Introdução
A interseção entre os processos de liberalização económica e os de digitalização das últimas décadas tem estado na origem da desorganização e reorganização em curso dos média com consequências profundas no jornalismo e nos seus profissionais. Por um lado, as políticas de desregulamentação e privatização, em conjunto com as transformações nos processos informativos derivados da viragem digital, abalaram ou arruinaram a viabilidade económica das instituições mediáticas tradicionais cujos proventos provinham da publicidade e das vendas. Por outro, as redes de computadores e a internet quebraram a prerrogativa da seleção, tratamento e disseminação de informação que os profissionais do jornalismo detinham. O jornalismo e os jornalistas passaram a estar sob um quadro de convulsão permanente gerado pela mudança nos objetivos e nas estruturas de recursos e regras das antigas e novas instituições mediáticas, as primeiras em situação de dificuldade ou erosão e as segundas viradas para a mera conformação à tecnologia e às oportunidades de mercado surgidas do digital.
O capitalismo digital tornou-se a força económica que envolve e orienta os média, constrangendo consequentemente a atividade jornalística e os jornalistas. Sob o pano-de-fundo muito sumariamente exposto, a condição socioprofissional “normal” dos jornalistas - normal no sentido de habitual - caracteriza-se pelos despedimentos coletivos, aumento do desemprego, contratos a prazo, formas descontínuas e intermitentes de trabalho, baixos salários, trabalho gratuito e a baixo custo de estagiários, em suma, pela precarização. Que efeitos teve a praga da covid-19, durante as 6 semanas em que decorreu a declaração de estado de emergência (DEE), entre março e abril de 2020, em Portugal, na praga da precarização? Provocou uma nova vaga de jornalistas desempregados? Atingiu novos setores dos profissionais do jornalismo? O lay-off pauperizou ainda mais os jornalistas? Estas foram as questões principais que organizaram o presente artigo e que estruturam as diferentes secções seguintes.
Começaremos por traçar os elementos principais, tanto teóricos como empíricos, que permitem compreender a tendência para a precarização dos jornalistas.
Depois, interpretamos os resultados relativos à condição socioprofissional obtidos através do questionário aplicado no âmbito de “Estudo Sobre os Efeitos do Estado de Emergência no Jornalismo no Contexto da Pandemia Covid-19”. O plano analítico está estruturado de forma a comparar os dados respeitantes ao período anterior à DEE de março de 2020 e as alterações então verificadas. É deste modo que procuramos aceder ao significado pleno da evidência estatística à luz da confluência da praga da covid-19 com a praga da precariedade.
Média, Capitalismo Digital e Precariedade nos Jornalistas
O trabalho dos jornalistas tem decorrido, desde há, pelo menos, 2 séculos, em instituições denominadas pelo termo média (Schmidt, 2020). Todas as instituições situam-se a um nível intermediário entre as grandes tendências sociais, económicas e políticas e as condutas e experiências concretas que ocorrem nessas instituições. Estas são detentoras de regras e procedimentos inseridos em estruturas de recursos organizacionais, financeiros e profissionais que procuram atingir objetivos pré-fixados e que condicionam os perfis, as formas laborais e as práticas dos seus trabalhadores. Os média são instituições simultaneamente do mundo da cultura e do mundo da economia: da cultura porque concebem formas simbólicas e culturais de organização da experiência das sociedades; da economia porque buscam ganhos provenientes do mercado. As tendências macro de liberalização e digitalização têm vindo a concorrer para a reconfiguração, ao nível meso, do regime dos média e das suas instituições, e ao nível micro, das práticas do jornalismo. As grandes tendências de liberalização e digitalização, em conjugação, mas também em tensão, têm concorrido para um novo empreendimento do capital: a exploração de todas as possibilidades económicas da digitalização, parte do capitalismo global que se tem vindo a afirmar desde o último quartel do século XX.
