Introdução
O cancro de cabeça e pescoço é considerado um problema mundial de saúde pública, tendo como fatores de risco major o consumo de tabaco, a ingestão de álcool, o vírus do papiloma humano, bem como as condições hereditárias e a exposição a fatores de risco profissionais1,2. Entre estes, o cancro da laringe é um dos mais frequentes, representando 25% dos tumores malignos que afetam esta área, sendo o tratamento cirúrgico o tratamento mais comum para este tipo de neoplasias2.
Pela complexidade inerente à localização, a cirurgia dos tumores da laringe implica, frequentemente, importantes alterações no estilo de vida da pessoa, podendo acarretar a perda de funções importantes, como falar, mastigar, deglutir, cheirar ou respirar, com impacto na expressão facial e na imagem corporal3. Além disso, por afetar principalmente adultos relativamente jovens, ainda em idade ativa, estas alterações apresentam um impacto acrescido, repercutindo-se na vida familiar, social e laboral1.
Nestes tipos de cancro, a sobrevida tem vindo a aumentar, quer em função do diagnóstico precoce, quer da maior eficácia do tratamento, verificando-se, por este motivo, uma preocupação crescente com a qualidade de vida das pessoas sobreviventes4.
As pessoas submetidas a laringectomia total irão vivenciar alterações complexas na sua vida, devendo ser, sempre que possível, informadas das mesmas previamente à cirurgia, de modo a que, no pós-operatório, o impacto das mesmas seja amenizado. Contudo, na prática clínica, temos consciência que, ao longo do internamento cirúrgico, os enfermeiros direcionam maioritariamente a sua atenção, numa fase inicial, para a prevenção de complicações associadas à cirurgia e, aquando da alta, para a promoção do autocuidado da traqueostomia, com vista a “contribuir para a aquisição de conhecimentos e competências do doente/cuidador, na otimização da ostomia de ventilação” 5.
Não obstante, refletindo sobre a temática dos sobreviventes de cancro, analisando o impacto da doença e do tratamento na pessoa e na família, bem como as alterações na qualidade de vida daí decorrentes, percebemos a possível existência de lacunas, na nossa prática, nomeadamente no que se reporta à preparação da pessoa para a vida “fora do internamento”. Assim, apesar de sabermos que as pessoas são, após a alta, acompanhadas em consultas de ambulatório, não podemos descartar a responsabilidade de, aquando do internamento investirmos, para além do autocuidado traqueostomia, na prevenção de entraves à adaptação da pessoa submetida a laringectomia total.
Para isto, torna-se fundamental conhecer os principais domínios que impactam na adaptação das pessoas laringectomizadas aquando do regresso a casa. A adaptação de um indivíduo à doença oncológica poderá ser influenciada por diversos fatores, relativos à própria doença, às características pessoais, ao ambiente social e características culturais6, podendo estes fatores ser facilitadores ou dificultadores da adaptação, sendo, neste último caso, entraves à mesma.
A adaptação à doença oncológica é uma reação que se caracteriza pela capacidade de reorganização, reintegração ou reorientação do indivíduo, envolvendo várias componentes, nomeadamente a reconciliação com o estado de saúde, o seu impacto e a sua natureza crónica, implicando a aceitação afetiva ou internalização de si6. Atendendo a que quanto maior a adaptação à doença oncológica maior é a qualidade de vida do doente oncológico6, associamos a qualidade de vida à adaptação enquanto fenómeno de interesse, percebendo que os domínios que impactam na adaptação das pessoas laringectomizadas serão os mesmos que irão impactar a qualidade de vida.
Assim, sabendo que a pessoa submetida a laringectomia total vivencia um processo de transição saúde/doença complexo, necessitando de cuidados de enfermagem individualizados que promovam a adaptação e capacitação para a nova condição de saúde, e com vista a melhorar a intervenção do enfermeiro na promoção da adaptação da pessoa após laringectomia total, realizou-se uma revisão integrativa de literatura, sendo objetivo deste trabalho identificar quais os domínios que impactam a adaptação das pessoas laringectomizadas, aquando do regresso a casa.
Procedimentos Metodológicos de Revisão Integrativa
De forma a conhecer quais as principais dificuldades da pessoa submetida a laringectomia total, aquando do regresso a casa, realizou-se uma revisão integrativa de literatura, de acordo com a estratégia PICo: População; Fenómeno de Interesse e Contexto7tendo por base a questão de investigação: “Quais os domínios que impactam a adaptação da pessoa submetida a laringectomia total, aquando do regresso a casa?”, como se apresenta na tabela 1.
