Introdução
As primeiras populações ciganas chegaram a Portugal no século XV e, hoje, compõem a comunidade com as piores condições de vida do país, e este artigo apresenta pistas sobre as razões dessa marginalização social, mostrando ainda que o Estado português, após se tornar membro da União Europeia no final da década de 80 do século passado, elaborou e implementou algumas políticas públicas de viés compensatório (emprego, saúde, educação, etc.) com foco nas classes populares, o que permitiu que tais políticas, mesmo de forma indireta, atingissem alguns grupos da população cigana2.
Essas problemáticas são aqui contextualizadas com a intenção de apresentar o tema central da pesquisa: problematizar a primeira política pública de ação afirmativa direcionada à permanência dos estudantes ciganos no ensino superior português - o Programa Operacional de Promoção da Educação (OPRE)3, financiado pelo Programa Escolhas, ligado ao Alto Comissariado para as Migrações, com a parceria da Associação de Investigação e Dinamização das Comunidades Ciganas (Letras Nômadas) e da Rede Portuguesa de Jovens para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens, sendo que a última entidade esteve presente apenas nos dois primeiros editais/regulamentos. As perguntas a que o estudo responde são: Em que contexto surgiu o programa de ação afirmativa para os estudantes ciganos no ensino superior português? O OPRE é uma estratégia/ação importante de democratização do ensino superior português? As políticas de educação compensatória - em especial, os TEIP (Territórios Educativos de Intervenção Prioritária) instituídos a partir de 1996 - conseguiram democratizar as oportunidades de aprendizagem dos estudantes das classes mais desfavorecidas, inclusive as minorias étnicas e raciais? Podem as políticas públicas de ação afirmativa para a permanência estudantil, por si mesmas, garantir a pluralidade na representação dos vários grupos populacionais nas universidades portuguesas?
Este texto contextualiza os resultados de parte da pesquisa do estágio de pós-doutoramento desenvolvido no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, que teve como objetivo produzir uma análise comparativa de políticas de ação afirmativa/discriminação positiva de ingresso e/ou permanência no ensino superior, a partir de três casos: a reserva de vagas para negros no Brasil, na França para jovens que residem nas Zonas de Educação Prioritárias e, por último, os resultados do Programa Operacional de Promoção da Educação (OPRE) em Portugal, que incentiva a permanência de estudantes ciganos no ensino superior. Este programa foi escolhido por se constituir na primeira ação afirmativa lusitana direcionada à população cigana em instituições de educação superior.
Metodologia
A pesquisa se caracteriza como qualitativa, com ênfase em uma abordagem interpretativa, e se propõe a expressar o fenômeno estudado, dando mais liberdade e novas possibilidades para a pesquisadora no entendimento da realidade (Chizotti, 1996). Neste sentido, discute-se, na primeira parte do texto, o processo sociopolítico de territorialização da população cigana em Portugal, tendo como base bibliográfica dois investigadores: Costa (1995) e Bastos (2007a, 2007b, 2012), que denunciam as formas de perseguição a essa etnia, por meio de decretos estatais, durante a Monarquia e a República, o que conferiu ao povo cigano, ao longo de mais de cinco séculos, uma série de desvantagens em relação ao acesso aos bens sociais, como, por exemplo, a instrução escolar. O objetivo desta discussão é demonstrar por que, atuamente, a população cigana precisa de política de ação afirmativa, considerada por Almeida (2019) como um “remédio” para as práticas de racismo institucional.
A segunda parte problematiza as concepções das políticas públicas de educação compensatória e prioritária (com foco em classe popular) implementadas no final da década de 80 do século passado no território lusitano, marcadas, em particular, pela busca de igualdade de oportunidades e democratização no acesso das populações mais pobres à instrução escolar, e sendo direcionadas para compensar as desvantagens materiais de grupos socialmente desfavorecidos por meio da implantação de medidas assistenciais e pedagógicas para corrigir as dificuldades na aprendizagem dos estudantes das classes populares. Essa seção tem como intuito demonstrar que políticas públicas cegas à etnia ou raça, pouco podem reverter a situação de marginalidade de grupos sociais vítimas de racismo ao longo da história. Para discutir sua natureza e relevância, recorreu-se às concepções de Nogueira (1990), quanto aos debates dos impactos de tais políticas em Portugal, e foram selecionadas as pesquisas de Canário (2004), Salgado, Correia, Cruz e Rochex (2009), Ferreira e Teixeira (2010), essenciais para a compreensão da ineficácia de tais políticas diante da prescrição dos objetivos que propõem. É importante ressaltar que a pesquisa parte do pressuposto de que as políticas públicas são gestadas em decorrência de demandas/ tensionamentos da sociedade em relação ao poder público. Por conseguinte, as políticas educacionais implementadas em Portugal pós-década de 80 do século passado devem ser vistas como processos de disputa entre projetos de sociedade, envolvendo tensões políticas e ideológicas sobre concepções de inclusão, democratização, campos de luta por direitos sociais, desigualdades, entre outros.
Na terceira seção, apontam-se as particularidades, ambivalências e contradições do programa TEIP (Territórios Educativos de Intervenção Prioritária) programa mais ilustrativo de política pública de educação compensatória instituído em Portugal a partir de 1996, utilizando-se, para tanto, os estudos de Canário (2004), Salgado, Correia, Cruz e Rochex (2009), Ferreira e Teixeira (2010), Dias (2012) e Almeida e Batista (2017), que trazem análises específicas sobre os resultados dos TEIP em Portugal. Essa discussão é complementada com os estudos de Bernstein (1982 e 1996), que abordam como as instituições escolares reproduzem as relações de poder presentes no sistema econômico e político. Em um segundo momento, tais investigações são confrontadas com dados apresentados, em especial, por Mendes, Magano e Candeias (2014), Magano e Mendes (2016) e Marques (2016), a respeito das condições socioeconômicas e educacionais da comunidade cigana nos dias atuais, os quais demonstram que, depois de mais de 20 anos de implementação do referido programa, as populações ciganas ainda apresentam os piores indicadores de instrução escolar em Portugal, confirmando o fracasso de políticas públicas de educação que não levem em conta raça e etnia.
