INTRODUÇÃO
A insegurança alimentar (IA) afeta atualmente cerca de 2,4 biliões de pessoas a nível mundial e é caracterizada por qualquer falta de garantia do acesso regular a alimentos seguros e de valor nutricional adequado suficientes para uma vida ativa e saudável (1, 2). Em Portugal, em 2020, em contexto de contenção social, 32,7% de uma amostra reportou preocupação quanto ao acesso a alimentos motivada por dificuldades económicas (3), destacando-se o baixo rendimento, a idade mais jovem, o baixo nível de literacia, o ser solteiro e o elevado número de pessoas presentes no agregado familiar como fatores associados à IA (4). Esta situação pode ter consequências no estado estaturo- ponderal dos grupos populacionais afetados, refletidas de forma heterogénea na incidência de patologias e condições várias, entre as quais a obesidade e o baixo peso (1, 5). Famílias com estatuto socioeconómico mais baixo apresentam hábitos alimentares (HA) mais inadequados (6) e maiores Índices de Massa Corporal (IMC) (7).
Nos países desenvolvidos, são criados apoios alimentares de diversas tipologias, tais como doações, bancos alimentares, organizações solidárias e programas governamentais. A heterogeneidade dos apoios, seja pela oferta direta de géneros alimentícios ou pela presença de suporte económico, sobretudo na Europa, torna difícil a comparação do seu impacto (8). Nos Estados Unidos da América, a oferta de vales específicos para desconto em frutas e hortícolas a utilizar em mercados de produtores e/ou mercearias aumentaram o seu consumo (9 - 11). Em Portugal, parece que havendo possibilidade de escolha para o uso destes apoios, a despesa alimentar resultante do uso dos vales não está sempre associada a escolhas alimentares mais saudáveis (12).
Em 2016, entrou em vigor na Câmara Municipal de Gondomar (CMG) o novo regulamento do “Programa Social +”. O eixo “+ Alimentação” insere-se neste programa e consiste na atribuição de apoio económico mensal na forma de cartão ou vales para compras alimentares, de valor calculado com base no número de constituintes do agregado familiar. Este apoio consiste, à data da realização deste estudo, numa base fixa de 15 euros, com acréscimo de 5 euros por elemento - valor duplicado no caso de agregados constituídos por uma pessoa, resultando num total de 25 euros para pessoas que vivem sozinhas. Os cartões/ vales podem ser utlizados apenas nos estabelecimentos aderentes, que incluem minimercados, supermercados e talhos do concelho. Os alimentos de aquisição permitida são todos os pertencentes aos grupos da Roda dos Alimentos Portuguesa (13).
A promoção da literacia em alimentação e uma correta caracterização socioeconómica e dos hábitos alimentares da população-alvo são essenciais para a aplicação de apoios governamentais que promovam hábitos de vida saudáveis, especialmente no que se refere à aquisição de géneros alimentícios (14). Com a escassez de estudos efetuados junto das populações que usufruem deste tipo de apoios em Portugal (15), torna-se pertinente melhor conhecer estas populações.
OBJETIVOS
Estudar e caracterizar as associações entre os HA, o estado estaturo- ponderal e a IA num grupo populacional com auxílio económico para compra de alimentos.
METODOLOGIA
Estudo observacional descritivo transversal realizado nos agregados familiares beneficiários do eixo de apoio social “+ Alimentação”, inserido no programa “Social +” da Autarquia de Gondomar.
Após contacto prévio por telefone, de um total de 88 agregados, 69 representantes manifestaram interesse em participar no estudo. O questionário foi enviado por correio, juntamente com a declaração de Consentimento Informado, tendo-se obtido um total de 58 respostas (taxa de participação de 65,9%). Em 18 destes 58 casos, a aplicação do questionário foi indireta, dado alguns participantes terem preferido que o inquérito fosse aplicado por entrevista telefónica ou no domicílio pela equipa de investigação.
