Introdução
O debate sobre o populismo, tradicionalmente associado à política da América Latina, ressurgiu nas últimas décadas sob uma perspectiva global, a partir da ascensão de lideranças identificadas como populistas em democracias maduras da Europa e outras partes do mundo (Krause & Hoffman, 2010). No Brasil, embora as origens do termo datem da década de 1930, o populismo ganha as primeiras formulações nos anos 1980, passando a ser empregado, inicialmente, para definir líderes carismáticos de massa (Ferreira, 2001).
A eleição do ex-deputado federal de extrema-direita Jair Bolsonaro (sem partido) para a Presidência da República, em 2018, aqueceu as discussões sobre esse fenômeno político e tem motivado debates profícuos tanto na literatura acadêmica quanto na imprensa. Pesquisa publicada em 2019 pelo Team Populism, rede internacional de pesquisadores coordenada pela Universidade de Brigham Young (EUA), apontou que Bolsonaro foi o primeiro político populista a chegar à Presidência do Brasil desde Fernando Collor (1990-1992). De acordo com a pesquisa, está fora dessa lista, por exemplo, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), principal adversário político de Bolsonaro, que governou o Brasil de 2003 a 2010 e deixou o cargo com 87% de aprovação popular.
Esse resultado suscita indagações, na medida em que, não raramente, Lula tem sido rotulado como exemplo de líder populista de esquerda por diferentes veículos de imprensa, contrariando as conclusões do Team Populism. Conforme Albuquerque (2017), o populismo foi um dos aspectos usados pela mídia brasileira para criticar os governos petistas no País.
Diante da aparente multissignificância em torno das noções do populismo, é objetivo do presente artigo investigar a aplicação desse termo por dois dos principais jornais brasileiros, Folha de S. Paulo (FSP) e O Estado de S. Paulo (OESP), em ocasiões nas quais fazem referência específica a Lula e a Bolsonaro. Para isso, serão investigados 41 editoriais da FSP e OESP publicados nos anos de 2003, 2011 e 2019 (a construção do corpus empírico será detalhada na seção 4), buscando-se compreender de que modo os jornais estabelecem conexões entre o populismo e aqueles dois líderes, que têm protagonizado as disputas político-eleitorais no País desde 2018.
A partir da análise empírica e da discussão teórica empreendida no presente artigo, será possível identificar possíveis convergências e divergências nos conceitos de populismo empregados entre a Folha e O Estado e, ainda, entre os dois jornais e a literatura acadêmica.
Na primeira parte do trabalho, discutiremos o populismo à luz de autores de referência no tema; no tópico seguinte, contextualizaremos brevemente a FSP e do OESP no cenário jornalístico brasileiro; posteriormente, detalharemos os procedimentos metodológicos, a análise empírica e a discussão dos resultados. As considerações finais apontam caminhos para estudos futuros, que possam aprofundar a discussão aqui proposta.
2. Populismo e suas pluralidades
O conceito de populismo é comumente interpretado como sendo uma ideologia, um regime político típico de um período histórico específico, ou um tipo de relação direta entre um governante carismático e seus governados. Laclau (2013) descreve o termo “razão populista” como uma lógica política que não cabe em restrições geográficas ou cronológicas, caracterizando-se como um pensamento político que marca a atuação de grupos que não compõem tradicionalmente a esfera institucional.
Para Laclau (2011), a ausência de um conteúdo fixo do discurso populista é elemento fundamental. O viés populista estrutura-se através do que o autor chama de “significante vazio”, sendo que este pode ser preenchido por critérios de nacionalidade, elementos étnicos, o amor ao povo, um mito fundador daquela sociedade, dentre outros. Considerando a grande amplitude desse tipo de discurso, bem como sua capacidade de moldar-se às circunstâncias, o “significante vazio” evita o surgimento de sectarismos entre os integrantes do grupo receptor das mensagens.
Torcuato Di Tella (1973) aborda a lógica de dualidades apresentadas pela luta de classes presente no discurso populista, onde o conceito de “nós contra eles” muda de acordo com o contexto social, cultural e econômico. Para o autor, o populismo caracteriza-se como um “movimento político com forte apoio popular, com a participação de setores não operários com grande influência no partido e partidários de uma ideologia anti status-quo” (Di Tella, 1973, p. 47). Di Tella mapeou possibilidades organizacionais do que pode ser considerado um movimento populista de acordo com a mobilização e constituição de grupos sociais, e como a distribuição das “castas” que compõem a sociedade (e que encontram-se insatisfeitas com o status-quo) pode influenciar na forma como esse movimento se apresenta. O “povo” é conceito-chave na discussão do populismo por diferentes autores.
Segundo Laclau (1978), ele não é a totalidade dos membros de uma comunidade que aspira ser um todo unificado. Porém, é na interseção entre a universalidade do populus e a parcialidade da plebe que repousa a peculiaridade do “povo” como um ator histórico.
Para Moffitt e Tormey (2014), a evocação do “povo” é o elemento que diferencia o populismo de outros estilos políticos. O “povo” é tanto o público central quanto o sujeito que os populistas tentam “apresentar”, inserindo-se como representantes desse povo através de suas performances políticas. A “elite”, o “establishment”, ou até mesmo grupos sociais (como imigrantes, por exemplo) podem ser evocados como inimigos que devem ser derrotados em prol do poder soberano do “povo”.
