Jorge Colaço (1868-1942) é uma figura incontornável na história da azulejaria em Portugal e o catálogo (Matos, 2019) editado pelo Museu Nacional do Azulejo (MNAz), a propósito das celebrações dos 150 anos do seu nascimento, confirma-o exaustivamente.
A dimensão artística de Colaço não se restringe ao azulejo, mas é esta que tem vindo a ser reavaliada nos últimos anos, acentuando o seu papel de figura de proa de uma corrente historicista e nacionalista, ligada a uma ideia de portugalidade, que dominou a produção azulejar nas primeiras décadas do século XX.
Todavia, Jorge Colaço não esteve só, e esta ideia, presente desde logo no título da exposição e do catálogo, ao referir-se à “azulejaria figurativa do seu tempo”, é um dos aspetos mais significativos da iniciativa do MNAz e a razão pela qual o presente livro será, no futuro, uma referência fundamental para quem quiser estudar a azulejaria do período.
Jogando com uma designação instituída na historiografia para os meados do século XVIII, o “regresso à cor”, o texto de Tiago Borges Lourenço amplia decisivamente o impacto do catálogo ao propor uma nova designação para a primeira metade do século XX (1890-1940) - o regresso à figuração. Ao estudar um conjunto de outros artistas seus contemporâneos, este investigador não só coloca Jorge Colaço em contexto, como questiona as razões que estiveram na origem da (re)valorização da pintura a azul e branco, evocativa da azulejaria barroca da primeira metade do século XVIII. Na sua reflexão, aponta respostas e destaca o restauro como um dos possíveis fatores decisivos na nova moda que a partir daí se instalou. Este texto, que desde o título indica um outro caminho que não apenas a moda do azul e branco, destaca a figuração, preterida durante décadas a favor dos padrões aplicados nas fachadas dos edifícios que dominaram a segunda metade de Oitocentos. Mas, refere-se igualmente à atualização dos temas e à forma de representar que, aliados à paleta cromática, à figuração e às molduras barrocas, imprimiram modernidade aos revestimentos da época.
Esta abordagem de Tiago Borges Lourenço, assente numa investigação sólida e num trabalho de vários anos, tem o mérito de organizar o conhecimento sobre este período, colocando questões que há muito se intuíam, mas não estavam devidamente formuladas, e de apresentar respostas ou caminhos de investigação. Não obstante, o autor vai ainda mais longe, semeando diversas pistas ao longo do texto que apontam para o passado e apelam para uma visão integrada da história da azulejaria.
A evocação do período barroco é uma constante neste artigo, reforçada, por exemplo, quando se aborda a questão do uso da fotografia como fonte de inspiração para as composições azulejares, em tudo semelhante ao recurso à gravura nos séculos XVII e XVIII. E se em ambos os casos o azul e branco substitui o preto e branco das imagens originais, como é destacado, a grande diferença encontra-se nas temáticas. Através da cópia de gravuras europeias, a azulejaria portuguesa de Setecentos reproduziu trajes e costumes franceses, italianos ou do norte da Europa, assim iludindo os mais desatentos que procuraram ver nestas representações um espelho da nação. Ao contrário, a azulejaria do início do século XX constitui um importante documento de uma realidade paisagística, patrimonial e regional portuguesa, plasmada sobretudo nos “novos” espaços públicos de então.
Referindo-se à obra de Luís Ferreira (Ferreira das Tabuletas, 1806-1873), Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), José Maria Pereira Júnior (Pereira Cão, 1841-1921) e Miguel Costa (1859-1914), os últimos dos quais iniciando o seu percurso na azulejaria como restauradores, o texto introduz a figura de Jorge Colaço, mas não sem elencar um conjunto de outros pintores que, “(...) maioritariamente com formação e carreira como pintores de arte (tanto em óleo como aguarela) que a dado momento decidiram enveredar pelo azulejo”. Também neste aspeto os ecos do século XVIII se fazem ouvir, pois os pintores do designado Ciclo dos Mestres (1700-1725) destacaram-se precisamente por serem artistas multifacetados, formados em diferentes contextos e praticantes de outras modalidades que não apenas o azulejo. E ao mencionar “(...) a reintrodução da figuração na azulejaria, rompendo com mais de meio século de desalinhamento com a pintura provocado pela prevalência da padronagem”, recordamos que também a azulejaria figurativa barroca veio quebrar a hegemonia do que ficou conhecido como o século dos padrões.
Regressando ao catálogo, os restantes textos centram-se em Jorge Colaço, apresentando, no entanto, uma visão renovada e profundamente atualizada sobre o pintor, tendo por base a investigação séria e sustentada dos sete autores convidados. A seleção e a organização dos textos fazem-nos querer avançar com mais interesse para o seguinte, estimulando a curiosidade que é um aspeto essencial, neste caso, na comunicação de ciência. A este motivante encadeamento não serão estranhos, com toda a certeza, o vasto conhecimento e a experiência de João Pedro Monteiro, coordenador editorial, que contou com a colaboração de Alexandre Nobre Pais, também comissário da exposição, e a coordenação geral de Maria Antónia Pinto de Matos.