O que pode ser denominado por capitalismo digital é a expressão de um tipo de racionalidade económica que procura o lucro, liberta-o de todo o entrave, em todos os domínios do conhecimento, da informação, do entretenimento e de qualquer outro âmbito suscetível de conversão digital. O crescimento dos conteúdos jornalísticos e informativos (ou mescla de ambos) como produtos económicos e o crescimento do consumo de tais produtos tornaram-se, assim, as bases constituintes das empresas de comunicação no novo regime mediático. O juízo de valor é meramente quantitativo e aplica-se de maneira indiferenciada em todos os níveis do processo informativo e exclui toda a ideia de limitação. Sob o impulso deste tipo de racionalidade económica e das inovações tecnológicas no âmbito digital que lhe possam ser afins, antigas empresas e instituições mediáticas arruinaram-se, outras procuraram recriar-se e surgiram novos atores da imprensa e da informação. A precariedade dos trabalhadores revela-se um dos seus alicerces.
O conceito de precariedade tem sido objeto de diversas abordagens teóricas. Embora estas não traduzam, necessariamente, conceções antagónicas, os seus distintos enfoques contribuíram para a inexistência de um sentido unívoco do termo. A par de uma aceção ontológica e existencial, fiel a uma condição humana inerentemente contingente, o seu significado surge comumente associado à proliferação de novas formas de contrato temporário, fruto da desregulação do direito do trabalho, abrangendo também a facilidade no despedimento, a redução salarial e aumento do tempo de trabalho. Sem implicar, propriamente, uma contraposição a este diagnóstico, alguns estudos consideram o pendor estratégico deste processo, ou seja, a precariedade não enquanto exceção, mas sim como um dos fundamentos que a capacidade de agenciamento do capital global tem estimulado desde as últimas décadas do século XX. A esta luz, a manutenção de um quadro de risco e incerteza pode ser considerada não apenas uma forma de adaptação dos efetivos às circunstâncias do mercado de trabalho, mas uma orientação intrínseca a um governo eficaz e produtivista da força de trabalho (Lorey, 2015). Segundo um outro tipo de contributos, os trabalhadores tornam-se “empreendedores”, a interioridade do trabalhador é penetrada pelo discurso empresarial de modo a alterar o seu saber-ser e colocá-lo inteiramente ao serviço da produção, com efeitos de fragmentação e individualização da força de trabalho. Outras análises têm ainda focado a emergência de um sujeito político, o precariado, manifesto através de novas formas de mobilização e ação coletiva (Armano et al., 2017). Nesta investigação, o conceito de precariedade remete para a articulação entre o aumento e diversificação dos jornalistas sob vínculos temporários, os despedimentos, o aumento do desemprego e os baixos salários.
A crise da imprensa em papel desde o início do milénio, que se traduziu na tendência para a diminuição das vendas do número de exemplares (Fidalgo, 2008), é um dos resultados do dumping informativo provocado pelo crescimento de edições digitais (nem todas de cariz especificamente noticioso) e agudizou-se com as crises económico-mundial de 2008 e das dívidas soberanas de 2011 e consequente aplicação de um plano de ajustamento estrutural concebido pela Troika (Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia e Banco Central Europeu). A falência de alguns média e o desenvolvimento de processos de reestruturação empresarial resultam de perdas de receita associadas à diminuição do consumo interno e à crise de outros setores, em particular da banca e da publicidade (Silva, 2015; Sousa & Santos, 2014). O novo regime, com os seus horizontes económicos específicos, inovações tecnológicas constantes, mudanças empresariais e todo um novo quadro nos modos de produção, edição e divulgação da informação, tem levado os média a um estado de turbulência. Este agudiza as disposições para uma visão comercial da imprensa e para o aproveitamento das oportunidades emergentes da digitalização (Garcia et al., 2020). Não seria de esperar que a profissão de jornalista, incrustada desde sempre nos média, ficasse incólume, bem como as suas práticas.