A quarta seção expõe o contexto sociopolítico e histórico de advento da primeira política pública de ação afirmativa para a população cigana no ensino superior português - o Programa Operacional de Promoção da Educação (OPRE). Nesta parte, retoma-se vários dados apresentados na pesquisa de Mendes, Magano e Candeias (2014), sobre as condições de vida dessa etnia, que a posteriori são devidamente confrontados com outros adquiridos por meio dos sites governamentais, nos três primeiros regulamentos do programa e nas informações obtidas em entrevistas de cunho exploratório (cumprindo com todas as normas de sigilo absoluto de suas identidades), essa contextualização tem com a finalidade demonstrar a pertinência de ações afirmativas para a comunidade cigana em todos os setores da sociedade portuguesa, no caso da pesquisa, de forma específica na educação superior. Cabe destacar que as entrevistas foram realizadas em dois momentos, primeiro com um profissional do Departamento de Apoio à Integração e Valorização das Diversidades, vinculado ao Alto Comissariado para as Migrações, com questões de caráter mais técnico e operacional, divididas em dois tópicos: natureza e resultados do OPRE e a compreensão das lacunas que ficaram após a leitura dos regulamentos. E, em um segundo momento, foram entrevistados dois egressos do OPRE, com o objetivo de verificar a eficácia das ações do programa para a permanência estudantil durante o curso. As concepções expressas pelos entrevistados são confrontadas com as análises realizadas ao longo do texto, em especial na quarta seção e, com mais ênfase, no último tópico, que contém as considerações finais da pesquisa.
Por que ações afirmativas para ciganos em Portugal?
Geralmente, as políticas de ações afirmativas são vistas como uma forma de compensação, reparação, reconhecimento, redistribuição de oportunidades e/ou justiça distributiva. Devido ao entendimento de que é preciso eliminar as desigualdades historicamente acumuladas por certos grupos populacionais, tais ações estão presentes em diversos países, com nomenclaturas diferentes e objetivos semelhantes. Silva acredita que as principais intencionalidades das ações afirmativas são:
(...) corrigir desigualdades no acesso à participação política, educação, saúde, moradia, emprego, justiça, bens culturais; reconhecer e reparar crimes de desumanização e extermínio contra grupos e populações; reconhecer e valorizar a história, cultura e identidade de grupos sociais e étnico-raciais, bem como a importância de sua participação na construção de conhecimentos valiosos para toda humanidade. (2009, p. 264) (Grifos nossos)
Tais políticas também podem ser consideradas como uma tentativa do Estado em promover estratégias/ações governamentais a favor dos grupos sociais marginalizados, seja por discriminação racial, sexual, étnica, religiosa, social, de gênero, entre outras. Tais ações “cumprem uma finalidade pública decisiva para o projeto democrático, que é a de assegurar a diversidade e a pluralidade social” (Piovesan, 2007, p. 40). As ações afirmativas são conquistas dos movimentos e organizações sociais que pressionaram historicamente o Estado para sua implementação, portanto, é neste tensionamento que ocorrem as mudanças, a melhoria nas condições materiais dos descendentes dos grupos discriminados historicamente em uma determinada nação.
O atual processo de democratização do ensino superior possui como uma de suas estratégias principais a adoção de políticas de ação afirmativa, com a finalidade de garantir o ingresso de grupos sociais historicamente alijados dos bancos universitários. No caso do Brasil, por exemplo, tais iniciativas englobam tanto o acesso por meio de reserva de vagas como bolsas de permanência para indígenas, negros, pessoas de baixa renda, transexuais e deficientes. Em Portugal, foi criado, em 2015, um programa denominado Opré Chavalé (Erguei-vos, jovens ciganos, na língua romani) e, um ano depois, o Programa Operacional de Promoção da Educação (OPRE) com oferta de bolsas aos estudantes ciganos que cursam o ensino superior, sendo um programa específico de permanência estudantil. Quanto à reserva de vagas nos testes de seleção universitária, para as populações ciganas, ainda não existe nenhuma iniciativa, como, por exemplo, debates públicos sobre a questão.
Diante da apresentação da problemática, é pertinente apontar alguns questionamentos: Por que a sociedade portuguesa, há apenas cinco anos, decidiu criar e implementar um programa de ação afirmativa no ensino superior direcionado à comunidade cigana? Para responder tal questionamento, torna-se pertinente resgatar brevemente o processo sociopolítico de territorialização das populações ciganas em Portugal a partir do século XV4, no sentido de apresentar questões que apontam explicações para o advento do Opré Chavalé em 2015 e, na sequência, o OPRE em 2016.
