Este número intenta sinalizar, identificando-os na sua própria proveniência histórica, discursos pedagógicos, instituições, experiências pioneiras e inovadoras que estiveram na génese e consolidação de uma intenção educativa explícita a partir da Era Moderna, tendo sobretudo como pano as realidades de Portugal e do Brasil.
Trata-se, desde logo, de tornar presentes vários diagnósticos, instrumentos e soluções que tornaram o ensino um domínio secular, tutelado, coordenado e regulado pelos governos nacionais. A partir de variadas proveniências, o modelo escolar moderno impôs a estandardização e a unificação de programas, de métodos e de atividades de ensino através de instituições que passaram a funcionar pela primeira vez em rede desde o ensino das primeiras letras. Desde finais do século XIX devolve-nos a presença de uma oferta educativa diversificada, mas sempre estruturada por graus e níveis e cujos planos curriculares se foram abrindo paulatinamente a disciplinas e conteúdos os mais diversificados. Os autores deste volume, à sua maneira, identificam trilhos nesse lento caminhar que, saindo dos domínios instrução, se foi paulatinamente dirigindo para a educação, fundindo novos modos de saber com novos modos de ser.
Trata-se, antes de mais, de reconhecer que o novo campo educativo se tornou crescentemente permeável à presença de experts os mais variados. Estes fizeram da educação e da pedagogia um território privilegiado de análise e intervenção, tendente a delimitar e a normalizar uma nova categoria social que se viria a universalizar, a do sujeito escolar. Por esta via, e em nome da educação integral do aluno, se legitimou um investimento disciplinar sem precedentes, incidindo simultaneamente sobre a inteligência, o corpo e a sensibilidade individual. A produção de um tipo de cidadão ativo, empreendedor e autodisciplinado, passou a exigir que os conhecimentos, os comportamentos e os próprios desejos dos alunos se tornassem não apenas compatíveis entre si quanto, sobretudo, altamente alinhados com os interesses do Estado Moderno.
A leitura dos artigos que compõem este volume deixa perceber formas específicas de circulação, apropriação e de relocalização do discurso pedagógico, ao mesmo tempo que nos convida a refletir acerca da génese e da proveniência das experiências escolares de que somos igualmente herdeiros diretos. Ainda que com referência quase sempre a dois países lusófonos, ajuda-nos a compreender como o território educativo é, nos últimos dois séculos, caracterizado pela permeabilidade e convergência de diagnósticos e soluções.
As noções de internalização e assimilação das referências estrangeiras nos espaços nacionais, dando consistência ao jogo internacional de influências e trocas que caracteriza os sistemas educativos modernos, está outrossim muito presente neste volume.
Tome-se, desde logo, o artigo de Alexandre Ribeiro e Silva que trata a viagem pedagógica de Vitor Cousin a vários países de língua alemã em 1831, publicadas no ano seguinte sob a forma de Relatório. As reflexões expendidas por aquele reformador e membro do Conselho Real de Instrução Pública francês ilustram bem como a constituição do que mais tarde se veio a identificar como a Educação Comparada desempenhou, desde sempre, um campo de aperfeiçoamento imprescindível ao desenvolvimento e aperfeiçoamento dos sistemas nacionais de ensino. Trabalhos como o seu permitem-nos compreender como os fins da educação se foram tornando isomórficos, melhor dito, como todas as realidades indígenas se estruturaram por referência ao exterior, a ponto de a referência vir a ser o próprio sistema mundial já na centúria seguinte. Nessa direção, o texto transita entre o campo do que correspondeu aos estudos da Educação Comparada para aquilo que hoje tem sido caracterizado como História Transnacional da Educação.
Para além da viagem pedagógica, é possível identificar, a propósito dessa circulação internacional dos saberes da educação, pistas e indícios da configuração progressiva do moderno modelo escolar. Foi singularmente esse o caso do chamado método para o “ensino rápido e aprasível do ler impresso, manuscrito, e numeração e do escrever”, desenvolvido pelo poeta português António Feliciano de Castilho, e que começaria a ser divulgado, por ação do próprio, na Corte do Brasil a partir de 1855. Tratava-se a um tempo de um projeto experimental de alfabetização e de uma pedagogia capaz da redenção social, na contramão da velha escola marcada pelo tédio e pela memorização. A rede de apoiantes, assim como das polémicas e oposições do Método Castilho no império brasileiro, são aqui analisadas por Suzana Lopes de Albuquerque. Castilho, que procurava introduzir o modo de ensino simultâneo em Portugal, elabora um método organizado de ensino da leitura e da escrita. E esse método chegou ao Brasil e foi implementado no século XIX na antiga colônia de Portugal.
Já a investigadora Bruna Soares Polachini se debruça sobre a trajetória transnacional da Grammatica Nacional (1864) do professor lisboeta Júlio Caldas Aulete que, durante a década de 1870, seria oficialmente adotada pelo colégio Pedro II, a escola secundária modelo do Império brasileiro. De novo trata-se, com este outro estudo, de ir desdobrando os domínios históricos - com os seus avanços e recuos, ambiguidades e polémicas - em que o campo do experimentalismo pedagógico se acercou e contaminou a linguagem e as práticas educativas que vieram a identificar os vários poderes institucionais. Aqui também se trata de compreender como se configurou nas práticas escolares um determinado campo disciplinar, que, nesse caso, passava exatamente pelo aprendizado da língua. A partir do estudo e do ensino de gramática, pode-se averiguar as maneiras de agir, os rituais, os usos e os costumes das escolas existentes à época em Portugal e no Brasil.