Em Portugal, sob o cenário delineado, o jornalismo tem sofrido mudanças de grande espetro, entre elas as que dizem respeito às condições socioprofissionais e de emprego, modeladas pelas tendências geradoras de precariedade. Os seus efeitos implicam uma crescente representatividade dos jornalistas sob vínculos temporários, uma vez que os despedimentos coletivos tendem a visar profissionais com carreiras consolidadas e salários mais elevados (Baptista, 2012).
Definindo a Situação de Precariedade nos Jornalistas Portugueses
Em 1982, o “I Congresso dos Jornalistas Portugueses” referia nas suas conclusões a necessidade de se combater “o recurso sistemático das empresas a colaboradores, fator restritivo do acesso de candidatos à profissão e de jornalistas profissionais a postos de trabalho”, bem como “os contratos a prazo e outras formas mais ou menos camufladas de exploração de jornalistas, nomeadamente as que exigem a prestação de serviços incompatíveis com as funções profissionais legalmente definidas” (I Congresso dos Jornalistas, 1982, pp. 19-20). Esta afirmação decorre do aumento de recurso a esta nova aritmética contratual que, segundo os números então divulgados pelo Sindicato dos Jornalistas (SJ, 1981), regulava a condição de cerca de 10% da força de trabalho das redações.
O primeiro inquérito realizado aos jornalistas, em 1990, confirmaria um cenário próximo do apresentado pelo SJ anos antes. Apesar de a maioria dos jornalistas se encontrar numa situação profissional estável, enquadrada por contratos coletivos de trabalho (45,5%) e acordos de empresa (27,7%), uma proporção menor, mas ainda significativa, encontrava-se sob contratos individuais (19,4%), a maioria dos quais com contratos a termo ou mesmo sem nenhum contrato (7,3%; Garcia & Castro, 1993, p. 106). Estes dados eram indicativos, por sua vez, de uma profissão estratificada com base na idade e no género. As mulheres e os mais jovens encontravam-se, primordialmente, nos lugares de aspiração à carreira ou começavam a dar os primeiros passos na mesma, recebendo salários mais reduzidos até 90.000$ (450€). Nos antípodas, os jornalistas com maior antiguidade e do género masculino tendiam a ocupar cargos de chefia e direção mais bem remunerados (Garcia & Castro, 1993, pp. 107--108).
Uma tal segmentação não sofreria alterações significativas ao longo dos anos. Um segundo estudo realizado em 1997 confirmaria a reprodução destes critérios, ou seja, um maior número de mulheres, de elementos com formação superior e de menores cargas salariais entre o grupo de jovens jornalistas (Garcia & Silva, 2009). Se, por um lado, estas condições acabavam, muitas vezes, por constituir uma etapa inicial de uma carreira em desenvolvimento, à medida da qual se adquiria uma maior estabilidade, por outro, o recurso a contratos de prestação de serviços (os “recibos verdes”) e a estagiários tornava-se cada vez mais comum. A “proliferação de situações de trabalho precário”, como se pode ler na resolução do “III Congresso dos Jornalistas”, visa “tornar mais baratas e mais precárias relações de trabalho efetivas e permanentes”, sendo assim responsável por “situações de intolerável injustiça e dependência para muitos jornalistas, pondo em causa a própria Liberdade de Imprensa” (III Congresso dos Jornalistas, 1998, p. 63). O documento denuncia igualmente “a exploração do trabalho de estagiários, considerando urgente a sua regulamentação, como etapa decisiva para uma efetiva profissionalização dos candidatos” (III Congresso dos Jornalistas, 1998, p. 63).