O retorno do “povo” como uma categoria política pode ser considerada como a maior contribuição da obra de Laclau, onde se ressalta que o “povo” não é a soma dos membros da comunidade, mas a soma daqueles tidos como “excluídos”, que tomou para si a representação do todo. Conforme elucida o autor, há centralidade, não somente do povo, como também da figura do líder no populismo. Se a lógica da equivalência apresentada por Laclau remete à identificação da unidade do grupo, o líder é aquele que pode representar ou sintetizar o papel da significação. “A unificação simbólica do grupo em torno de uma individualidade ... é inerente à formação de um povo” (Laclau, 2013, p. 160).
No entanto, o pensamento de Laclau vai na contramão das definições mais difundidas do populismo. Para o autor, embora haja uma importância na figura do líder, no populismo não se trata apenas da ligação entre um líder carismático e as massas, algo que enfraqueceria a democracia representativa. Tais modelos poderiam ser intitulados nacionalistas, antiliberais, assistencialistas, mas não “populistas”. Para Laclau, o populismo não seria um mal ou um bem em si mesmo, e, sim, uma “forma de construção da política, sem conteúdo ideológico específico”, podendo ser de direita ou de esquerda, e dando conta dos mais heterogêneos e diversos levantes e movimentos sociais e políticos.
Percebe-se como ponto de interseção entre os trabalhos aqui mencionados o fato de que o povo se mobiliza em torno de demandas não atendidas que podem ser completamente diferentes e circunstanciais, mas que se conectam pelo fato de terem sido “abandonadas” pelo governo -, e, desse modo, buscam confrontar o poder constituído. Cria-se uma ruptura no sistema, e daí se apresenta a diferença entre o povo e os poderosos, opondo o povo às instituições formais, onde se abrigam as elites e as forças conservadoras circunstanciais. Moffitt e Tormey (2014) defendem que, reconhecendo que variados estilos políticos são utilizados de forma diferente para fins diferentes, podemos observar que as identidades políticas e as atuações dessas identidades são cada vez mais fluidas e contingentes, e que a forma e contexto em que são usadas devem ser analisadas para uma maior compreensão do cenário político.
No Brasil, as primeiras formulações sobre o termo populismo foram feitas no contexto da redemocratização (1985) e traziam forte carga negativa. Quando taxavam uns aos outros de populistas, entendia-se que os políticos “procuravam fabricar imagens politicamente desmerecedoras do adversário, esforçando-se para elaborar uma representação negativa daquele que se queria combater no decorrer da própria luta política” (Ferreira, 2001, p. 8). Na imprensa e na linguagem cotidiana da população, o termo impregnou-se da mesma conotação pejorativa.
A expressão populismo tornou-se “senso comum” para definir o político que age de má-fé, enganando o povo principalmente nos períodos eleitorais. Apesar das tentativas de substituir o termo “manipulação” por “aliança entre líder e massa”, houve pouca adesão a essa categoria. Isso devido à “assimetria de poderes entre os termos” (Ferreira, 2001, p. 35), onde há sempre um lado mais necessitado.
As primeiras tentativas de definir o populismo foram feitas por pequenos círculos de intelectuais que interpretavam a política brasileira por meio da díade líderes carismáticos/massa. O populismo se apresentava dentro da democracia como um fenômeno que queria avançar nas eleições. Alguns teóricos o definiam como a “doença da democracia”. Essa foi uma das primeiras ideias relacionadas ao conceito. Só depois o populismo se transformou em uma categoria explicativa de âmbito acadêmico.
Diferentemente da Europa, no Brasil a massa foi definida por esses primeiros grupos pensadores como trabalhadores sem consciência de classe. A lógica do populismo consistia no recrutamento de operários por cúpulas sindicais elitistas sem compromisso com as bases operárias. Algumas características prepararam o terreno para a instalação do populismo. São elas: o novo padrão de acumulação, a inconsistência das organizações sindicais, o personalismo político, a falta de tradições organizativas por parte dos camponeses que se tornaram operários, as esquerdas iludidas com o nacionalismo e a dependência dos trabalhadores em relação aos líderes populistas (Ferreira, 2001).
Gagliardi (2018) analisa a abordagem dada ao movimento que ficou conhecido como “virada à esquerda” (left turn), vivenciada por diversos países na América Latina a partir dos anos 2000. Popularizou-se na opinião pública a diferenciação entre a má e a boa esquerda, que seriam a esquerda responsável e a populista ou radical, respectivamente.
Pesquisa desenvolvida pelo Team Populism equipe de pesquisadores da Europa e das Américas dedicados a investigar as causas e consequências do populismo adota critérios relacionados ao populismo e dá nota para centenas de presidentes numa escala de 0 a 2 de acordo com a presença de determinados elementos. Para ser considerado populista, é preciso ter nota igual ou superior a 0,5. O estudo explica que carisma não é sinônimo de populismo, e que este seria muito melhor definido pela oposição que determinado político porventura venha a observar entre povo e elite. Por esse motivo, Lula recebeu 0,25 pontos, não sendo considerado populista na pesquisa, ficando atrás de Collor e Bolsonaro (ambos com 0,5).