O texto de abertura, intitulado “Jorge Colaço, pintor de azulejos (1868-1942) ”, é assinado por Cláudia Emanuel e traça uma biografia resumida do pintor que tem como objetivo apresentá-lo de um modo global - o seu percurso artístico, a sua vida pessoal. De cariz mais factual e descritivo, não deixa, todavia, de mostrar uma visão renovada dos núcleos seguramente realizados por Colaço, tendo por base o inventário desenvolvido no contexto da sua tese de doutoramento, entretanto concluída (Emanuel, 2021).
Segue-se a contextualização da azulejaria da época por Tiago Borges Lourenço e, já com o pintor decididamente no centro das atenções, Maria Helena Souto explora a relação entre Colaço e as permanências historicistas na azulejaria portuguesa, posicionando e confrontando a obra do pintor com as principais correntes artísticas europeias. Para tal, aborda conjuntos fundamentais, ilustrativos do carácter medievalista e histórico-literário da obra de Colaço, conferindo particular destaque à iconografia de D. Inês de Castro, presente no Palácio de Justiça de Coimbra.
O texto seguinte, de Ana Almeida, acentua o sentido colaborativo que, de um modo geral, é inerente à azulejaria, mas coloca Jorge Colaço no centro da encomenda ao defender que o pintor privilegiava a articulação das obras diretamente com os encomendadores, relegando os arquitetos para segundo plano. Ao controlar o circuito de produção e ao conceber diversos modelos de intervenção no espaço, facilmente adaptáveis às mais diversas condicionantes (desde o gosto do encomendador até ao próprio orçamento), chegando mesmo a materializar as suas propostas num álbum que é uma espécie de portfólio de ambientes, Colaço parece assumir-se também como o eixo em torno do qual se movimenta todo o processo de encomenda e aplicação de um revestimento azulejar, um estatuto muito distinto do experimentado pelos seus congéneres setecentistas.
Por sua vez, Patrícia Nóbrega regressa a um tema ao qual se dedica há algum tempo, as molduras (de Jorge Colaço), uma área marginalizada pela historiografia e que só recentemente tem merecido maior atenção. Observando as diferentes influências artísticas presentes nas molduras, resultantes quer de citações ou reapropriações do passado, quer da inspiração em catálogos de cerâmica ao tempo em circulação, a investigadora vai mostrando a hibridização estética que caracteriza a obra de Colaço, em grande medida assente nestes elementos responsáveis pela organização, integração e articulação dos revestimentos no espaço.
Uma vez definido o contexto em que se movimentou, exploradas algumas das suas obras e analisado o processo criativo e de encomenda, cabe a Sílvia Santa-Rita posicionar o artista e o seu trabalho no âmbito do Museu Nacional do Azulejo, começando por um breve estado da arte relativo à representatividade da obra de Colaço na coleção do museu e introduzindo o vasto espólio adquirido a um dos descendentes do artista, em 2001, que hoje se encontra disponível para consulta nesta instituição. Escolhendo exemplos muito reveladores da vantagem de dispor de fontes documentais de natureza distinta para estudar a azulejaria de Colaço, a autora apresenta de forma muito inteligente as diversas facetas do espólio (desde a fotografia ao desenho, passando pela correspondência e terminando nos recortes de jornais), que permitem estudar não apenas a obra mas também o contexto em que a mesma foi produzida e, sobretudo, o artista nas suas diversas valências de criador, de pesquisador na procura da verdade histórica que deveria representar, de gestor e de homem do seu tempo.
Por fim, João Manuel Mimoso revela os resultados do “estudo microscópio dalgumas técnicas usadas por Jorge Colaço”, acrescentando, como tem vindo a ser hábito por parte do MNAz, uma investigação instrumental rigorosa que, neste caso, explica como o pintor produziu efeitos cromáticos nunca antes alcançados, através de técnicas inovadoras, algumas das quais agora pela primeira vez comprovadas.
O catálogo termina com uma introdução às obras de Jorge Colaço que estiveram expostas no Museu Nacional do Azulejo, seguido das respetivas imagens, numa estrutura que se repete a propósito do núcleo dedicado à azulejaria figurativa do seu tempo, e com textos assinados respetivamente por Cláudia Emanuel e Tiago Borges Lourenço.
A disparidade entre o número de peças que integraram os dois núcleos expositivos, com as obras de Colaço a triplicar as dos seus contemporâneos (ainda que no primeiro caso se incluíssem estudos e outros documentos), acaba por testemunhar a preponderância deste artista no contexto comemorativo dos 150 anos do seu nascimento. No entanto, a semente está lançada, aguardando-se, num futuro muito próximo, uma exposição inteiramente dedicada ao “regresso à figuração”, capaz de oferecer uma visão integrada e renovada sobre um importante período da azulejaria portuguesa que olha para o passado, apontando para o presente/futuro, bem de acordo com o espírito da época.