INTRODUÇÃO
As doenças cardiovasculares (DCV) são a principal causa de morte na Europa, sendo responsáveis por mais de 4 milhões de mortes por ano, especialmente devido à ocorrência de enfarte agudo do miocárdio (EAM) e de acidente vascular cerebral (AVC) (1). Além disso, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2016, as DCV constituíram a principal causa de morte a nível mundial, sendo responsáveis por cerca de 18 milhões de mortes (2).
A dieta e o estilo de vida desempenham um papel importante e indiscutível no desenvolvimento das DCV (3). Os ovos são um alimento altamente nutritivo, fornecendo proteínas de qualidade, assim como micronutrientes, antioxidantes e antimicrobianos (4), pelo que podem ter potenciais benefícios para a saúde geral (5). Apesar dos ovos serem ricos em nutrientes, compostos bioativos e proteínas, são a principal fonte de colesterol na dieta, contendo aproximadamente cerca de 190 mg de colesterol por cada ovo (3).
A associação entre o consumo regular de ovos e o risco de doenças vasculares (cardio e/ou cerebrovasculares) é incerta e tem sido alvo de estudo (6). Esta discussão surge devido ao facto do ovo conter um elevado teor de colesterol (7) e da dislipidemia ser um fator de risco major para as DCV (8).
Após revisão da literatura atual, verifica-se que alguns estudos relatam não haver uma associação entre o consumo de ovos e risco de doença cardiovascular (9 - 11), alguns relataram um risco maior (12, 13), e outros relataram uma associação inversa com eventos cardiovasculares (14, 15). Além disso, alguns estudos mostraram associações e resultados discrepantes relativamente à ocorrência de AVC, de DC e de IC: sem associação com risco de AVC (16), diminuição do risco de AVC e nenhuma associação com a DC (17, 18), diminuição do risco de DC (19), sem associação com risco de DCV (20) e aumento risco de IC (21, 22).
OBJETIVOS
Esta Revisão Baseada na Evidência (RBE) tem como objetivo clarificar o efeito do consumo de ovos nas doenças vasculares em adultos sem história de eventos cardio e/ou cerebrovasculares prévios
METODOLOGIA
Em setembro de 2021, realizou-se uma pesquisa bibliográfica de Normas de Orientação Clínica (NOC), Metanálises (MA), Revisões Sistemáticas (RS) e Ensaios Clínicos Aleatorizados e Controlados (ECAC), nas bases de dados MEDLINE/Pubmed, The Cochrane Library, DARE, National Guideline Clearinghouse, Bandolier, Canadian Medical Association Practice Guidelines Infobase e Evidence Based Medicine Online, aplicando os termos MeSH “Eggs" e "Cardiovascular Diseases". Foram incluídos estudos publicados nos últimos 5 anos entre 1 de janeiro de 2017 e 30 de setembro de 2021, escritos na língua inglesa, segundo os critérios definidos pelo modelo PICO: P Adultos com idade superior a 18 sem história de DCV estabelecida - Enfarte Agudo do Miocárdio (EAM), Acidente Vascular Cerebral (AVC), Doença Coronária (DC) e Insuficiência Cardíaca (IC); (I) Consumo de ovos; (C) Ausência/menor consumo de ovos; (O) Eventos cardiovasculares: EAM, AVC, DC e IC. Para avaliação dos níveis de evidência (NE) e atribuição de forças de recomendação (FR) foi utilizada escala Strength of Recommendation Taxonomy (SORT) da American Family Physician
RESULTADOS
Foram encontrados sessenta e três artigos, tendo sido excluídos quarenta e cinco artigos pelo título. Após leitura dos resumos e aplicação simultânea dos critérios de inclusão e exclusão (Tabela 1) foram selecionados três artigos: uma meta-análise (MA) e duas revisões sistemáticas com meta-análise (RS/MA). Estes três artigos foram publicados em 2020 e classificados pelas autoras com um nível de evidência 2. A meta-análise (23) incluiu 38 artigos (16 da América do Norte, 9 da Europa, 9 da Ásia, 1 do Irão e 3 estudos coortes multinacionais) com um total de quase 2 milhões de indivíduos e com um follow-up de 3 a 32 anos. Todos estes estudos pontuaram risco moderado ou alto de viés. Utilizaram como critérios de inclusão: 1) Indivíduos de uma população de adultos > 18 anos (nenhum utente recrutado em hospitais); 2) estudos prospetivos; 3) que avaliassem as associações entre a ingestão de ovos e o risco de DCV (fatal e não fatal), desfechos cardiovasculares (como doença cardíaca coronária e AVC, fatal e não fatal), e insuficiência cardíaca; 4) com quantidade definida de consumo de ovos (ou seja, porções de ovos por dia ou semana). Foi assumido o consumo "habitual" (diário) de ovo como um ovo por dia, e "moderado" (semanal) a quatro ovos por semana. Os resultados avaliados incluíram incidência e mortalidade de DCV total, DC e AVC (incluindo subtipos hemorrágicos e AVC isquémico), tendo também sido avaliado o risco de incidência de IC. Esta meta-análise (23) demonstrou que a ingestão de até seis ovos por semana está inversamente associada a eventos cardiovasculares e que o consumo de até um ovo por dia foi associado a uma diminuição.