Em matéria publicada no UOL, um dos pesquisadores do grupo afirma que regimes populistas tendem a ter consequências prejudiciais à democracia, uma vez que não lidam bem com divergências e pluralidade de opiniões, promovem restrições à liberdade de imprensa e à independência do Judiciário e do Legislativo e atuam para um fortalecimento indesejável do Executivo. Os resultados também mostram que Bolsonaro é o primeiro presidente populista desde Fernando Collor a ser eleito no Brasil. De acordo com o pesquisador, tanto no discurso populista de direita como no de esquerda, o inimigo são as elites (seja ela a imprensa, classe política, banqueiros, FMI etc.). Além disso, o populismo caracteriza-se como fenômeno cíclico, que aparece em diferentes épocas da história política, sempre trazendo à tona o “elemento redentor, de clamor pela soberania popular”.
A figura de Bolsonaro cresceu em um contexto de insatisfação política intensificado a partir de junho de 2013, com a emergência de uma nova direita no Brasil (Nobre, 2013), e com a mobilização de grupos que atuaram fortemente no impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016. Alguns desses grupos se reuniam em torno de princípios como o antipetismo, a família tradicional, o patriotismo, o neoliberalismo. Embora o ataque às elites esteja presente na fala de Bolsonaro, em comparação com líderes mundiais na pesquisa do Team Populism, ele fica atrás de Nicolás Maduro (1,6) e de Donald Trump (0,8).
3. Folha e Estadão: relevância nacional e diferentes modos de se posicionar
A Folha de São Paulo (FSP) e O Estado de São Paulo (OESP) são dois dos principais jornais do Brasil. Oriundos do meio impresso, mas com forte atuação no ambiente digital, disputam a liderança em circulação nacional paga no País. De acordo com dados de 2020 do Instituto de Verificação de Circulação (IVC), no que se refere à circulação total (impressa e digital), a FSP foi o jornal com o maior número de assinaturas (343,5 mil) em dezembro daquele ano, enquanto OESP fechou 2020 em terceiro, com média de 233,3 mil assinantes, atrás do jornal O Globo (341, mil).
Folha e Estadão enquadram-se no que Hallin e Mancini (2004) denominam quality papers, termo que os diferencia dos modelos tabloides e que remete a periódicos prestigiosos, que costumam promover a cobertura política e que se dirigem e fomentam o debate entre as elites intelectuais, políticas e econômicas.
Por meio de entrevistas com os editores de opinião dos dois jornais, Guerreiro (2017, p. 99) identifica algumas das características de suas linhas editoriais. Criada em 1921, a FSP é definida como “conservadora em termos econômicos, progressista em termos sociais”; enquanto OESP, fundado em 1985, teria em sua linha editorial a “liberdade como norte, o que abrange as liberdades individual, política e de empreender”.
No que se refere à cobertura de Bolsonaro e Lula, tanto a Folha quanto O Estado, em geral, têm adotado uma postura crítica e adversarial. Ao analisar a cobertura das campanhas presidenciais de 2002, 2006 e 2010 pela FSP, OESP e O Globo, por exemplo, Mundim (2018) observou tom mais negativo sobre os candidatos petistas (Lula, nos casos de 2002 e 2006, e Dilma, no caso de 2010) do que sobre os demais concorrentes, alertando para um viés anti-PT que variou de intensidade entre os três periódicos e nos diferentes anos eleitorais.
Já a relação dos periódicos com o governo Bolsonaro tem sido marcada por conflitos sobretudo a Folha, alvo de inúmeros ataques do presidente e tratada por ele como adversária -, embora os dois jornais comunguem com parte da agenda econômica liberal apregoada na gestão. Chama a atenção, no caso do OESP, o aparente esforço em tratar Lula e Bolsonaro como personagens políticos equivalentes, narrativa explicitada em editoriais como “Uma escolha muito difícil”, publicado em outubro de 2020, e “Cenário sombrio”, publicado em maio de 2021, ambos com grande repercussão e circulação nas redes sociais.
4. Análise empírica
O objetivo do presente artigo é analisar como a FSP e o OESP têm empregado o conceito de populismo para classificar os personagens políticos Lula e Bolsonaro, bem como seus governos e os movimentos políticos por eles representados (lulopetismo e bolsonarismo, respectivamente).
Para viabilizar a pesquisa, realizou-se uma Análise de Conteúdo em 41 editoriais nos quais FSP e OESP utilizam o termo “populismo” e suas variações (populismos, populista, populistas) para fazer referência aos dois personagens. Antes de detalhar a operacionalização da análise, é necessário explicitar, de forma breve, as escolhas que levaram à construção do objeto e este recorte específico do corpus empírico.
Em primeiro lugar, foi necessário selecionar os jornais que seriam alvo da análise. A opção por FSP e o OESP deu-se tanto em razão de sua relevância nacional e das características elencadas no tópico anterior, quanto por questões operacionais, já que estes disponibilizam seu conteúdo online, oferecem a opção de busca por palavras-chave e permitem a seleção de textos por editorias e intervalos de tempo determinados. Uma vez escolhidos os dois jornais, optamos por analisar seus editoriais, pois trata-se do gênero que expressa de forma mais clara a opinião corporativa e o posicionamento político da empresa jornalística (Marques & Mont’Alverne, 2015).