Este fenómeno tornar-se-ia mais evidente à medida que surgem os primeiros sinais de uma crise dos média noticiosos que, como mencionado, viria a sofrer uma agudização nos últimos anos. No período entre 2004 e 2009, a percentagem de estagiários nas redações aumenta dos 5,4% para os 9,2%, evolução que contrasta com a dos jornalistas profissionais, em cada vez menor número (Rebelo, 2011, p. 57). Os resultados de uma investigação dedicada à condição dos jovens jornalistas em Portugal confirmam esta tendência, cujo objetivo parece estar longe de se resumir a uma dimensão pedagógica (Garcia et al., 2014). A quase totalidade dos inquiridos, todos com menos de 38 anos, passou por, pelo menos, um estágio. Uma grande parte (35%) acabou por reproduzir esta experiência, realizando dois ou mais estágios. Paralelamente, metade do universo encontrava-se desempregada ou apresentava um vínculo laboral precário, com destaque para o regime de prestação de serviços. Este, porém, não resultava de uma opção própria, traduzindo na maior parte dos casos uma dificuldade em se conseguir um contrato de trabalho (Garcia et al., 2014, p. 14).
Embora o estudo se concentrasse numa população mais jovem, os dados obtidos assinalam o recurso sistemático das empresas de comunicação social a um tipo de contratação temporária, algo que se encontra longe de corresponder a uma especificidade nacional. O aumento da precariedade no jornalismo corresponde a um fenómeno que não se deixa limitar por fronteiras nacionais, inserindo-se numa transição global para um modelo de organização pós-industrial e digital do jornalismo, cujo objetivo é reduzi-lo “a uma forma simples de trabalho, em que os jornalistas (do ponto de vista da gestão) são considerados jornalistas flexíveis, polivalentes e altamente movíveis” (Deuze & Fortunati, 2010, p. 118).
Investigações mais recentes, baseadas em inquéritos aos profissionais do jornalismo, indicam que quase 50% da sua força de trabalho se encontra sob contratos temporários e/ou mais de metade recebe um salário mensal igual ou inferior a 1.000€ (Cardoso & Mendonça, 2017; Miranda & Gama, 2019). Anteriormente reservada aos jornalistas mais jovens, a precariedade laboral deixou de ser uma condição de um segmento específico, alargando-se a cada vez mais idades e categorias.
Segundo os dados apurados no “Estudo Sobre os Efeitos do Estado de Emergência no Jornalismo no Contexto da Pandemia Covid-19”, nessa altura, grande parte da população inquirida (ver Tabela 1) desenvolvia o jornalismo como atividade principal, a maioria (62%) com 41 ou mais anos de idade. No entanto, é importante salientar a existência de 12,4% de respondentes, geralmente homens acima dos 50 anos de idade, que acumulam a profissão com outro tipo de atividade remunerada; e de 3% de desempregados, um valor inferior à taxa de desemprego nacional em março deste ano, a qual se situava em 6,2% (Instituto Nacional de Estatística, 2020). Também é relevante realçar que mais de metade dos jornalistas sem emprego (correspondendo a apenas 28 respondentes) apresentava uma idade compreendida entre os 51 e os 70 anos de idade. A representatividade de jornalistas do género feminino, por um lado, e sem estudos superiores, por outro, no seio deste grupo é ligeiramente superior à verificada na amostra.
Apenas metade dos respondentes, cerca de 50% (ver Tabela 2), possuía um contrato de trabalho permanente, facto que, por sua vez, confirma o quadro de relações de emprego previamente descrito. O número de jornalistas sob contratos temporários aproxima-se, concomitantemente, deste valor, com destaque para os que veem a sua condição social regulada por regimes de prestação de serviços com e sem avença. A aplicação deste tipo de vínculos, por sua vez, não coincide com os seus objetivos no plano legal, ou seja, a regulação do estatuto de freelancer. Segundo os dados apurados, 35,5% encaram-no como um mal menor, em resultado da dificuldade de obter um contrato de trabalho; e 20,8% admitem que, em termos práticas, a sua relação de trabalho se enquadra num regime por conta de outrem1. Entre estes, mais de metade (63% e 52,5%) apresentava uma idade compreendida entre os 41 e os 70 anos.