Para Bastos (2007b, p. 29), “o caso dos ciganos é o mais escandaloso e grave situação de racismo e xenofobia em Portugal”. Acrescenta-se a essa análise do autor que, pela forma como os ciganos foram tratados pela nação portuguesa, é evidente a existência do racismo institucional, caracterizado pela negação ou diferença de tratamento em relação a uma raça ou etnia ao acesso dos serviços e benefícios ofertados pelo Estado e pelas demais instituições. O racismo institucional por igual apresenta-se como um:
(...) mecanismo estrutural que garante a exclusão seletiva dos grupos racialmente subordinados - negr@s, indígenas, cigan@s (...). Trata-se da forma estratégica como o racismo garante a apropriação dos resultados positivos da produção de riquezas pelos segmentos raciais privilegiados na sociedade, ao mesmo tempo em que ajuda a manter a fragmentação da distribuição destes resultados no seu interior. (Geledés, 2012, p. 17)
No século XV, por algumas décadas, os ciganos foram “bem vistos” em Portugal, pois constituíam um grupo de “peregrinos católicos” que atravessavam o país rumo a Santiago de Compostela, fugindo da conversão do Islã (Bastos, 2012). Porém, segundo o mesmo autor, essa “aceitação” não durou muito, pois, no século XVI, houve uma perversa e sistemática perseguição por meio de vários decretos dos monarcas portugueses (1526, 1538, 1557, 1573, 1579 e 1592), que proibiam a entrada e decretavam a expulsão do país aos que desobedecessem a esses editos, imputando-se a prática de violência física (açoite público) e a pena das galés. No século XVII, essas leis são reforçadas com os decretos de 1603, 1606, 1608, 1613 e 1614.
Durante o reinado de D. João IV (em alvarás de 1647 e 1649), a perseguição muda de feição, passando-se a proibir os trajes ciganos, a falar “geringonças”, ler a sina, além de retirar os filhos a partir de 9 anos de seus pais, ou seja, acrescenta-se perseguição à prática da cultura cigana e a aculturação das crianças por meio de educação em instituições de caridade, com a finalidade de que fossem criados segundo os costumes do dominador, constituindo esta uma forma de assepsia étnica. Além disso, um alvará de 1649 propõe “extinguir este nome e modo de gente vadia de cigano” e “desterrar de todo modo de vida e memória essa gente vadia” (Bastos, 2007a, p. 13). Esses dois alvarás, além de outros em 1686, 1694, 1708 e 1718, expressam nitidamente uma tentativa de extinção da cultura cigana e/ou a assimilação forçada da cultura europeia, mais especificamente a portuguesa, pelos ciganos, o que demonstra a falácia de que Portugal sempre foi um país harmonioso, tolerante e intercultural, pressupostos integrantes da matriz colonial propagada ainda hoje, em especial nos discursos governamentais, como destaca Araújo (2018). Na verdade, o Estado português promoveu no seu território, por séculos, um processo de higiene racial, com a intenção de adestrar ou expulsar os grupos indesejáveis. A última portaria da monarquia contra os ciganos data do ano de 1848, assinada por D. Maria II, que exige deles um “passaporte” para transitar pelo país (Bastos, 2007b).
Costa (1995) relata que, a partir de 1822, com a nova Constituição da República e a Carta Liberal de 1826, o Estado reconheceu o direito à cidadania portuguesa a todos os nascidos no país. Porém, essa nova Constituição não garantiu que os ciganos deixassem de ser perseguidos, mesmo sendo considerados “cidadãos portugueses”, pois, em 1920, segundo Bastos (2007b), é publicado um regulamento da Guarda Nacional com o seguinte conteúdo: os ciganos devem ser “severamente vigiados” devido a seus “atos de pilhagem”, o que se configura como um caso de racismo legalizado em um Estado democrático.
Mesmo após o 25 de abril de 1974, período em que Portugal parecia estar mais aberto a decisões democráticas e inclusivas (em 1980, o Conselho da Revolução declara que todas as leis anteriores deveriam ser revogadas), a perseguição a essa população teve continuidade, uma vez que, em 1985, no regulamento da GNR (Guarda Nacional Republicana), o seu artigo 81 determina novamente uma severa vigilância aos ciganos (Bastos, 2007b).
Efetuou-se, portanto, uma produção histórica do racismo institucional vista nos vários decretos de Estado desde o século XVI. Bastos (2007b), Casa-Nova (2008, 2011) e Mendes, Magano e Candeias (2014 5 ainda acrescentam a escassez de estudos sociológicos e etnográficos até os anos 90 do século passado sobre as populações ciganas, o que, por sua vez, também contribuiu para reforçar os estigmas. Sendo assim, após séculos, o entendimento dos ciganos como “sub-humanos” continua na sociedade hodierna, e os mecanismos para sua ação persecutória apenas mudaram de estratégias.
Diante do exposto, torna-se evidente a necessidade de Portugal abrir-se para um diálogo coerente sobre o racismo, admitir-se como um país composto por uma população multiétnica e racial, como destaca Araújo (2018), e deixar de perpetuar os mecanismos de exclusão, invisibilidade e negação de direitos aos ciganos. Para que isso ocorra, Bastos (2007b) propõe a criação de um programa ético democrático, com várias estratégias de combate à exclusão, à marginalização, ao empobrecimento dos ciganos portugueses, denominado na presente pesquisa de políticas públicas de ações afirmativas nas mais diversas áreas.
Políticas públicas de educação compensatória e de intervenção prioritária em Portugal: Com foco em classe social
De 1926 a 1974, o regime político autoritário em Portugal fez a opção por não criar políticas públicas de educação que garantissem bons níveis de instrução escolar. Na década de 70, um em cada quatro portugueses era analfabeto. Segundo Salgado, Correia, Cruz e Rochex (2009), a ditadura escolheu o atraso na educação em nome da “regeneração nacional” e de “qualidades inaptas”.