Na etapa seguinte, passamos à definição de qual seria o recorte temporal considerado na coleta dos editoriais. Decidimos enfocar somente o primeiro ano do primeiro mandato de cada um dos presidentes eleitos após a redemocratização no Brasil, na tentativa de estabelecer uma base comum de análise entre os textos, de forma que as opiniões dos editoriais poderiam ser conduzidas mais pelas preconcepções de cada jornal a respeito dos governantes e menos por eventos marcantes que poderiam levar os veículos a mudar de opinião ao longo da gestão (escândalos de corrupção, manifestações populares, a própria pandemia de Covid-19, etc.). Uma vez delimitado o objeto da análise, passamos a detalhar a coleta dos editoriais do corpus empírico. Nos sites da FSP e do OESP, realizamos uma busca pelas palavras-chave “populismo”, “populismos”, “populista” e “populistas” nos editoriais publicados no primeiro ano de mandato dos seguintes presidentes eleitos após a redemocratização: Jair Bolsonaro (2019), Dilma Rousseff (2011), Lula (2003) e Fernando Henrique Cardoso (1995).
Ao todo, foram identificados 148 editoriais, nos quais a palavra “populismo” e suas variações constavam 229 vezes (Figura 1). Desse total, 55 editoriais eram da Folha, com 65 ocorrências (média de 1,2 por texto), e 93 do Estadão, com 164 ocorrências (média de 1,8 por texto). Ou seja, já num primeiro olhar foi possível notar que o Estadão utiliza o conceito de populismo com uma frequência maior que a Folha (50% a mais de ocorrências). Além disso, é possível notar que o uso do termo pelos dois jornais (sobretudo pelo Estadão), tornou-se significativamente maior em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro.
Operacionalização da análise
A partir dos 148 editoriais inicialmente coletados, foi possível, através de uma análise exploratória (Bardin, 1977) realizada simultaneamente por duas pesquisadoras da equipe, identificar os textos que faziam referência específica aos presidentes Bolsonaro e Lula, às suas respectivas gestões e aos movimentos políticos por eles representados. Assim, a fim de construir um corpus compatível com a pergunta de pesquisa, optou-se por eliminar da amostra os textos que associavam o termo populismo a outros sujeitos ou os que não faziam referência a nenhum tipo de personagem, sendo empregado de forma genérica, imprecisa.
Com essa delimitação, chegou-se à quantidade final de 41 editoriais e 54 ocorrências da palavra populismo e suas variações associadas a Lula e Bolsonaro. É importante explicitar que esses foram os dois presidentes brasileiros mais associados ao populismo na visão de ambos os jornais (Figura 2).
A opção por analisar apenas os editoriais relacionados a Bolsonaro e Lula justifica-se por serem os dois políticos com maior número de menções individuais relacionadas ao populismo, tanto na FSP quanto no OESP, sem falar das constantes alusões a ambos de forma comparativa. Além disso, é preciso considerar alguns elementos da conjuntura política brasileira: Bolsonaro e Lula são os personagens mais representativos do antagonismo direita versus esquerda que, nos últimos anos, tem marcado a política nacional. Em 2021, após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de anular os processos que tornavam Lula inelegível, o petista passou a ser considerado potencial concorrente de Bolsonaro na disputa presidencial de 2022, o que ampliou a rivalidade entre os dois. Tais aspectos estimulam pesquisas comparativas sobre o modo como a imprensa nacional os aborda, fator que acabou motivando a construção do objeto deste estudo.
Para responder à pergunta de pesquisa, lançamos mão das ferramentas metodológicas da Análise de Conteúdo (AC), com o intuito de investigar as 54 ocorrências do termo populismo (e variações), nos 41 editoriais coletados. A AC se interessa pela materialidade linguística e das condições empíricas do texto (Caregnato & Mutti, 2006), e torna possível a análise do corpus a partir da elaboração de categorias temáticas e/ou frequenciais (Bardin, 1977). A confiabilidade da análise é um dos aspectos que devem ser considerados na AC, a fim de dar transparência à definição das categorias e à classificação do corpus, do mesmo modo que deve ser observado o princípio da replicabilidade, oferecendo-se insumos para que a análise possa ser realizada e testada por outros pesquisadores. Nesse sentido, Sampaio e Lycarião (2018) trazem importantes contribuições a este artigo, atentando para a importância da elaboração e disponibilização de um livro de códigos que forneça detalhes e exemplos de como a codificação dos textos deve ser feita.
O livro de códigos estabelecido pelas duas codificadoras da equipe, e disponível para consulta dos leitores do presente artigo, categoriza o uso do termo populismo com base em três eixos de análise: QUEM, O QUÊ e COMO, brevemente descritas a seguir:
1) QUEM: o objetivo é identificar a que sujeitos o termo está relacionado. Para isso, as codificadoras preencheram duas colunas: QUEM 1, referente ao tipo (categoria) de sujeito; e QUEM 2: detalhamento desse sujeito com os termos utilizados no texto analisado. As categorias elaboradas para a coluna QUEM 1 foram as seguintes:
Pessoa: quando o termo é associado de forma nominal a Lula e Bolsonaro; quando é associado a seus governos/gestões, mas com menção nominal/ pessoal a um dos dois. Exemplo: Lula; Bolsonaro; governo Bolsonaro; governo Lula.