O questionário foi desenvolvido no âmbito do presente estudo, destinando-se a ser respondido por um representante de cada agregado familiar beneficiário do programa no mês de abril de 2022, e era composto pelas seguintes secções:
Características sociodemográficas: sexo, idade, ano de escolaridade, características profissionais, composição do agregado familiar e rendimento;
Autoperceção do estado de saúde: escala qualitativa de seis itens desde “Excelente” a “Muito fraco” adaptadas com base na escala utilizada pelo Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física (IAN- AF) 2015-2016 (16);
Estado estaturo-ponderal: peso (kg) e estatura (cm) autorreportados. Calculou-se posteriormente o IMC (17), tendo-se criado as seguintes categorias: “baixo peso”(<18,5 kg/m2); “normoponderabilidade” (18,5-24,99 kg/m2); “pré-obesidade” (25-29,99 kg/m2) e “obesidade” (≥30 kg/m2), de acordo com a classificação da Organização Mundial da Saúde (17);
Adesão a hábitos alimentares saudáveis: recorrendo ao método “Avaliação breve dos hábitos alimentares para abordagem inicial” (18). A pontuação, de 0 a 20 pontos, foi categorizada em “baixa adesão” (0-7 pontos), “adesão moderada” (8 a 17 pontos) e “alimentação saudável” (<18 pontos);
Insegurança alimentar: utilizando a escala “Proposta Metodológica para a Avaliação da Insegurança Alimentar em Portugal” (19), com oito questões quando dirigida a agregados familiares sem indivíduos com idade inferior a 18 anos e 14 questões no caso de possuírem estes indivíduos no seu agregado. A pontuação total foi categorizada em “Ausência de insegurança alimentar” (0 pontos), “Insegurança alimentar ligeira” (0 a 5 pontos com menores de 18 anos ou 0 a 3 pontos sem menores de 18 anos), “Insegurança alimentar moderada” (6 a 9 pontos com menores de 18 anos ou 4 a 5 pontos sem menores de 18 anos) e “Insegurança alimentar grave” (10 a 14 pontos com menores de 18 anos ou 6 a 8 pontos sem menores de 18 anos);
Informação acerca dos géneros alimentícios obtidos a partir do vale alimentar e respetivos locais de compra. As opções de alimentos disponíveis no questionário basearam-se no permitido pelo regulamento do programa, regido pelos grupos da Roda dos Alimentos Portuguesa (13).
Considerações Éticas
Após a aprovação pela CMG e pela Comissão de Ética da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto (Parecer N.º 78/2022/CEFCNAUP), foram enviados aos participantes os consentimentos informados, procedendo-se à investigação de acordo com os princípios da Declaração de Helsínquia.
Análise Estatística
Os dados recolhidos foram analisados no programa IBM SPSS® versão 28.0 para Windows. A análise descritiva consistiu no cálculo de frequências absolutas (n) e relativas (%) para variáveis qualitativas, médias e desvios padrão para as variáveis quantitativas com distribuição normal, medianas e percentis (P25 e P75) para as com distribuição não normal. A associação entre pares de variáveis foi estudada através do coeficiente de correlação de Pearson (r) e de correlações parciais. A hipótese nula foi rejeitada sempre que o nível de significância crítico para a sua rejeição (p) foi inferior a 0,05.
RESULTADOS
Os participantes têm entre 30 e 91 anos e 70,7% (n = 41) são do sexo feminino. A maioria da amostra vive sozinha (n = 34; 58,6%), 24,1% (n = 14) dos agregados incluem pessoas com idade igual ou superior a 65 anos, e 15,5% (n = 9) incluem membros com idade inferior a 18 anos.
Na escala de 1 a 6 referente à autoperceção do estado de saúde, a mediana dos resultados é de 5, correspondente à categoria “Fraco”. Relativamente ao estado nutricional, através dos indicadores autorreportados verifica-se que 35 representantes dos agregados familiares (63,7%) apresentam excesso de peso. Adicionalmente, 45 pessoas (77,6%) obtiveram uma pontuação correspondente a uma adesão moderada a HA saudáveis. Salienta-se ainda que 19 participantes (35,8%) estão em contexto de IA grave (Tabela 1).
No que diz respeito aos géneros alimentícios obtidos através do vale de apoio municipal, 39 (67,2%) compram carnes brancas e 24 (41,4%) assinalaram a aquisição de produtos da categoria das gorduras e óleos. Pelo contrário, 60,3% (n = 35) da amostra não refere adquirir hortícolas, 58,6% (n = 34) leguminosas e 77,6% (n = 45) não assinalaram a compra de água (Tabela 2).
Verificou-se uma associação positiva entre o IMC dos representantes dos agregados familiares e a IA (r = 0,380; p = 0,006). Para além disso, uma idade mais elevada dos representantes dos agregados familiares associou-se significativamente a melhores HA (r = 0,348, p = 0,007). Estas associações não se alteraram significativamente quando ajustadas para as outras duas variáveis (Figura 1).
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Este estudo procurou caracterizar uma população apoiada municipalmente na compra de alimentos, obtendo uma amostra de representantes dos agregados familiares maioritariamente do sexo feminino e de agregado familiar unitário, com um fraco estado de saúde autorreportado.
Os resultados deste trabalho corroboram o facto de a IA estar muitas vezes associada a maior risco de excesso de peso (20, 21). Embora esta relação pareça ser relevante em adolescentes (22) e populações de meia-idade ou envelhecidas (23), não é possível tirar conclusões absolutas acerca do risco de excesso de peso para as diferentes faixas etárias com as presentes características amostrais. A associação encontrada entre a idade e uma maior adesão a HA considerados saudáveis poderá dever-se ao contexto de vida dos participantes, suportando que adultos mais velhos apresentam frequentemente uma menor ingestão energética, maior consumo de fibras (devido ao consumo de fruta e hortícolas) e menor ingestão de carne e de alimentos ricos em lípidos; estas características verificam-se muitas vezes por motivos de perda de entes queridos, falta de ocupação,
perda de apetite, comprometimentos de saúde oral ou diminuição de laços sociais (24).