AVC: Acidente Vascular Cerebral
CV: Cardiovasculares
DC: Doença Coronária
EAM: Enfarte Agudo do Miocárdio
IC: Insuficiência Cardíaca
RBE: Revisão baseada na Evidência
da incidência de doença cardiovascular, quando comparados com nenhum consumo. De forma particular, o consumo de até dois ovos por semana foi associado a uma redução do risco de incidência de mortalidade relacionada com doença coronária, apesar de quatro estudos demonstrarem que a ingestão de um ovo por dia foi associada a um aumento do risco de IC em comparação com nenhum consumo. Além disso, nenhuma associação foi estabelecida com o risco de AVC. Segundo os critérios GRADE, esta meta-análise foi classificada pelos autores com força de evidência “baixa” para todos os desfechos, exceto para o AVC, para o qual foi “moderada”. Assim, com esta meta-análise (23) é possível concluir que as evidências atuais não são suficientes para considerar o consumo de ovos prejudicial à saúde nem para generalizar potenciais efeitos prejudiciais para toda a população, pelo que defende não haver necessidade de desencorajar o consumo de ovos nesta população. Apesar destas conclusões, os autores defendem que as descobertas relatadas neste estudo devem ser consideradas à luz de algumas limitações. Em primeiro lugar, algumas análises mostraram heterogeneidade substancial. Para além disso, variáveis relacionadas com a alteração na ingestão alimentar, devido a, por exemplo, condição médica ou doença diagnosticada não foram investigadas. Finalmente, o sistema GRADE pode não ser o melhor para avaliar evidências em epidemiologia nutricional, pois, por definição, tende a subestimar a força da evidência devido à natureza observacional dos estudos. Uma das Revisões Sistemáticas com meta-análise (24) incluiu 530 artigos, de 23 estudos prospetivos com seguimento médio de 12,28 anos, com um total de 1.415.839 indivíduos, 123.660 casos e 157.324 eventos de doença cardiovascular. A população do estudo incluiu 565.385 indivíduos da China, 495.972 dos Estados Unidos, 10.802 da Nova Zelândia, 166.790 do Japão, 6.636 da Finlândia, 488 da Austrália, 14.185 de Espanha, 702 da Lituânia, 65.364 de França, 26.930 da Suécia, 9.248 da Coreia do Sul, 1.781 do Reino Unido, 7.216 dos Países do Mediterrâneo, 14.337 do Médio Oriente, 6.282 de África e 23.721 da América do Sul. Para a realização desta RS/MA (24) foi realizada uma pesquisa bibliográfica nas bases de dados MEDLINE/Pubmed, The Cochrane Library, Embase, Scopus e Web of Science desde o início de janeiro de 2020. O idioma ou data da publicação dos artigos não foram limitados. Foram aplicados os termos MeSH, Embase, bem como palavras- -chave incluindo ovo, consumo de ovo, doença cardiovascular, eventos cardiovasculares, doença coronária, enfarte agudo do
miocárdio, síndrome coronária aguda, acidente vascular cerebral ou insuficiência cardíaca. Tratou-se de um estudo transversal prospetivo, tendo como a exposição de interesse o consumo de ovos e como outcome eventos de DCV, DC, EAM, SCA, AVC ou IC. Os autores não encontraram uma associação significativa entre o consumo de ovos e o aumento do risco de eventos de doenças cardiovasculares globais (HR, 0,99; IC 95%, 0,93-1,06; I² = 72,1%). Comparando o consumo de nenhum ou de 1 ou mais ovos por dia, um maior consumo de ovos (mais de 1 ovo/dia) foi associado a um risco significativamente diminuído de doença coronária (HR, 0,89; IC 95%, 0,86-0,93; I²= 0%). Além disso, o maior consumo de ovos (mais de 1 ovo/dia) não foi associado ao risco de acidente vascular cerebral (HR, 0,92; IC 95%, 0,84-1,02; I² = 60,1%). Assim, esta RS/MA (24) demonstrou que um maior consumo de ovos, nomeadamente, mais de um ovo por dia, não foi associado ao aumento do risco de DCV nem de AVC, mas sim, à redução do risco de doença coronária. Ainda assim, os autores descrevem algumas limitações neste estudo, nomeadamente os participantes poderem ter mudado o