Governo: quando o termo é associado aos governos, sem menção nominal/pessoal a Lula ou Bolsonaro; quando é associado a ministérios e outros órgãos de governo, bem como aos responsáveis pelas pastas; quando é associado a uma “Era” (gestão) situada no tempo, em referência clara aos mandatos de Lula ou Bolsonaro. Exemplo: gestão petista; Era lulopetista; ministérios da educação etc.
Movimento/tendência política: quando o termo se refere a um movimento, onda, tendência política, que extrapola um mandato específico e se situa de maneira mais difusa no tempo. Exemplo: bolsonarismo, lulopetismo.
2) O QUÊ: o objetivo é identificar quais características e predicados são atribuídos ao termo populismo. As codificadoras preencheram duas colunas: O QUÊ 1: tipo/ categoria de conceito prevalecente; e O QUÊ 2: detalhamento das características, utilizando as palavras empregadas no editorial. As categorias definidas para a coluna O QUÊ 1 foram as seguintes:
Estilo pessoal/político: quando o termo se refere a estilo particular, personalidade, comportamento, tipo de discurso, modo de agir, ou também ao conjunto de visões e princípios políticos.
Política determinada: quando o termo se refere a uma medida, iniciativa, decisão clara. Tem mais a ver com ações bem definidas do que com um perfil, uma visão de mundo ou uma forma geral de agir.
Adjetivação imprecisa: quando o termo “populista(s)” (adjetivo) é empregado para classificar algo sem que se ofereça indícios que ajudem a interpretar seu significado.
Fenômeno impreciso: quando o termo “populismo(s)” (substantivo) é empregado de modo genérico, abstrato, sem se ofereça indícios que ajudem a interpretar seu significado.
3) COMO: o objetivo é identificar o juízo de valor atribuído ao termo populismo e suas variações. A coluna foi preenchida pelas codificadoras com as categorias: Positivo, Negativo e Neutro. Enquanto as duas primeiras foram preenchidas apenas quando o contexto deixava evidente um juízo de valor sobre o termo (no caso, positivo ou negativo, respectivamente), a categoria Neutro foi atribuída quando não havia clareza sobre a valoração do termo.
Recomendações de Sampaio e Lycarião (2018, p. 36) no que tange à confiabilidade da AC foram acatadas na categorização. Durante a análise exploratória dos 148 editoriais inicialmente coletados, a dupla de codificadoras iniciou, de forma conjunta, a partir de uma amostra dos textos, a construção das categorias a serem analisadas. Em seguida, foram realizados, também de forma conjunta, testes de validação nos quais as pesquisadoras buscaram aplicar as categorias em outras amostras do texto. A partir das comparações entre convergências e divergências dos resultados de cada analista, o livro de códigos foi sendo construído e revisado, de modo a aperfeiçoar as categorias e elucidar casos ambíguos. As divergências foram resolvidas de modo consensual. Após a categorização parcial dos 148 editoriais, optou-se pelo recorte dos 41 editoriais. Estes foram novamente categorizados pelas duas codificadoras, até a versão final das tabelas da análise.
4.2 Populismo na Folha e no Estadão: referências a Lula e/ou Bolsonaro
A fim de compreender o que os jornais Folha (Tabela 1) e Estadão (Tabela 2) dizem sobre Lula e Bolsonaro nas 54 ocasiões em que utilizam o conceito de populismo em alusão a eles, faremos uma breve descrição dos resultados nos seguintes tópicos: 1) análise das 18 referências específicas a Lula (aqui somamos também as referências às gestões petistas, por entendermos que Lula, além de estar incluído entre os governantes do PT, é ele mesmo o principal nome deste movimento político nos editoriais aqui analisados); 2) análise das 29 referências específicas a Bolsonaro; 3) análise das 7 referências que comparam Lula e Bolsonaro.
4.2.1Referências a Lula
No período analisado, a Folha faz referência específica a Lula como populista em apenas dois editoriais, ambos em 2003, primeiro ano de sua gestão como presidente, sendo estas menções nominais (categoria Pessoa) e com juízo de valor negativo. Já no Estadão, a vinculação entre Lula e o populismo está muito mais presente. São ao todo 16 referências específicas ao presidente, a maioria delas (14) em desaprovação ao governante (categoria Negativo); nas outras 2, não houve clareza sobre o juízo de valor (categoria Neutro). No Estadão, a distribuição das menções a Lula vai aumentando a cada ano investigado: são 3 em 2003, 5 em 2011 e 8 vezes em 2019, o que demonstra que, mesmo quando o governante da vez é Bolsonaro, OESP resgata o personagem Lula no debate sobre o populismo. Em 9 das 16 referências do Estadão, Lula é citado nominalmente (categoria Pessoa). Nas outras 7 ocasiões, o petista é citado de forma indireta, em alusões ao seu governo ou ao movimento político que recebeu seu nome o lulopetismo.