A tese, também ela generalizada de que a instituição escolar se afirma incitando os escolares a agir e a operar sobre a sua alma e corpo, pensamento e conduta, vinculando-os a uma atividade de constante vigilância e adequação aos princípios morais e de civilidade, surge bem vincada em dois artigos. Tiago Fernandes Maranhão discute os sentidos e os significados atribuídos à cultura física masculina no sistema educacional brasileiro de Oitocentos. Mostra como a moldagem do corpo surgia, então, já como uma complexa teia de representações e práticas no espaço institucional do Estado. A chegada do higienismo ao campo educativo, fazendo convergir os diagnósticos de especialistas da medicina, da psicologia e da pedagogia, foi na realidade fundamental para o desenvolvimento de um modelo de governo determinado em produzir uma população jovem saudável, forte e exibindo elevados índices de autodisciplina. Magda Silva, por seu turno, e ainda que tomando idênticas posições com origem no discurso psiquiátrico de circulação transnacional, centra a atenção na educação da infância no que classifica como a tecnologia do instinto. Analisa o processo de prevenção das tendências anormais. Tratava-se, mais uma vez, de perceber como o desenvolvimento psicológico podia conduzir a afetividade infantil a estados da mais elevada moderação e adequação.
Embora fazendo recuar a discussão a dois autores seminais e incontornáveis, como são Comenius e Rosseau, a investigadora Shirley dos Santos apresenta uma reflexão que permite encontrar a matriz genealógica sobre a qual a modernidade educativa se estrutura. A partir dos autores da Didática Magna e Emílio, traz-nos de volta a questão decisiva da infância como um domínio autónomo na Idade Moderna. A tese da criança como um adulto em miniatura - um homunculus a quem faltaria o conhecimento e a experiência próprios apenas da idade madura - viria depois também a ser negada por uma sucessão de trabalhos que passaram a documentar que o pensamento da primeira é não apenas quantitativa mas qualitativamente diferente do segundo. Seja como for, a sensibilidade social acerca da concepção de criança é paulatinamente alterada com o decorrer do tempo. E isso fica patente nos estudos de educadores como Comenius e Rousseau, cada um deles com um olhar diferenciado sobre a infância e, de modo decorrente, com uma perspectiva diversa de educação. Com efeito, cada alma infantil passou a entender-se como uma realidade dinâmica, uma criação contínua e irredutível, todavia inteiramente moldável, nas sucessivas fases de desenvolvimento.
O volume inclui ainda dois textos que incidem sobre duas experiências inovadoras situadas na capital portuguesa. A primeira, referente o Museu Pedagógico Municipal de Lisboa (1875-1892), é tratada por António Henriques, que logo situa a iniciativa no quadro de um complexo educativo de que faziam parte o Jardim de Infância Froebel e a Escola Normal Superior de Lisboa. Embora tendo um destino efêmero, esta iniciativa de Adolfo Coelho permite problematizar a atitude, mais geral, do Estado português quanto ao destino dos museus. A opção era a de assumir o seu valor de uso, tendo como destinatárias as classes populares - conferindo-lhes uma forte componente didática-instrumental em que o manejo das peças seria tão significativo quanto a sua disposição -, ou, pelo contrário, projetá-los para as elites, dando-lhes um valor contemplativo através da apresentação dos tesouros artísticos nacionais. Segue-se o trabalho de Ana Isabel Ribeiro sobre o primeiro Lactário de Lisboa (secção Documenta), inaugurado nos alvores de Novecentos. Esta iniciativa espelha, a seu modo, o início da mobilização das autoridades públicas e da própria sociedade civil em torno das problemáticas do sanitarismo e da assistência à infância.
Por fim, o trabalho de Ana Saraiva aborda o Plano dos Centenários, que consistia, em 1940, em um projeto geral da rede escolar, pelo qual seriam fixados o número, a localização e os tipos das escolas a construir em Portugal para aprimoramento de uma política pública voltada para o ensino primário. Naquele ano completavam-se oito séculos da existência de Portugal, bem como os trezentos anos de restauração da independência. Isso implicou um grande programa de comemorações, dentro do qual se inseriu o plano de criação e organização das escolas. O artigo traz, de maneira bastante instigante, o registro de documentação escrita e iconográfica a propósito do tema.
No âmbito dos estudos comparados, entre Portugal e Brasil, nota-se o vigor dos trabalhos neste dossiê compreendidos, todos eles buscando trabalhar as questões vinculadas à produção da institucionalização do fenômeno educativo, tão típica da Modernidade. Dessa forma, a leitura de tais trabalhos nos auxilia e inspira a produzir outras investigações, sobre novas e antigas temáticas, calcadas na busca de compreensão dos modos pelos quais o passado se irradia nas práticas e nas ações do tempo presente, levando-nos a nos constituir como expectadores curiosos de nossa contemporaneidade pedagógica.