A composição do universo de jornalistas precários é indicadora do grau de extensão deste tipo de contratação. Embora a percentagem de profissionais inseridos nos quadros das empresas com ensino superior completo, cerca de 63%, seja superior à dos que se encontram sob contratos a termo ou regimes de prestação de serviços com níveis de formação semelhantes, os valores destes últimos não são substancialmente inferiores, ultrapassando os 50%. Contata-se ainda o alargamento de vínculos temporários à generalidade das categorias etárias. A título de exemplo, entre os 10,5% que se encontram sob contrato a termo certo, 60% têm 41 ou mais anos, um valor que aumenta para cerca de 69% no caso dos jornalistas em regime de prestações de serviços (com e sem avença).
Os dados do questionário aplicado indicam também que a disseminação da contratação temporária é igualmente visível nos dados relativos à condição profissional. Os resultados do inquérito demonstram a existência de jornalistas que exercem cargos editoriais e administrativos contratados a termo certo, incerto e sob regime de prestação de serviços: 27,5% dos editores e coordenadores de secção e 25,6% dos chefes e subchefes de redação. Mesmo entre os membros da direção - todos eles homens, não se verificando um único caso de ocupação destas funções por parte de uma respondente do género feminino -, 24,3% encontram-se sob contratos temporários.
Estes dados colocam assim em causa a definição da precariedade como algo “atípico”, uma categoria presente nas primeiras análises do fenómeno (Cerdeira, 2000; Kóvacs, 1999). Embora encarado como o reflexo de um processo de segmentação laboral no seio da própria empresa, este obedecia a uma lógica baseada em fatores como a qualificação. Neste modelo de organização por coroas, em redor de um núcleo central de funcionários, cujo papel fundamental na conceção e gestão do trabalho lhes garantia uma relativa estabilidade, localizavam-se setores periféricos, muitas vezes empregados por outras empresas subcontratadas, com tarefas de menor complexidade e, logo, com condições contratuais e salariais mais precárias. Apesar de desigual, este paradigma continha em si próprio a promessa de sucesso a quem desenvolvesse as qualificações e competências necessárias ao acesso ao núcleo central. Quando muito, estas modalidades contratuais funcionariam como um meio de integração profissional dos mais jovens, constituindo um capítulo inicial de uma carreira que, ao longo dos anos, se desenvolveria ordenadamente, etapa a etapa.
O alargamento da precariedade às demais funções e responsabilidades numa empresa, inclusive as desempenhadas pelo núcleo central, veio desatualizar este modelo e, de forma associada, a própria ideia de carreira. A sua redefinição, sob o signo de “carreira portefólio”, é sintomática da acumulação de contratos temporários - do temporário permanente (Beck, 2000, p. 70) - e da consequente normalização do risco e da incerteza (Lorey, 2015).
Os dados relativos às remunerações e à filiação sindical podem ser interpretados como sendo fruto desta relação. Antes da DEE, como é possível observar na Tabela 3, cerca de metade dos respondentes recebia um salário inferior a 1.000€ brutos por mês (de resto, conforme apontado por estudos anteriormente mencionados), situação que contrasta com os 30% que auferem uma remuneração superior a 1.500€. O cruzamento destes dados com informação relativa ao vínculo contratual permite verificar uma correlação direta entre os valores da remuneração e da percentagem de jornalistas a contrato sem termo. Entre os assalariados até 634€ mensais apenas é possível identificar 16% de profissionais integrados nos quadros. Porém, no seio do grupo de jornalistas com uma remuneração entre 1.500€ e 2.000€ existem 62% com contrato sem termo, valor que aumenta para os 75% no caso dos que recebem 2.001€ a 2.500€. Correspondentemente, quanto menor o salário, maior a percentagem de jornalistas sob este tipo de vínculos.