seu padrão alimentar durante o longo período de acompanhamento; o poder estatístico foi limitado em análises de subgrupo de subtipos de AVC (isquémico vs. hemorrágico) ou IC (IC com fração de ejeção preservada vs. insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida); a colheita de dados em questionários de frequência alimentar levam inevitavelmente a alguns erros de avaliação; e finalmente, os achados do estudo são observacionais e não podem estabelecer causalidade. Na última RS/MA (25) incluída nesta RBE, foi avaliada a associação entre consumo de ovos e risco de DCV na população geral, através da pesquisa bibliográfica de artigos nas bases de dados PubMed, Embase e Web of Science até 6 de agosto de 2019. Os estudos eram incluídos se fossem estudos 1) prospetivos; 2) que avaliassem a associação entre consumo de ovos e a incidência de doença cardiovascular (doença cardiovascular total; doença coronária fatal, não fatal e total; doença cerebrovascular fatal, não fatal, total, isquémica e hemorrágica); 3) que fornecessem estimativas de risco para três ou mais níveis de consumo de ovos ou uma estimativa de dose-resposta. Nesta RS/MA (25), da pesquisa inicial de 763 artigos, foram apenas incluídos 27 estudos, de acordo com os critérios de inclusão anteriormente referidos (28 com o próprio estudo), sendo que 12 dos 28 estudos foram considerados de baixo risco de viés. Idade, sexo, índice de massa corporal, tabagismo, nível de atividade física, ingestão de álcool e consumo calórico foram considerados os principais fatores de confundibilidade da associação entre consumo de ovos e risco de doenças cardiovasculares. Hipertensão arterial, dislipidemia e consumo de carnes vermelhas foram considerados fatores de confundibilidade secundários. Ainda de referir que a meta-análise para a associação entre consumo de ovos e o risco de doença cardiovascular para cada aumento de um ovo por dia englobou 33 estimativas de risco, 1.720.108 participantes e 139.195 eventos. As pessoas com um maior consumo de ovos não apresentaram um maior risco de doença cardiovascular em comparação com pessoas com baixa ingestão de ovos, sendo que os artigos que abordam a associação entre o consumo de ovos e o risco de doença coronária e a associação entre o consumo de ovos e o acidente vascular cerebral também fornecem resultados semelhantes. Assim, esta RS/MA (25) mostrou também que o consumo moderado de ovos (até 1 ovo por dia) não está associado a um aumento do risco de doença cardiovascular.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
O presente estudo inclui um grande número de estudos coortes, um total de número de participantes elevado e várias análises dose-resposta, fornecendo uma visão geral e aprofundada sobre a associação entre o consumo de ovos e risco de DCV.
De acordo com os dados mais recentes do período 2016-2020 da Balança Alimentar Portuguesa (BAP) publicados em 2021 pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), a disponibilidade de ovos aumentou 16,1% (26). Apesar disto não significar diretamente o consumo alimentar de ovos, assume-se que houve um aumento provável do seu consumo durante este período.
De acordo com a nova Roda dos Alimentos, os ovos estão integrados no grupo alimentar da carne, peixe e ovos, sendo recomendável consumir entre 1,5 a 4,5 porções diárias. Dentro deste grupo, recomenda-se privilegiar o consumo de peixe, carnes brancas e ovos em detrimento das carnes vermelhas e das carnes processadas. Recomendam ainda que 2 ou mais porções por semana devem ser de peixe gordo (27). Visto que 1 porção do grupo de carne, peixe e ovos corresponde a 1 ovo de tamanho médio (55 g), em teoria poderia assumir-se um consumo de até 4 ovos por dia. No entanto, para assegurar uma alimentação variada e equilibrada, é fundamental distribuir o consumo pelos restantes grupos alimentares (peixes brancos, peixes gordos e carnes brancas) (28).