Já na década de 90, o índice de analfabetismo tinha caído para 11%, mas Roldão (2015) ressalta que o sistema educacional português universitário ainda permanecia elitizado, pois apenas 7,2% dos universitários eram filhos de operários assalariados e 11,4% de operários da pesca. Em 2004, o cenário torna-se mais universalista relativamente quanto à inclusão das classes populares, pois 31% dos estudantes em universidades portuguesas já provinham das classes desfavorecidas. Neste sentido, Roldão (2015) conclui que, a partir da entrada de Portugal na União Europeia, o país produziu novos canais de ascensão social às classes populares, sendo fundamental para a construção de percursos de contratendência.6 Em relação à educação básica, tendo como parâmetros de qualidade os dados do PISA - Programme for International Students Assessment (salvaguardando as críticas em relação a esse tipo de avaliação), nas provas de Leitura e Matemática de 2015, o país ficou acima da média da União Europeia, porém, em termos de abandono, apresentou dados de 14% (possivelmente influenciados pelas estatísticas elevadas quanto aos estudantes ciganos) enquanto, na União Europeia, o índice ficou em 10,7% (Conselho Nacional de Educação, 2016).
Sobre as políticas públicas de Educação Compensatória, sabe-se que mundialmente tiveram início nos Estados Unidos na década de 60, inseridas em um programa político de “guerra contra a pobreza”. A ideia era corrigir as dificuldades escolares dos grupos socialmente desfavorecidos (Nogueira, 1990). Após a iniciativa norte-americana, as concepções da educação compensatória são importadas por vários países europeus como Inglaterra, Suécia, França, Bélgica, Grécia, República Tcheca, Portugal, Romênia e Suécia.
Tais programas estão pautados nas concepções de igualdade de oportunidades e democratização no acesso, a partir da crença de que estudantes provenientes de áreas periféricas têm uma carência cultural que os impede de ter sucesso nas instituições escolares, por isso, a escola deve compensar a falta de saberes e/ou hábitos que as famílias são “incapazes” de promover. Segundo Canário (2004), o ponto de partida de tais políticas engloba uma visão patológica das classes populares, em especial dos pais e estudantes, e a cura encontra-se em ações de natureza compensatória receitadas e aplicadas pela escola.
Ferreira e Teixeira (2010) ressaltam que, a partir de tais concepções, Portugal elabora políticas públicas ditas como compensatórias, com foco especial na melhoria da escolaridade das classes populares. Em 1986, é aprovada a Lei de Bases do Sistema Educativo, que estabelece as normas e princípios da educação portuguesa; no ano de 1987, é lançado o Programa Interministerial de Promoção do Sucesso Educativo, considerado por Salgado, Correia, Cruz e Rochex (2009) como o marco do nascimento da educação compensatória no país, alicerçado nas concepções de combate à desigualdade das condições materiais de crianças de meios desfavorecidos, o que lhes dificultava o sucesso escolar. Para esses autores, o programa não atingiu os objetivos propostos, pois foi encerrado cinco anos depois, mas introduziu o problema do insucesso escolar nas preocupações políticas da educação nacional. Em 1991, é implementado o Programa Educação para Todos, como resposta à Conferência Mundial sobre Educação para Todos7 ocorrida na Tailândia em 1990, onde estiveram presentes mais de 157 países, inclusive Portugal. Em 1996, é criado o Programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP).
Portanto, nesses vários programas elencados, é possível perceber uma intenção explícita governamental em propor políticas de combate ao abstencionismo8 e às altas taxas de reprovação historicamente reproduzidas na educação portuguesa, tendo como foco os estudantes das classes populares, por via da implementação de políticas públicas. Cortesão, Stoer, Casa Nova e Trindade (2005), ao estudar uma escola situada em uma comunidade cigana em Portugal, mostram que a denominada “escola para todos”, de modo geral, não consegue concretizar suas ações mais básicas, como, por exemplo, o princípio mínimo da democratização de aprendizagem, que é a igualdade de oportunidades de acesso. Sendo assim, acredita-se, por meio dos resultados das pesquisas elencadas a seguir, que as políticas públicas de educação compensatória mais reforçam os estigmas do que propriamente promovem a democratização da aprendizagem.
Direcionado para estudantes considerados problemáticos com repetitivo insucesso escolar, é lançado, em 1996, o Programa Curricular Alternativo, para cuja implementação, segundo Salgado, Correia, Cruz e Rochex (2009), foram criadas “classes especiais” com no máximo até 15 estudantes, o que ocasionou turmas segregadas e estigmatizadas, além de esvaziamento dos conteúdos/saberes escolares, direcionando a instrução para a formação profissional. Neste sentido, a escola serviu para perpetuar as desigualdades e discriminação social a que tais jovens já estavam sujeitos. Deve-se acrescentar que a retórica da flexibilização do currículo está sempre associada às necessidades da economia e aproximação das instituições escolares do mundo do trabalho.
Ainda sobre a implementação de políticas públicas de caráter compensatório, é preciso mencionar o Plano Especial de Realojamento, criado em 1993 para erradicar as moradias em barracas de lona, em especial dos ciganos, cujo resultado foi a criação de segregação urbana e educacional (sítios e escolas de ciganos e descendentes de africanos). É interessante que, de forma contraditória, cria-se no mesmo ano o Programa de Educação Intercultural, com alicerces na narrativa persistente do Estado português como uma nação intercultural, harmoniosa e não racista como destaca Araújo (2018). Tal concepção ganha força a partir da década de 90, alicerçada em narrativas despolitizadas de colonialismo, que atestam Portugal como país com vocação para a promoção da interculturalidade9 desde as grandes navegações, invisibilizando e silenciando questões fundamentais sobre escravização e racismo. Esse programa foi implementado em escolas do ensino básico situadas em zonas de moradia de populações pertencentes a minorias étnicas e raciais. Diante do exposto, cabe o questionamento: Como dialogar sobre interculturalidade em escolas segregadas?