Esta associação não surge de forma tão taxativa na análise por categorias etárias. A média de idades dos respondentes, equivalente a 47 anos, conduz a que, com a exceção dos salários entre 635€ e 900€, tanto os valores até 634€, como os acima dos 1.000 €, sejam maioritariamente patentes entre jornalistas com mais de 41 anos. Apesar de a partir deste montante se verificar uma correlação entre aumento da idade e do salário, não deixa de ser significativo que, considerando-se os profissionais entre os 51 e os 70 anos, os maiores valores percentuais se localizem nos ordenados até 634€ (30,7%), entre 2.001€ e 2.500 € (41,1%) e acima dos 2.500 € (63,9%). Em termos da relação do fator salarial com o género, e tendo como referência a composição do universo dos respondentes, é possível apurar uma maior representatividade das mulheres nas remunerações entre os 635€ e os 1.500€, uma equivalência nos salários entre os 1.501€ e os 2.000€ e uma menor presença feminina (se bem que pouco substancial) entre profissionais com ordenados acima deste último valor, algo que se poderá dever à maior dificuldade de acesso a cargos de direção (Lobo et al., 2017).
Por fim, importa sublinhar alguns resultados relativos à filiação no Sindicato dos Jornalistas (SJ; ver Tabela 4). Apenas 22,8% dos inquiridos afirmam pertencer a esta organização, sendo que 40% referem não pretender vir a fazê-lo, um valor superior aos que, pelo contrário, pensam vir a sindicalizar-se (18,2%). A grande parte dos sindicalizados apresenta um vínculo permanente (cerca de 60%), mais de 41 anos (82,8%, com 46,8% acima dos 51 anos) e 72,5% recebem mais de 1.000 € (sendo que, destes, 49% recebem mais de 1.500€). Entre os que deixaram de pertencer à organização e os que não pretendem vir a sindicalizar-se no futuro, o panorama é algo inverso: a percentagem de jornalistas sob contratos temporários é maior (54% e 48%), a maioria recebe menos de 1.500€ no primeiro caso (62%) e um montante inferior a 1.000€ no segundo (56,6%). Por sua vez, e dado o aumento desta lógica contratual, a sua composição etária tende a equivaler à da amostra, apresentando uma idade inferior aos 50 anos (51% e 67,7%). Por outro lado, é importante frisar que, entre os que planeiam vir a sindicalizar-se, existe uma maior representatividade de jornalistas mais jovens (53% abaixo dos 40 anos), com vínculos temporários (cerca de 57%) e mulheres (42%).
Os dados expostos resultam, em parte, da proliferação de contratos temporários nas redações. A localização dos salários mais reduzidos entre quem não goza de uma situação profissional mais estável reflete, neste sentido, o quadro de risco e incerteza anteriormente mencionado. Alimentar a esperança na sua superação (Kuehn & Corrigan, 2013) ou, simplesmente, garantir a sobrevivência determinam uma postura obsequente perante as condições salariais proporcionadas pelo mercado, principalmente quando este apresenta elevados níveis de concentração empresarial (Silva, 2004). Além de traduzir esta posição, incompatível com antagonismos reivindicativos e propícia a uma maior competitividade, os diversos tipos de desigualdades interdependentes vêm colocar a ideia que, historicamente, mobiliza um tipo de ação sindical: a de uma classe unida nas suas condições e interesses. Este processo, de resto, não é propriamente recente, nem exclusivo dos jornalistas, a avaliar pela redução das taxas de sindicalização em Portugal e noutros países (Alves, 2020; Cerdeira, 1997). Ao mesmo tempo, porém, a não adesão ao sindicato parece dever-se à existência de dispositivos indutores de tais práticas, algumas delas significantes da transformação das redações em zonas de não direito (Accardo, 2007), não tanto à descrença no mesmo, como demonstrado pelo número de respostas a assinalar a vontade numa adesão futura.