Por outro lado, a dieta mediterrânica que consiste sobretudo no consumo de hortofrutícolas, cereais, frutos oleaginosos e leguminosas é, neste sentido, mais específica, recomendando o consumo de dois a quatro ovos por semana, incluindo os ovos utilizados em preparações culinárias (29).
Relativamente às recomendações Americanas, o consumo de ovos semanal recomendado está definido até aos 2 anos de idade, passando a estar incluído na categoria proteica de carne, peixe e ovos tal como na nova Roda dos Alimentos, sem definir o seu consumo individualizado (30). O mesmo acontece igualmente em vários países Europeus, sendo que, nos que definem as porções de ovos a consumir, o n.º de ovos recomendado máximo estará nos 7 ovos por semana em países como a Bélgica (parte do Flandres), Irlanda e Bulgária, com a maioria dos restantes países Europeus incluindo na dieta entre 2-5 ovos por semana (31).
Nesta RBE, os três artigos selecionados sugerem, de forma geral, que o consumo de ovos não está associado a um maior risco de DCV, podendo até ter um efeito protetor em relação à DC para a ingestão de mais de um ovo por dia.
Da mesma forma, meta-análises anteriores não mostraram uma associação do consumo de ovos e eventos e/ou doenças cardiovasculares, nomeadamente numa meta-análise constituída por 8 estudos observacionais (21); numa outra realizada tendo em conta 7 estudos prospetivos e onde até compararam alto e baixo consumo de ovos (17); noutra meta-análise que concluiu inclusivamente que o “consumo ideal” de ovos pode diminuir o risco de DC (32); e noutra que, apesar de abordarem o colesterol total, também inclui o consumo de ovos (6). Além disso, em 2020, foi inclusivamente realizado um estudo prospetivo com cerca de 177.000 pessoas em 50 países que mostrou que o consumo de ovos não está associado a um maior risco de DCV (33), o que vai também de acordo com outros estudos até então publicados (10, 34 - 38). Também na Europa, num estudo que contou com cerca de 400.000 pessoas de 10 países europeus, o consumo de ovo foi associado a um risco menor de DC (39). Os motivos pelos quais os ovos podem reduzir o risco de DC ou de até aumentar o risco de IC ainda não são totalmente conhecidos. Contudo, supõe-se que os ovos possam reduzir a risco de DC devido à presença do carotenóide (40, 41), duma função melhorada do colesterol HDL (42, 43), e/ou da presença de compostos bioativos (44).
Relativamente à discrepância de resultados obtidos em estudos anteriores, esta pode ser devida a amostras populacionais reduzidas, à falta de consideração relativamente ao padrão alimentar individual, à forma de como os ovos são cozinhados e até às diferenças étnicas. Uma meta-análise mais recente concluiu que o consumo de até um ovo por dia provavelmente está associado a um risco de DV ligeiramente menor entre os asiáticos (25).
Assim, estudos futuros devem aprimorar a caracterização da população investigada, visando identificar e remover o viés genético, um “estilo de vida saudável” bem como a forma de como os ovos são cozinhados e consumidos.
CONCLUSÕES
Apesar da interpretação destes resultados não ser fácil nem linear, é possível assumir que o consumo de até quatro ovos por semana poderá diminuir o risco de DCV, mas aumentar a ingestão de um ou mais ovos por dia pode não ser o mais benéfico. No entanto, como já foi referido, não é possível descartar a influência do padrão da dieta e do método de confeção dos ovos.
Assim, as evidências atuais não são suficientes para considerar o consumo de ovos prejudicial à saúde nem para generalizar potenciais efeitos prejudiciais em indivíduos sem eventos CV prévios, até porque a maioria dos estudos refere que o consumo de ovos não está associado a um maior risco de doença cardio e cerebrovascular.
Portanto, enquanto se aguarda por metodologias mais aprimoradas e por estudos mais completos, superando as já mencionadas limitações, não há necessidade de desencorajar o consumo de ovos ao nível desta população, como tem sido realizado até então.
CONTRIBUIÇÃO DE CADA AUTOR PARA O ARTIGO
MBA: Conceptualização; MBA, MOS, MSS e VL: Metodologia; MBA, MOS, MSS e VL: Validação; MBA: Análise formal; MBA, MOS e MSS: Investigação; MBA: Gestão de dados; MBA, MOS e MSS: Redação do manuscrito original; MBA, MOS e MSS: Redação do texto final; MBA, MOS, MSS e VL: Revisão e validação do texto final; MBA: Supervisão e administração do projeto.