Em relação às definições do termo “populismo”, no caso da Folha, as 2 associações a Lula são feitas de modos diferentes: na primeira, o jornal faz referência a seu estilo pessoal/político; na segunda, o populismo de Lula está ligado a uma política determinada de governo. Quando Lula é taxado de populista pelo Estadão, as categorias de análise que se sobressaem são as de estilo pessoal/político, indicada em 7 das 16 ocorrências do OESP; e a de política determinada, com 6 ocorrências. Em outras 3 ocasiões, as referências a Lula são imprecisas.
Um ponto que merece ser destacado é que, na classificação de Lula feita pelo Estadão, a ênfase em determinadas categorias muda com o passar do tempo. Antes de 2019, as referências a Lula são mais nominais (a categoria Pessoa está presente em 7 das 8 menções do período) e relacionadas ao seu estilo pessoal/político (5 entre as 8 menções). A partir daquele ano, porém, ele aparece mais de forma indireta (categorias Governo e Movimento/tendência política) e com as ações de sua gestão sendo mais destacadas. Ou seja, a partir do governo Bolsonaro, o Estadão passa a enfatizar mais as políticas do governo Lula do que o político Lula em si.
Nas 2 únicas menções que fez a Lula, a Folha ofereceu poucos elementos para que se possa elaborar o conceito que tem do ex-presidente como populista, mencionando apenas o seu discurso a favor do “multilateralismo” (característica relacionada ao seu estilo pessoal/político) e sua gestão econômica que se beneficiou com a queda do dólar (uma das suas políticas de governo).
O Estadão, por sua vez, em vários momentos considerou Lula um populista quase como sinônimo de “popular”, enfatizando sua busca por um contato mais direto com a sociedade e pelo reconhecimento como líder de raízes populares, e as suas habilidades e discurso “demagógico”. Em contrapartida, quando chamou Lula de populista, também o acusou de autoritarismo, fosse por buscar se perpetuar no poder, por tentar dobrar o Congresso para aprovar reformas, por se aproximar de governos antidemocráticos ou por demonizar adversários.
Outro ponto bastante mencionado no OESP foi a gestão de Lula na área econômica, tendo sido consideradas populistas as políticas de transferência de renda, os “investimentos indiscriminados” no ensino superior, a gestão das empresas estatais com base mais em critérios políticos do que profissionais, a adoção de um suposto viés ideológico de esquerda no Mercosul, entre outras. Por fim, ao tratá-lo como populista, o jornal também o relaciona a governantes de outros países: Kirchner na Argentina, Maduro e Chávez na Venezuela e Rafael Correa no Equador.
4.2.2 Referências a Bolsonaro
Enquanto Folha e Estadão se distanciam na ênfase dada a Lula como populista, no caso de Bolsonaro há uma convergência bem maior entre os dois jornais. Primeiramente sobre o número de referências: a Folha chama Bolsonaro de populista 13 vezes, valor próximo às 16 menções do Estadão. Embora as menções a Bolsonaro só comecem a aparecer em 2019, o número chega a superar o de menções à Lula, mesmo com o petista tendo passado mais tempo no poder.
Os dois veículos também concordam sobre a avaliação negativa atribuída a Bolsonaro quando este é relacionado ao populismo (apenas em 1 citação da Folha não fica claro o juízo de valor). Por fim, em ambos os jornais há um destaque bem maior para as referências nominais ao presidente: a categoria Pessoa aparece 10 vezes na Folha e 9 no Estadão.
A discordância entre os jornais na classificação de Bolsonaro como populista vai aparecer quando estes elencam as características e predicados relacionados ao presidente. Enquanto a Folha enfatiza as políticas de governo (8 das 13 menções), o Estadão dá maior destaque à personalidade e estilo político de Bolsonaro (11 das 16 menções). As outras categorias aparecem em menor número na Folha (4 classificações como Estilo pessoal/político e 1 como Adjetivação imprecisa) e no Estadão (5 referências a políticas determinadas).
Entre as políticas de seu governo consideradas como populistas pela Folha, foram citados o patrulhamento de professores, a confusão deliberada entre o uso medicinal e recreativo da maconha e a intervenção no preço do diesel. Mas as medidas de governo mais enfatizadas no jornal foram aquelas relacionadas ao afrouxamento de regras do trânsito (ações como a ampliação do limite de pontos na carteira de habilitação, o fim da obrigatoriedade do exame toxicológico para motoristas profissionais, as investidas contra radares móveis, entre outras), tendo este aspecto sido mencionado em 6 das 13 menções a Bolsonaro.
Já quando a Folha se refere a Bolsonaro como populista, são acionadas características relacionadas à sua personalidade (traços intolerantes e obscurantistas, inclinações voluntaristas), à sua retórica (de confrontação, discurso antipetista), às suas ideias (conservadorismo, nacionalismo, radicalismo) e à sua forma de governar (inadequação ao cargo, ineficiência administrativa). A Folha o considera como o retrato de uma era populista, incluindo-o entre outros líderes mundiais de direita, como Donald Trump, Boris Johnson, Viktor Órban e Rodrigo Duterte.
Assim como faz com Lula, o Estadão também invoca a popularidade e a demagogia para classificar Bolsonaro como populista. Para isto, se apoia em atitudes do presidente como: discurso de ser o verdadeiro representante do povo, apelo à relação direta com seus eleitores, atendimento às demandas das redes sociais e das ruas, imposição de sua agenda com base no apoio popular, tomada de decisões não por razões de estado, mas pela perspectiva do aplauso fácil etc. Ao mesmo tempo, OESP ressalta que o presidente tem um discurso irresponsável, típico de candidato, isento de proposições claras, incapaz de assegurar bons resultados.