Os Efeitos da Declaração do Estado de Emergência
A DEE de março/abril de 2020 foi responsável por alterações na condição de 11,8% dos jornalistas inquiridos, conforme é possível observar na Tabela 5. A maior parte das novas situações resulta, em primeiro lugar, da aplicação do regime de lay-off por parte das entidades empregadoras. A percentagem de mulheres jornalistas envolvidas neste processo (44,9%) é preponderante, tendo em conta a composição de género da amostra.
As novas situações no jornalismo são proporcionadas, em segundo lugar, pelo fim de colaboração, solução aplicada a jornalistas sob o regime freelancer. A resposta económica do setor da comunicação social à epidemia parece pouco destoar do tipo de medidas adotadas nas restantes áreas. A nível geral, estas reproduzem desigualdades de coberturas e, por conseguinte, de vulnerabilidades ao nível do emprego. O facto de os trabalhadores sob regime de prestação de serviços apresentarem uma relação contratual que, teoricamente, se assemelha à de um empresário em nome individual facilita a cessação do contrato em termos quer de celeridade do processo quer dos custos associados, dado que não envolve o pagamento de qualquer tipo de indemnizações (Caldas et al., 2020). Apenas 29 jornalistas (3,8%) tiveram acesso a algum tipo de subsídio ou apoio específico, a maioria dos quais com contrato sem termo (24,1%) ou prestadores de serviços sem avença (65%). A grande parte dos jornalistas sob este regime não requisitou o acesso a apoio extraordinário a trabalhadores independentes, tendo apenas 22% solicitado este instrumento. Embora tal possa dever-se à continuação da atividade dos jornalistas sob este regime, o seu reduzido valor poderá encontrar-se igualmente associado aos critérios de atribuição, limitando-a aos trabalhadores independentes que tenham sofrido uma cessação total da sua atividade ou uma redução até 40% da faturação nos 30 dias anteriores ao do pedido junto dos serviços da Segurança Social (Caldas et al., 2020).
São estas prerrogativas que, por outro lado, ajudam a explicar as alterações à condição profissional após a DEE em 94 casos. A contratação sem termo representa apenas 11,7% deste universo, maioritariamente regulado por contratos temporários: prestação de serviços com (6,4%) e sem avença (19,1%), a termo incerto (6,4%) ou a termo certo (7,4%), entre outros. Poder-se-á assim concluir que se trata de um dispositivo que, por assegurar menores custos na dispensa do trabalhador, constitui uma opção que não comporta riscos elevados. É igualmente possível constatar um aumento do desemprego, correspondente a 17% das novas situações. No cômputo geral, a atual composição da população em termos de condições de trabalho pouco difere da verificada no momento da DEE. Em termos remuneratórios, as novas situações envolvem preferencialmente salários reduzidos, mais de metade dos quais são inferiores a 900€: 11,2% não auferem vencimento (estágios), 28% apresentam um valor até 634€ e 22,9% entre os 635€ e os 900€. As remunerações acima dos 1.500€ abarcam apenas 11% dos novos casos. Dos 11 novos contratos com valores acima dos 2.000€ apenas três foram assinados por mulheres. É possível assim comprovar um aumento dos jornalistas com um rendimento bruto mensal igual ou inferior a 900€, equivalente a 47% e, ao mesmo tempo, a diminuição do número de profissionais com salários superiores a 1.000€ dos 50,8% para os 44,2%.
Conclusão
Em finais de outubro de 2020, a Global Notícias, um dos maiores grupos de média em Portugal, proprietário de títulos como o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias ou da rádio TSF, anunciava um despedimento coletivo de 81 funcionários, 17 dos quais jornalistas. Esta medida, segundo um comunicado do Sindicato dos Jornalistas (2020), decorre após o grupo ter recorrido ao regime de lay-off simplificado. Embora a operação não seja propriamente inédita - tanto no setor, como no próprio grupo, responsável por processos semelhantes em 2009 e 2014 -, esta traduz um agravamento da situação económica das empresas de comunicação social, por sua vez, provocada pela sucessão de crises ao longo dos últimos anos.