Importa lembrar, neste ponto, que, numa primeira pesquisa em literatura cinzenta encontrámos alguns artigos que relacionam a adaptação com a qualidade de vida, sendo frequente os trabalhos que procuram estudar a adaptação avaliarem, concomitantemente, a qualidade de vida. Por existir uma associação entre a adaptação e o índice geral da qualidade de vida6, associamos a qualidade de vida à adaptação enquanto fenómeno de interesse e, tendo por base o estado da arte, estabeleceram-se critérios de inclusão, com a finalidade de orientar a pesquisa e a seleção da evidência científica. Na tabela 2 explanam-se os critérios de inclusão definidos para a presente revisão.
Para determinar os descritores a utilizar, recorreu-se ao DeCS e ao MeSH Browser, construindo a frase booleana: “Laryngectomy AND (Quality of Life OR Life Quality OR Adaptation)”.
A selecção dos artigos e a extração da informação foi realizada por 2 investigadores de forma independente, nas bases de dados CINAHL® Complete e MEDLINE Complete, reunidas no agregador de conteúdos EBSCOhost. De forma a orientar a pesquisa e aumentar a precisão dos resultados face à questão identificada, definiram-se os critérios de inclusão.
A pesquisa efetuada permitiu a inclusão de vários estudos, apresentando-se no diagrama PRISMA8, a seleção dos artigos e documentos incluídos para revisão.
Importa referir, neste ponto, que 9 artigos foram excluídos por abordar em apenas um domínio da qualidade de vida, na medida em que avaliavam a qualidade de vida em 2 grupos de participantes, nos quais diferia apenas uma variável, como por exemplo, a qualidade de vida relacionada à estigmatização da pessoa laringectomizada num grupo portador de prótese fonatória, comparando-o com um grupo sem recurso a esse dispositivo. Neste grupo de artigos excluídos, inserem-se ainda estudos que avaliaram um aspeto da qualidade de vida antes e depois da laringectomia total (por exemplo, relacionando a qualidade de vida com o nível socioeconómico antes e após a cirurgia.
Por abordarem aspetos altamente específicos, consideramos não darem uma resposta abrangente à questão de investigação.
Resultados
Findo o processo de seleção, obtivemos quatro estudos primários para revisão, que permitiram dar resposta à questão de investigação. Os estudos foram publicados entre os anos de 2011 e 2015, todos oriundos de países europeus, variando a metodologia utilizada entre estudos transversais e estudos de coorte.
Após a análise dos diferentes artigos foi possível identificar um vasto número de focos de atenção de enfermagem passíveis de traduzir dificuldades sentidas pelas pessoas laringectomizadas aquando do regresso a casa, podendo estes ser agregados em diferentes domínios (Função Física, Função de Papel, Função Social, Função Emocional / Psicológica e Estado Global de Saúde) como sumariado na tabela 3.
Discussão
Atendendo a estes resultados, foram identificados 29 focos, passíveis de traduzir as principais dificuldades da pessoa submetida a laringectomia total aquando do regresso a casa, podendo estes tópicos agrupar-se em 5 domínios: Função Física, Função de Papel, Função Social, Função Emocional / Psicológica e Estado Global de Saúde. A organização dos diferentes focos em 5 domínios teve por base a divisão em escalas funcionais presentes da versão portuguesa do QLQ-C30-V.313, verificando-se ter sido também esta divisão a opção utilizada por Mallis e colaboradores9, aquando da apresentação dos resultados do seu estudo.
Em relação à Função Física, a dor foi o sintoma mais vezes citado, sendo referido em todos os artigos analisados. Não obstante, enquanto Mallis e colaboradores9 referem que a dor “raramente foi relatada como um problema” (p.939), Perry, Casey e Cotton 10, por outro lado, salientam que “o aumento da dor, desconforto e fadiga” podem reduzir significativamente, “a participação no trabalho e nas atividades da vida diária (…) em relação ao seu estado pré-mórbido” (p.473).
A perceção de dor/desconforto impacta na dimensão física da qualidade de vida, relacionando-se com as atividades da vida diária, dependência de substâncias medicinais e tratamentos, mobilidade, sono/repouso e capacidade para o trabalho10.
Sintomas como a Anorexia / Falta de Apetite, Deglutição e Xerostomia e foram também amplamente referidos, relacionando-se com a Capacidade Sensorial na medida em que “a queixa mais comum nos distúrbios funcionais foi o distúrbio do olfato (69,6%), seguido do distúrbio do paladar (34,8%) e a sensação de garganta seca (34,8%)” (p.393)9. Estas alterações concorrem para alterações na deglutição e na alimentação, queixas também relatadas por uma percentagem significativa de laringectomizados (15,2% e 13%, respetivamente)9.