Para elaborar o perfil de Bolsonaro como populista, o OESP também faz referência à sua retórica de confrontação, seja contra o sistema, o globalismo, o comunismo, os adversários, as instituições etc. Segundo o jornal, o presidente pretende resumir o seu governo a uma luta do bem contra o mal. As políticas adotadas em sua gestão recebem um destaque bem menor no jornal, tendo sido citadas apenas as suas tentativas de mudar as regras de trânsito, o tabelamento de juros do cheque especial e o seu projeto para incluir no excludente de ilicitude o uso de legítima defesa na proteção de propriedade rural. Por fim, o Estadão também compara Bolsonaro a dois outros governantes mundiais considerados populistas: Donald Trump, por sua demagogia e messianismo; e Hugo Chávez, pela falta de compromisso com as liberdades democráticas.
4.2.3 Comparações entre Lula e Bolsonaro
Ao longo do período analisado, a FSP utiliza o termo populismo para fazer referência simultânea a Lula e Bolsonaro em 3 ocasiões, sendo que em 2 delas os personagens são citados nominalmente (categoria Pessoa); na outra, apenas Bolsonaro é chamado pelo nome, enquanto Lula aparece como “governante petista” (categoria Governo). Em 2 dessas 3 menções da FSP, o termo populista é utilizado de forma pejorativa (juízo de valor negativo), e em uma de forma neutra.
O Estadão, por sua vez, relaciona o populismo a Lula e Bolsonaro simultaneamente em 4 ocasiões, sendo que em 2 a referência é feita aos movimentos/tendências políticas que eles representam: lulopetismo e bolsonarismo. Tanto na FSP quanto no OESP, as menções simultâneas a Bolsonaro e Lula ocorreram em 2019, durante o governo do líder de direita.
No que tange às categorias que nos ajudam a compreender o conceito de populismo, observa-se que, majoritariamente, quando optam por comparar Lula e Bolsonaro, a Folha e o Estadão miram em seus estilos pessoais/políticos. Na soma das 7 ocasiões (3 da FSP e 4 do OESP) em que o populismo é atribuído aos dois líderes, apenas uma se enquadra em outra categoria definidora (política determinada).
Ao associar o estilo pessoal/político de Lula e Bolsonaro ao populismo, a Folha aponta que ambos adotam um discurso de “satanização” de seus oponentes como modo de “inflamar” seus militantes, que aderem a comportamentos agressivos e autoritários contra a imprensa e que, em suas estratégias políticas, vivem de “vilões a combater”.
Já OESP relaciona o estilo populista de Lula e Bolsonaro às seguintes características e discursos: linguajar e comportamento que aviltam a política; estilo que representa o atraso e que põe em risco a democracia; discurso que suscita descrença no sistema político e valoriza a “delinquência” como meio de conquista e manutenção do poder; e adoção do discurso da “herança maldita” em relação a governos anteriores, colocando-se como únicos representantes legítimos do povo. Em apenas uma ocorrência, OESP relaciona o populismo de Lula e Bolsonaro a uma política determinada: a manutenção e ampliação do programa Bolsa Família com caráter eleitoreiro.
5. Discussão dos resultados
Um primeiro aspecto a ser destacado na análise dos dados são as semelhanças entre o juízo de valor atribuído ao populismo tanto pela FSP quanto pelo OESP. O termo é utilizado de modo majoritariamente pejorativo entre os dois jornais: das 54 ocorrências, em nenhuma vez o populismo é abordado de maneira positiva e em apenas 4 é empregado de forma neutra. O predomínio da classificação negativa é uma situação que contrasta com a literatura acadêmica acerca do tema, que, no geral, trata o populismo sem estabelecer necessariamente juízo de valor.
Entre as semelhanças, chama a atenção, ainda, a personalização da política a partir da prevalência da categoria “Pessoa” na classificação dos sujeitos associados ao populismo. Em 35 das 54 ocorrências, Lula e Bolsonaro, pessoalmente, e não seus governos ou partidos, é que são, na visão dos dois jornais, vinculados às características populistas.
Sendo o populismo tratado como fenômeno negativo e politicamente personalizado, é interessante que Lula e Bolsonaro sejam as lideranças políticas brasileiras mais associadas ao termo pelos dois jornais. Isso suscita a reflexão, de um lado, sobre as relações de disputa que têm marcado as interações de Bolsonaro com parte da imprensa mainstream e, de outro, sobre o dito viés antipetista de FSP e OESP, conforme mencionado na seção 3 do artigo. Desse modo, o debate sobre populismo parece configurar-se como arena de disputas simbólicas entre a imprensa e as duas lideranças, como uma categoria discursiva útil à crítica dos jornais sobre os agentes políticos.