Além de segregar, é preciso também promover um pacto social pela paz contra a violência urbana, por isso, em 2011, nasce o Programa Escolhas, que atualmente se encontra na sétima geração (período 2019/20), sob a coordenação do Alto Comissariado para Migrações. Seu objetivo principal é financiar projetos que visem a inclusão de crianças e jovens em situações de vulnerabilidade social (PROGRAMA ESCOLHAS, 2019). Ao ler os vários regulamentos, é possível perceber uma preocupação excessiva de prevenção da criminalidade e delinquência juvenil e a suposta integração social desses jovens, ou seja, caracterizando-se como um programa de controle dos conflitos urbanos muito similar aos pressupostos das Zonas de Educação Prioritária na França. Quem são as crianças e jovens em vulnerabilidade social atendidos pelo Escolhas? Em sua maioria, são filhos das minorias étnicas e raciais? Sendo assim, a visão governamental, ao produzir políticas de educação para essas comunidades, foca em cursos profissionalizante, ou seja, em uma educação para o trabalho que indica às minorias étnicas e raciais qual é o seu lugar social. Ao analisar as áreas de intervenção do Programa Escolhas, esse tipo de estratégia torna-se explícito: 1 - empreendedorismo e capacitação dos jovens, 2 - inclusão escolar e educação não formal, 3 - formação profissional e empregabilidade, 4 - dinamização comunitária e cidadania e inclusão digital. Mézaros (2008) assinala que o modelo educacional que predomina no mundo é a busca constante de formação de mão de obra para atender às demandas do mercado, sendo assim, a educação serve aos propósitos do sistema capitalista. As iniciativas de educação formal ou informal, em especial as de iniciativa governamental ou de grandes empresas, apoiam-se em projetos educacionais para capacitar sujeitos que atendam às funções diferenciadas, conforme a divisão internacional do trabalho, habilitando-os, de forma técnica, social e ideológica, ao mundo do trabalho. É o que se evidencia nas estratégias e nos projetos que integram o Programa Escolhas, conforme seu Relatório de Atividades de 2017. Porém, é importante ressaltar que esse mesmo programa financia a primeira iniciativa de ação afirmativa para ciganos no ensino superior português, fato que pode ter ocorrido a partir da decisão do Alto Comissariado para as Migrações (ACM) sobre a entidade que deveria custear as bolsas do OPRÉ, que optou pelo Programa Escolhas devido a que seus objetivos visam ao financiamento de projetos educacionais para populações em vulnerabilidade social.
Territórios Educativos de Intervenção Prioritária em Portugal: Ambivalências e contradições de “compensação” ou “priorização” à educação das classes populares
O Programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária - TEIP em Portugal inspirou-se nas EPA (Education Priority Areas), criadas na Inglaterra em 1967. Esse programa inglês reconhecia algumas zonas geográficas com elevada concentração de estudantes em desvantagem social e, assim, direcionava fortes investimentos para suas instituições educacionais. Outra inspiração foram as ZEP (Zones d´Education Prioritaire) da França, implantadas a partir de 1981, com o objetivo de solucionar os elevados índices de fracasso escolar nas periferias das grandes cidades e o crescente desemprego, mas que também se constituiu como uma ação governamental direcionada para a promoção de “paz social” em bairros considerados violentos (Dias, 2012). Tais programas enquadram-se nas concepções de educação compensatória discutidas no item anterior.
Portugal, em 1996, organiza e executa os TEIP, constituindo-se, a priori, 35 agrupamentos das cidades de Porto e Lisboa, cujas escolhas se explicam porque os propositores do programa consideravam que, nestas duas urbes, havia uma maior concentração de “zonas difíceis”, com elevado número de estudantes em risco de exclusão social. O programa foi relançado em 2008 e, por último, em 2012, com os seguintes objetivos: 1) produzir igualdade de oportunidades como preconizam as políticas de educação compensatória; 2) oferecer autonomia às escolas, com inspiração nos debates do projeto de Educação para Todos, colocando a instituição escolar como centro irradiador de solução dos problemas de uma determinada comunidade ou bairro e, ainda, promotora do sucesso educativo como condição básica para a equidade social (Portugal, 2012). Impunham-se essas duas funções de maneira a isentar os outros poderes da responsabilidade de criar políticas públicas de redistribuição de justiça social em territórios com presença significativa de minorias étnicas e raciais.
No último relançamento, em 2012, é possível vislumbrar os objetivos, mas também a reafirmação dos estereótipos e estigmas de diferente natureza quanto às populações atendidas por centenas de escolas participantes do programa:
O Programa TEIP é uma iniciativa governamental, implementada atualmente em 137 agrupamentos de escolas/escolas não agrupadas que se localizam em territórios económica e socialmente desfavorecidos, marcados pela pobreza e exclusão social, onde a violência, a indisciplina, o abandono e o insucesso escolar mais se manifestam. São objetivos centrais do programa a prevenção e redução do abandono escolar precoce e do absentismo, a redução da indisciplina e a promoção do sucesso educativo de todos os alunos. (Direção Geral da Educação, 2019)
A rotulagem imposta aos estudantes dessas comunidades rebaixa as expectativas dos professores que lecionam em tais agrupamentos, de que os aprendizes não possuem capacidades culturais para se apropriar dos conteúdos/saberes escolares e resta aos docentes empenharem-se para criar um “clima amigável” na instituição. Almeida e Batista (2017) asseveram que, depois de mais de duas décadas de TEIP, os resultados de aprendizagem dessas escolas figuram sempre abaixo das médias nacionais. Em relação à indisciplina e ao abandono escolar, os dados analisados pelos autores revelam que houve uma melhoria. Tais afirmações comprovam que esse programa talvez sirva mais para manter as classes populares entre os “muros” da escola, sem muitos conflitos10, do que promover a aquisição de conhecimentos científicos, fundamentais em uma sociedade pautada no mérito, o que garantiria aos filhos das classes populares o acesso ao ensino universitário, em especial aos cursos mais elitizados (já que não existe reserva de vagas em Portugal) e, posteriormente, ter a possibilidade de assentos de decisão política e econômica do país.