A elevada prevalência de não adquisição de hortícolas através destes apoios vai ao encontro do prévio contexto mundial e nacional dos beneficiários de apoio alimentar (12), sendo várias as iniciativas criadas não só para colmatar esta tendência (9, 10), bem como para melhor averiguar relações de causalidade entre os fatores contribuidores para a situação (8, 25): desde o preço mais elevado de frutas e hortícolas em relação a outros géneros alimentícios, aos locais de compra disponíveis na zona de residência e ao rendimento familiar - estes dois últimos enviesados no presente estudo devido ao próprio regulamento do programa municipal, que limita a oferta de apoio a agregados com rendimentos familiares baixos, aplicável em supermercados, mercearias e talhos locais aderentes, e não permitindo a acumulação de outros apoios sociais. Adicionalmente, o facto de cerca de metade dos beneficiários investigados apresentarem um nível de escolaridade igual ou inferior ao 1.º ciclo do Ensino Básico vai ao encontro de dados nacionais que demonstram associação entre um menor nível de literacia em alimentação saudável e a existência de IA nos agregados familiares (12, 23).
Devido às características da população em investigação e a necessidade de adaptação de forma a aumentar a taxa de participação deste estudo, destaca-se como limitação deste trabalho a heterogeneidade dos métodos de recolha de dados dentro do pequeno tamanho amostral e o facto de o questionário aplicado não ter sido sujeito a um pré-teste. Para além disso, a informação autorreportada acarreta a possibilidade de a prevalência de excesso de peso ser subestimada. Por se tratar de um estudo de caráter transversal, não é possível estabelecer relações de causa-efeito, e o facto de englobar na sua maioria agregados familiares de apenas um membro limita a variabilidade dos resultados no que diz respeito à influência da dimensão do agregado na IA. Por fim, poderão existir casos em que o vale de apoio municipal não representa a totalidade dos grupos de alimentos obtidos pelo agregado familiar, com a coexistência de várias ajudas alimentares independentes do apoio municipal.
O principal ponto forte do estudo traduz-se no seu caráter atual e pertinente, consequente da escassez nacional de estudos no tema dos apoios alimentares e respetivas consequências socioeconómicas e de saúde para as populações beneficiárias. Adicionalmente, o facto de os inquiridos serem os responsáveis ou corresponsáveis pela obtenção de géneros alimentícios em cada agregado familiar poderá significar uma maior acuidade da informação obtida.
Métodos que promovam a literacia em alimentação saudável devem acompanhar apoios alimentares, com benefícios a curto prazo em populações carenciadas, sendo importante ajustá-los ao contexto específico em que se pretende atuar (14). Tendo em conta os resultados contraditórios ou pouco robustos das investigações existentes será importante no futuro realizar mais estudos para ser possível realizar diagnósticos de situação corretos e observações a longo prazo conclusivas. Assim, deverão ser englobados fatores muitas vezes subestimados, tais como o estigma frequente em torno da aceitação de apoios alimentares (8), o alcance destes - principalmente a nível municipal, salientando o papel das autarquias - a uma maior parte das populações necessitadas de forma mais eficaz e formas de educação alimentar apropriadas a cada contexto. Deve ainda ser realçado o papel intrínseco das estruturas socioeconómicas de cada país, que contribui para a prevalência da dificuldade na obtenção de alimentos no quotidiano. No caso do apoio municipal em estudo, a restrição da compra de produtos não constantes na Roda dos Alimentos Portuguesa poderá ser uma mais-valia a priori, potenciando um maior efeito benéfico quando aliada, por exemplo, a estratégias de educação alimentar.
CONCLUSÕES
Os representantes dos agregados familiares beneficiários de apoio municipal alimentar de Gondomar apresentam maioritariamente excesso de peso, adesão moderada a HA saudáveis e algum nível de IA. Valores mais elevados de IMC foram associados a maior IA, e idade mais elevada relacionou-se com HA mais saudáveis. De forma a prevenir as consequências mais comuns da IA na saúde das populações carenciadas, será importante considerar o papel governamental e das estruturas socioeconómicas de cada local na criação de apoios alimentares eficazes, de acordo com as necessidades prioritárias específicas.
CONTRIBUIÇÃO DE CADA AUTOR PARA O ARTIGO
ISF, BT e CA: Desenvolvimento da metodologia de investigação; ISF e AF: Recolha de dados; ISF, BT, RP e CA: Análise e interpretação dos dados recolhidos; ISF: Redação do artigo; ISF, BT, RP, AF e CA: Revisão da redação do artigo e apreciação crítica do trabalho. Todos os autores leram e aprovaram a versão final do artigo.