Na comparação entre os jornais, foi O Estado que recorreu com mais frequência ao populismo para lançar críticas contra Lula e Bolsonaro: foram 36 ocorrências do termo por OESP (distribuídos de forma equilibrada entre os dois líderes) frente a 18 da FSP (distribuídos, principalmente, a Bolsonaro). Em ambos os jornais, o termo passou a ser empregado com mais ênfase no ano de 2019, o que demonstra como o debate sobre o populismo ganhou força a partir da eleição de Bolsonaro, acompanhando uma conjuntura internacional de ascensão de líderes populistas de direita em várias partes do mundo.
Isso não significa, porém, que Lula escapou à comparação com seu adversário no que tange ao populismo. Em 2019, mesmo com Lula fora do governo, OESP citou o petista em 12 das 26 ocorrências selecionadas no corpus empírico. Na Folha, o “esforço” em resgatar a figura de Lula foi bem menor: o petista foi citado em 3 das 15 ocorrências do termo, em 2019.
É válido perceber que a retórica da confrontação é um ponto comum observado pela FSP e OESP dentre as características populistas de Lula e Bolsonaro. Este tipo de conceito do populismo se aproxima do que dizem Laclau, Torcuato Di Tella, Moffitt e Tormey sobre a criação de um grupo que “luta” contra o “status quo” vigente. Frequentemente, os dois jornais relatam o conflito como suposta estratégia política. Ao direcionarmos a discussão para os conceitos de populismo empregados, há semelhanças e diferenças na comparação entre os jornais. Ao tratarem especificamente de Lula, Folha e Estadão convergem no equilíbrio entre as categorias estilo pessoal/político e política determinada. Em relação a esta última, prevalece a crítica a políticas econômicas do petista, tais como: transferência de renda como principal estratégia de desenvolvimento social (OESP), gestão motivada por fins políticos do BNDES e da Petrobras (OESP), isolacionismo do Mercosul (OESP), políticas negligentes quanto à apreciação do real (FSP).
Já os conceitos de populismo relacionados a Bolsonaro são mais amplos: Folha e Estadão convergem tanto ao abordar sua ineficiência como governante quanto ao ampliar o rol de políticas públicas caracterizadas pelo populismo. Além da economia (intervencionismo em preços de produtos, por exemplo), são vistas como populistas algumas medidas permissivas de trânsito, iniciativas na área de segurança pública (elevação de penas como medida de combate a crimes) e de educação (patrulhamento de professores). Até mesmo o discurso de Bolsonaro confundindo o uso medicinal e recreativo da maconha é apontado como populista.
É interessante notar que, na Folha, há muito mais menções a Bolsonaro (13) do que a Lula (2) individualmente; o Estadão, por sua vez, os menciona individualmente de maneira equilibrada (16 ocorrências para cada um), outro indício de que OESP busca investir na comparação e na criação de equivalência entre os dois adversários.
Também é importante ressaltar um aspecto do conceito de populismo que pode ser visto no Estadão e que não foi verificado na Folha: a associação direta do populismo com aspectos populares e demagógicos do líder político em análise. Em pelo menos 13 das 38 ocorrências do termo populismo, OESP critica aspectos como o discurso demagógico, o messianismo, a tomada de decisões na perspectiva do aplauso fácil, o apelo à relação direta entre eleitor e seus representantes, a importância dada ao “barulho” das redes sociais digitais, principalmente quando se refere a Bolsonaro. Este conceito de “populista” como sinônimo de “popular” e “demagogo” é bem mais próximo de uma noção do senso comum. Na Folha, essa abordagem não é observada.
6. Considerações finais
A constatação da diferença entre o uso do termo “populismo” pela grande imprensa nacional e pelo campo acadêmico-científico pode ser considerada como um importante resultado deste artigo. A análise dos editoriais revelou que há uma diferença substancial entre como a academia (inclusive em sua diversidade) conceitua o termo e como a imprensa o tem empregado para fazer sua análise e intervenção políticas cotidianas. Diferente da visão acadêmica mais neutra sobre o conceito, a imprensa julga o populismo como sempre negativo e o aplica a personagens que a academia não classifica como populistas. Assim, a imprensa se apropria de um conceito que tem ampla discussão acadêmica e certa diversidade de aplicação e o utiliza de maneira errática e instrumentalizada para fazer uma falsa equivalência entre dois presidentes brasileiros. A única convergência entre os campos científico e jornalístico parece ser na atribuição da polarização “nós versus eles” ao discurso populista. O sistema midiático brasileiro é caracterizado por um baixo pluralismo externo, com os quality papers situados dentro de espectros político-ideológicos próximos, em geral posicionados a partir de uma perspectiva de direita ou centro-direita. Porém, conforme demonstra o presente artigo, há uma diferença clara entre os dois periódicos analisados, com uma tendência mais liberal e de centro-direita no caso da Folha, e uma perspectiva mais conservadora e de direita no Estadão. Embora, em ambos os jornais, Lula e Bolsonaro sejam considerados populistas, há importantes diferenças na maneira como o populismo é referenciado nos dois periódicos com ênfases e modos distintos de endereçamento. Mesmo que limitada, essa nuance existe, e revela que a imprensa brasileira não é um bloco homogêneo na sua intervenção política. Esta diversidade, porém, ainda parece estar aquém do que se esperaria de um sistema democrático, onde a mídia deveria ser, de fato, pluralista. A discussão sobre o papel político da imprensa ao acionar o conceito de populismo merece ser aprofundada e rende uma análise à parte.