Canário (2004) e Salgado, Correia, Cruz e Rochex (2009) assinalam a existência de alguns pontos positivos na política pública dos TEIP como: a criação de infraestrutura física e melhoria do material didático; a difusão de experiências positivas; a ampliação de políticas educacionais de formação de professores; a redução de taxas de absenteísmo e abandono; e a diminuição da indisciplina. Por outro lado, também serviu como instrumento de pacificação dos denominados bairros difíceis e reforço de uma visão negativa e desvalorizada dos estudantes e de suas famílias. Para Canário (2004), o grande obstáculo foi a não construção pelos TEIPs de práticas educativas de orientação emancipatória relativamente aos denominados “excluídos”.
Os Territórios Educativos de Intervenção Prioritária, após 23 anos de sua implantação, apresentam ambivalências e contradições contextualizadas por vários autores (Almeida & Batista, 2017; Canário, 2004; Ferreira & Teixeira, 2010; Salgado, Correia, Cruz & Rochex, 2009). Primeiramente, elas se colocam como políticas para democratização da escola, no sentido de promoção da igualdade de oportunidades e aprendizagem, mas reforçam estereótipos e estigmas negativos (delinquência, violência, prostituição, marginalidade, entre outros) das classes populares e seus filhos, de caráter, por vezes, racista. Além disso, de modo geral, as políticas de educação compensatória historicamente não questionam, como destaca Bernstein (1982), a organização da escola, desviando a atenção das deficiências e limitações das instituições de ensino para a comunidade e as famílias, estas vistas como um sistema de deficiências. Sendo assim, segundo o autor alguns professores11 podem apresentar expectativas baixas em relação aos estudantes, dificultando a própria democratização da aprendizagem, preconizada nos programas de educação compensatória. Essa afirmação de Bernstein (1982) foi confirmada, posteriormente, em dados levantados nas pesquisas de Bastos (2007a, 2007b), Casa-Nova (2008, 2011), Mendes, Magano e Candeias (2014), Magano e Mendes (2016) e Marques (2016) sobre o sucesso escolar das populações ciganas. Outrossim, passados quase 30 anos de TEIP, não houve efetiva melhora no denominado “sucesso escolar” dessa etnia em Portugal, o que, de certa maneira, confirma que no interior da escola, em especial nas formas de estruturação do discurso pedagógico, são produzidas práticas seletivas de inclusão e exclusão (Bernstein, 1996), com forte tendência a penalizar os filhos das populações subalternizadas (pobres, negros, indígenas, ciganos, etc.).
Em segundo lugar, apresentam a instituição escolar como possível corretora da desigualdade social e esquecem que a exclusão é fruto do sistema econômico social e político, conforme ressalta Canário (2004), sendo um fenômeno estrutural das sociedades industrializadas. Portanto, as relações criadas fora da escola penetram na organização, distribuição e avaliação do saber através do contexto social, como assevera Bernstein (1982), o que é agravado pelo racismo, que interdita o “sucesso escolar” de jovens negros e ciganos. Bernstein (1996) ainda assevera que, no interior da escola, apenas algumas vozes são ouvidas ou soam familiares, outras são silenciadas, e os sons ali ecoados não contêm significados para parte dos estudantes, apontando caminhos para o entendimento de como as desigualdades educacionais são produzidas e justificadas. Tais concepções de formas de poder e controle das instituições escolares não foram discutidas na implementação dos TEIP em Portugal e também nas políticas públicas de viés compensatório em outros países da Europa, o que induz a questionamentos sobre as políticas de educação compensatória. Como democratizar o conhecimento das instituições de ensino sem contextualizar as estruturas de poder do sistema político, social e econômico vigente, e como este organiza as formas de elaboração e distribuição do saber escolar? Como implementar políticas públicas educacionais inclusivas sem um programa de educação antirracista?
O programa OPRE: Política pública de ação afirmativa para a população cigana no ensino superior português
A partir do início do segundo milênio, a comunidade cigana ganha visibilidade nos documentos/leis/ações/estratégias governamentais, impulsionada de certa maneira pela Década de Inclusão de Comunidades Ciganas (2005-2015), compromisso assumido por 12 Estados membros da União Europeia. Como consequência, em 2006, é criado o Gabinete de Apoio às Comunidades Ciganas, hoje vinculado ao Alto Comissariado para Migrações (ACM), que atualmente conta com a presença de cinco pessoas, sendo duas de etnia cigana. Em 2013, foi elaborada a Estratégia Nacional para Integração das Comunidades Ciganas, para definir metas nacionais de melhoria nas condições de vida dessa comunidade e, revista em 2018, suas ações foram alargadas até 2022. Em 2014, foi publicado o Estudo Nacional de Comunidades Ciganas (Mendes, Magano & Candeias, 2014) a partir de um inquérito aplicado em 1.599 pessoas e de dados compilados em pesquisas isoladas, sendo o primeiro no país a apresentar um panorama geral das condições de vida da referida etnia. Ao final da leitura do documento, o leitor chega à conclusão sobre a grave situação de exclusão e marginalidade em que vive o povo cigano em Portugal e a certeza de que as iniciativas governamentais implementadas desde a década de 80 nem sempre se traduziram em retorno direto na melhoria da qualidade de vida dessa comunidade.