Uma crise, no entanto, poderá sempre representar uma oportunidade de empreendimento ou, segundo o famigerado conceito de Schumpeter (1975), de destruição criativa. Os resultados do “Estudo Sobre os Efeitos do Estado de Emergência no Jornalismo no Contexto da Pandemia Covid-19” são demonstrativos dos efeitos dos processos de reestruturação e reengenharia nas redações que têm como antecedentes os planos de ajustamento estrutural desenhados pela Troika. Outrora definido como “atípico”, o recurso a um tipo de contratação temporária tornou-se cada vez mais comum, passando a englobar um maior número de profissionais. A precariedade deixou assim de constituir um fenómeno meramente juvenil ou apanágio de uns tantos jornalistas freelancers para passar a regular a condição socioprofissional de trabalhadores com vários anos de carreira e até com funções editoriais e de direção. Este alargamento, conforme argumentado, produz resultados diretos sobre os montantes salariais auferidos. O ordenado de “1.000€”, significante de uma geração mais nova - os mileuristas -, adquire novos contornos, passando a definir a condição de diversas gerações de jornalistas. Todavia, estas mudanças não parecem incentivar uma ação no coletivo, pelo menos através do sindicato.
O chamado “novo normal” provocado pela praga da covid-19 não parece suscitar uma inversão deste quadro. Face à atual crise económica, as políticas de contenção passam a visar igualmente a saúde financeira das empresas; noutras palavras, a proceder a reduções de custos que, num primeiro momento, abrangem os trabalhadores cujos vínculos (ou a inexistência dos mesmos) permitem processos mais céleres. A ação desencadeada pela Global Notícias pode, todavia, corresponder a uma imagem de um futuro próximo.
Este desenvolver-se-á num contexto em que a aplicação económico-produtiva de tecnologias digitais algorítmicas se faz sentir nos mais variados âmbitos, inclusive na comunicação social. A emergência de serviços automáticos de escrita, por um lado, e a extensão de um tipo de trabalho parcelar e temporário (a gig economy), organizado e gerido a partir de plataformas digitais, a todas as áreas, independentemente da qualificação, por outro, prenunciam um tipo de jornalismo automatizado e robotizado, em que ao trabalhador caberá funções cada vez mais subalternas, realizadas ao ritmo frenético da máquina (Mosco, 2019).
As atuais rotinas de produção jornalística não se encontram distantes deste cenário de proletarização. A par da polivalência de responsabilidades, a tendência é para que estas se realizem a partir da redação, a contrarrelógio e sob constante avaliação quantitativa da receção (Camponez, 2011; Garcia et. al., 2018; Waldenström et al., 2018; Witschge & Nygren, 2009). A reconfiguração operada pelo teletrabalho não parece, de todo, contrariar esta lógica (Miranda et al., 2021), contribuindo ao mesmo tempo para um maior isolamento do jornalista.
A degradação das condições de emprego e de trabalho acaba, conforme os resultados deste estudo, por se estender às perceções e expectativas em torno de uma carreira no jornalismo (Camponez & Oliveira, 2021). A partir do momento em que este, aos poucos, se torna noutro tipo de trabalho, distinto daquele que se teve ou que se pensou um dia ter, sem garantias mínimas de estabilidade material e/ou de continuidade, abandoná-lo por outro tipo de ocupação acaba por constituir uma hipótese cada vez mais viável (Fidalgo, 2019; Matos, 2020; O’Donnell et al., 2016). No final, perante esta dramática transformação, nenhum jornalismo é melhor que jornalismo nenhum. Em conclusão: a pandemia da covid-19 está a representar um acelerador de tendências anteriores; por isso, em vez de qualquer retorno ao dito normal, o que é necessário é colocar esse normal em questão.