A par destes, sintomas como a Tosse / Expectoração e Dispneia afetam a Fala / Discurso11, traduzindo-se em dificuldades de comunicação com estranhos (56,5%), agravadas em comunicações por telefone (78,3%), podendo manifestar-se mesmo em contexto familiar (30,4%)9. Estas dificuldades vão, desta forma, impactar a Socialização9,11, a Capacidade para desempenhar atividades de lazer10 e a Alimentação em contexto Social9,11criando barreiras para o desenvolvimento de relacionamentos satisfatórios com outras pessoas10.
Relativamente ao foco Capacidade para trabalhar, percebemos “a maioria (91,3%) das pessoas laringectomizadas também relatam diminuição da capacidade para o trabalho resultando numa alta taxa de reforma por invalidez (65,2%)”9. Como referido, a patologia da laringe afeta principalmente adultos relativamente jovens, ainda em idade ativa, o que vai ao encontro dos achados relativamente aos focos Capacidade para trabalhar e Problema Financeiro. Assim, a par disto, percebemos que o foco Problema Financeiro é também amplamente citado, sendo que 80,5% relataram piora na situação financeira (idem), verificando-se ainda uma diferença entre diferentes países, em função dos seus sistemas de segurança social11.
Quanto à Função Emocional / Psicológica, focos como Imagem Corporal, Vergonha e Solidão sobressaíram, sendo que “58,7% dos pacientes relataram desconforto devido à sua aparência, 23,9% sentiram-se constrangidos devido à sua voz ou doença”9, havendo uma estigmatização percebida, relacionada à voz alterada10, concorrendo para o surgimento de sentimentos de solidão9.
Relativamente a focos como Depressão e Ansiedade, verificou-se que estes apresentam uma correlação forte com a maioria dos domínios da qualidade de vida10, embora não se reunissem os critérios necessários para diagnosticar clinicamente depressão ou ansiedade12. Não obstante, o estado psicológico mostrou-se um fator significativo na avaliação da qualidade de vida das pessoas, sendo o humor deprimido a alteração mais frequentemente referida9.
Conclusão
Pessoas com cancro da laringe enfrentam não apenas uma doença potencialmente fatal, mas também o impacto do seu tratamento, que se reflete em diferentes domínios.
A laringectomia total afeta algumas das funções humanas mais básicas, como a respiração, alimentação e a comunicação verbal, interrompendo as interações sociais e familiares bem como o desempenho de papéis, quer pelo aumento da dependência, quer pela alteração na capacidade para trabalhar. Estas alterações irão, em maior ou menor grau, comprometer a adaptação da pessoa para a nova condição de saúde, traduzindo-se numa diminuição da na qualidade de vida e na sensação geral de bem-estar dos pacientes.
A qualidade de vida será impactada quer pelas incapacidades funcionais quer pelo estado psicológico das pessoas. O curso geral da qualidade de vida após a laringectomia total assume um padrão, no qual quase todos os domínios da qualidade de vida se deterioram imediatamente após a cirurgia, verificando-se que, ao longo do primeiro ano após a cirurgia, algumas áreas se recuperam lentamente, enquanto outras permanecem significativamente piores, nunca retornando ao nível basal. A fala é um domínio com problemas recorrentes e persistentes, juntamente com outros aspetos da função física, como o olfato, o paladar, a fadiga, dispneia e a Falta de Apetite. Estes aspetos influenciam diretamente a Socialização e a Capacidade para trabalhar, traduzindo-se, por sua vez, num Problema Financeiro, que impacta, concomitantemente, o desempenho de papéis.
Conhecer estes domínios e o impacto que estes têm na adaptação da pessoa laringectomizada, alerta-nos para o quão redutor é limitar os cuidados de enfermagem peri operatórios ao autocuidado traqueostomia, confirmando-se a “possível existência de lacunas” no que se refere à promoção da adaptação da pessoa submetida a laringectomia. Assim, reconhecer e intervir precocemente nestes domínios, antecipando as dificuldades das pessoas laringectomizadas aquando do regresso a casa, poderá ser promotor de uma melhor adaptação.
Reconhecemos que a amostra de estudos incluídos na análise não é vasta, sendo nenhum mais recente do que 2015, o que deverá ser um fator a considerar como uma limitação deste trabalho. Não obstante, consideramos ter atingido o objetivo de conhecer os principais domínios que impactam na adaptação das pessoas laringectomizadas aquando do regresso a casa, sendo este o primeiro passo para se conseguir ajustar e melhorar os cuidados planeados para estas pessoas, rumo a uma prestação de cuidados de enfermagem de maior qualidade.