Esses acontecimentos foram fundamentais para a criação do Opré Chavalé, uma iniciativa da Associação de Letras Nómadas em parceria com a Plataforma Portuguesa para Direitos das Mulheres, com a finalidade de incentivar a juventude cigana ao acesso à Universidade. Tal programa foi pensado como uma ação integrante da Prioridade 21 (promoção da educação superior de jovens ciganos) da Estratégia Nacional para Integração das Comunidades Ciganas e espelhado nas iniciativas bem-sucedidas dos países do Leste Europeu como o Roma Educational Fund e a Fundação Open Society (associações de apoio a programas específicos para ciganos no ensino superior).
Sendo assim, o Opré Chavalé, em abril de 2015, organizou um encontro no município de Almada com cerca de 20 jovens ciganos que haviam finalizado o ensino secundário e outros que estavam no décimo segundo ano; potenciais candidatos ao ensino universitário. Os egressos entrevistados apontaram esse encontro como fundamental para despertar o interesse em cursar o ensino superior, pois anteriormente não tinham noção da natureza de uma Universidade, tampouco das formas de ingresso.
No segundo semestre de 2015, o Opré Chavalé, por meio de cofinanciamento do Programa Cidadania Ativa - EEA Grants (gerida pela Fundação Calouste Gulbenkian), o Programa Escolhas e a Fundação Montepio ofertaram oito bolsas de estudo12 aos estudantes ciganos universitários. Além do auxílio financeiro, os parceiros disponibilizaram aos bolsistas encontros residenciais de formação em direitos humanos e igualdade de gênero, articulados com a identidade cigana.
O Opré Chavalé foi o precursor do OPRE (Programa Operacional de Promoção da Educação)13 , criado em 2016, com o primeiro regulamento em 2016/2017, o segundo em 2017/2018 e o último para 2018/2019. O programa tem como objetivo a integração dos estudantes ciganos no ensino superior14 (ACM, 2016). Segundo o profissional técnico do Departamento de Apoio à Integração e Valorização da Diversidade do ACM, o Alto Comissariado percebeu a relevância do Opré Chavalé e o transformou em uma política pública de ação afirmativa, considerando o atraso educacional de uma população que, historicamente, foi desvinculada da escola. Interessante que o referido técnico não menciona, depois dessa afirmação, os motivos dessa ausência que, porventura, podem ser lidos como sendo uma escolha do povo cigano “abster-se da escola”. Mas sabe-se que isso ocorre devido aos processos de perseguição, proibição e opressão que marcaram a territorialização dos ciganos em Portugal. E, atualmente, isso reverbera e penetra na escola, por meio de ideias de inferioridade, infringindo a crianças, adolescente e jovens ciganos atos racistas (humilhação e constrangimentos), sofrimento psicoemocional e, consequentemente, evasão e contínuas reprovações.
No segundo regulamento, aparece a figura do mentor/voluntário e de um mediador da Letras Nómadas, sendo o primeiro responsável por dar atendimento pedagógico e o segundo por promover iniciativas de sensibilização junto à família/comunidade cigana e não cigana e dialogar com a unidade de ensino no sentido de apresentar o OPRE e as necessidades que são específicas dos estudantes ciganos. Desde o primeiro regulamento, foram previstos encontros de capacitação residenciais para discutir sobre empoderamento, identidade cigana, igualdade de gênero e coesão grupal (ACM, 2017, 2018). Por meio dessas ações, o OPRE reconhece que não adianta apenas dar suporte financeiro aos estudantes, mas dialogar sobre as questões que envolvem a identidade cigana e o enfrentamento da ciganofobia na universidade, pois, caso não tenham consciência crítica sobre a afirmação de sua identidade, podem omitir a etnia para não sofrer violência simbólica, além de evadir por não suportar a discriminação. Quanto a esse aspecto, a visão do OPRE é um avanço na implementação de políticas públicas com viés em discriminação positiva. Para os dois egressos entrevistados, esse foi o ponto forte do programa, pois nos encontros havia possibilidade de diálogo com outros jovens ciganos, trocas de experiências que contribuíram para o fortalecimento da identidade e, consequentemente, permanência no curso. Ainda segundo o profissional técnico do Departamento de Apoio à Integração e Valorização da Diversidade, os encontros de capacitação foram momentos-chave de convívio e partilha com os estudantes, que muitas vezes enfrentam as mesmas dificuldades, tanto das exigências acadêmicas como do que ela chama de “preconceito associado à sua origem cultural”, que pode ser traduzido como racismo. Cabe ainda ressaltar a necessidade de criação de ações afirmativas de cunho valorativo como: inserção no currículo escolar da história, cultura e valorização das comunidades ciganas, estatuto nacional de igualdade étnico-racial entre outras, com a finalidade de formação da sociedade portuguesa para o respeito e reconhecimento de todos os grupos populacionais da nação.
Sobre a presença dos ciganos nas universidades, o estudo de Mendes, Magano e Candeias (2014) demonstra que, dos entrevistados, apenas 0,01% concluíram a licenciatura, ocorrência que é justificada em várias pesquisas que revelam (Casa-Nova, 2005, 2011; Dias, 2012; Lopes, 2016; Marques, 2016) ser a escola um lugar hostil para a população cigana, pois a maior parte apenas consegue terminar o primeiro ciclo. Ainda sobre o processo de escolarização, é importante ressaltar que crianças, adolescentes e jovens pertencentes às minorias étnicas, raciais, linguísticas e religiosas, sempre tiveram interdições nessa instituição, que nunca os concebeu como “os de dentro”; sendo historicamente um território de pertença, reprodução de valores e dominação dos grupos hegemônicos, como destaca Bourdieu (2013). Na verdade, os ciganos não se sentem aceitos nesse espaço e, por isso, desconhecem o modus operanti da escola, por ser uma instituição que não faz parte da rotina/sonhos das famílias que, por gerações, não a frequentaram. Para um dos egressos do OPRE a escola não valoriza os saberes/experiências e modo de pensar dos estudantes ciganos, como autonomia, sentido comunitário e conhecimentos práticos de operacionalidade da vida. Sendo assim, a pressão social para o trabalho e o casamento na adolescência contribuem, juntamente com os fatores elencados na pesquisa, para a baixa instrução escolar.
