de caso pode contribuir para evidenciar a diversidade que existe entre as pessoas adultas mais velhas em Portugal, concretamente em relação a esta questão do uso das redes sociais.
Desde o início da pandemia, as publicações na página pública de Facebook da APRe! relacionaram-se sobretudo com tensões com as quais, ao longo desse período, as pessoas mais velhas foram confrontadas, acompanhando os grandes debates da atualidade e reforçando o seu perfil eminentemente político. Alertaram para a perda e violação de direitos das pessoas mais velhas enquanto cidadãs (D’Cruz e Banerjee, 2020) e procuraram dar informação fidedigna e contrariar notícias falsas veiculadas durante a pandemia. Também as intervenções da associação na comunicação social foram recorrentes e tinham em grande medida o intuito de contrariar narrativas idadistas que se reforçaram durante a pandemia, nomeadamente nos e pelos próprios meios de comunicação social (Filipe, 2020).
A opção metodológica por uma etnografia online comporta dilemas éticos e limites à recolha, análise e interpretação dos dados. Tal como outros/as autores/as evidenciaram, a recolha passiva de dados online poderá, entre outras questões, ter impacto na qualidade dos dados recolhidos, uma vez que se perde a riqueza subjacente a um contacto direto com os/as participantes (Roberts, 2015). Num estudo com estas características, acedemos apenas ao discurso formal e público da associação e não aos debates e posicionamentos internos dos seus membros, que certamente são imbuídos de uma riqueza a que esta abordagem metodológica não permite alcançar. Considerando os limites desta abordagem, importa destacar as suas potencialidades, nomeadamente perante constrangimentos severos no acesso aos contextos em análise, como os verificados durante a pandemia.
Com esta análise fica, mais uma vez, evidente a distância entre as pessoas mais velhas, neste caso portuguesas, e as imagens estereotipadas que ainda prevalecem e que, apesar de não corresponderem à realidade de uma larga maioria, continuam a ter impacto na definição de políticas e no modo como a sociedade se organiza e se relaciona com essas pessoas.