Outrossim, apenas 22,5% da população cigana possui o 1º ciclo, 13,7% concluíram o 2º ciclo, 7,2% conseguiram finalizar o 3º ciclo e 2,3%, o ensino secundário (Mendes, Magano & Candeias, 2014). Se considerarmos apenas a escolaridade dos ciganos em Portugal, com certeza o país estaria nos últimos lugares no ranking mundial de educação. Para reverter esse quadro, não existe outro caminho a não ser a elaboração e a implementação de políticas públicas de ações afirmativas engendradas a partir de um programa de educação antirracista e de questionamento das relações de poder e dos privilégios da branquitude na instituição escolar. Para um dos egressos entrevistados, propagar exemplos de jovens como ele com ensino superior constitui uma alternativa. Por isso, ele participa de várias atividades nas escolas portuguesas com o intuito de sensibilizar, partilhar informações, desmistificar mitos e combater os estereótipos negativos em relação ao povo cigano. Sabe-se que uma educação antirracista não prescinde da representatividade simbólica nos espaços de prestígio e poder, portanto a presença de um jovem cigano na universidade rompe com a invisibilidade dos corpos racializados em ambiente elitizado, inspira novas gerações e propõe concepções valorativas das comunidades ciganas em Portugal.
Tendo como base as avaliações positivas do OPRE e os dados preocupantes da baixa escolaridade dos ciganos na educação básica, foi lançado, em meados de 2019, o Programa ROMA Educa, com a oferta de 100 bolsas de estudo15 (50 euros mensais) e o acompanhamento realizado por um mentor (voluntário) que possa servir de referência positiva a jovens ciganos do ensino secundário, financiado pelo Alto Comissariado para as Migrações (ACM), dará apoio financeiro, preferencialmente, a territórios de abrangência do Programa Escolhas. A iniciativa visa apoiar a frequência (mínimo de 80%) e a permanência no ano letivo 2019/2020 a estudantes ciganos (ACM, 2019), configurando-se como mais uma ação afirmativa na educação portuguesa para essa comunidade.
Tanto os dois jovens entrevistados quanto o técnico do Departamento de Apoio à Integração e Valorização da Diversidade são unânimes em afirmar que o Programa OPRE e o ROMA Educa são políticas públicas de ação afirmativa. Portanto, diante dos fatos os dois programas são singulares, sensível a etnia, e aparecem como estratégias de reparação, compensação e redistribuição das oportunidades com apoio financeiro para custear os gastos com a educação, em especial a universitária16. Ainda para os egressos as bolsas foram imprescindíveis para a permanência nos cursos.
Acredita-se que, por mais que um Programa de permanência para estudantes ciganos seja um passo importante na luta antirracista em Portugal, o mesmo não pode ser visto como um proxy de reservas de vagas para a população cigana na Universidade.
OPRE: Construindo caminhos para a democratização e a pluralidade do ensino superior português
Como conclusão da pesquisa, ficou evidente o racismo institucional sofrido pelos ciganos em Portugal desde o século XIX, que os afastou do acesso aos bens públicos da nação, em especial a instrução escolar. Na segunda parte deste artigo, na contextualização dos resultados de mais de 30 anos dos programas de educação prioritária e/ou compensatória focados em classe, foi possível perceber que esses programas não foram suficientes para promover a democratização do acesso e a aprendizagem escolar das crianças, adolescentes e jovens das classes populares, muito menos da população cigana, concepções que corroboram os estudos de Bernstein (1982 e 1996), desmistificando o papel da escola enquanto promotora de condições sociais igualitárias. Essa afirmação ancora-se nos dados apresentados e nas concepções dos pesquisadores referenciados neste artigo, sendo, com certeza, uma interpretação possível, podendo ocorrer, portanto, outras formas de conceber os resultados dessas políticas. Mas, diante da pesquisa apresentada neste texto, fica demonstrada a necessidade de programas de ação afirmativa de educação focados em etnia e, nesse sentido, o OPRE e o ROMA Educa avançam e propõem um novo modelo de política pública capaz de modificar os índices educacionais dos membros de comunidades ciganas.
Porém, é preciso investir, igualmente, em políticas públicas de ação afirmativa para moradias dignas, emprego e renda e saúde que sejam sensíveis ao modo de vida cigano. Também é necessário incentivar a formação de um quadro de intelectuais ciganos, de maneira que possam ocupar os espaços de decisão da nação, inclusive para assegurar seus direitos, sendo ao mesmo tempo instrumentos de mobilização política dessa comunidade junto à nação portuguesa por meio da representatividade simbólica de corpos racializados em espaços de prestígio e poder político e econômico.
Importante destacar, no processo de criação do OPRE e do ROMA Educa, o papel significativo da Associação Letras Nómadas, entidade civil organizada de ciganos em Portugal, que, além de dar o primeiro passo para acolher e incentivar os estudantes a ingressarem no ensino superior em 2015, também pressionou o Estado para a criação de uma política pública de ação afirmativa no ensino superior, como visto no Brasil com o movimento negro e, nos Estados Unidos, com o movimento dos direitos civis. Segundo um egresso do OPRE, a confiança que os pais têm nessa Associação possibilita a estes uma melhor aceitação de que filhos e filhas cursem o ensino superior, tendo em vista que a população cigana, devido ao processo de perseguição e racismo sofrido ao longo dos séculos, possui como estratégia defensiva o fechamento em comunidades.