Introdução
A Hiperidrose ou Hipersudorese é definida por um aumento excessivo/inadequado da produção de suor, para além daquele que seria necessário fisiologicamente no processo da termorregulação.1 Este é um sintoma frequente nos doentes com doença oncológica avançada, estando a sua prevalência estimada entre 5-28%.2,3,4Constitui um importante fator de diminuição da qualidade de vida nos doentes em cuidados paliativos e o impacto deste sintoma atinge ainda os cuidadores dos doentes, já que exige frequentes trocas de roupa e substituição da roupa de cama.5,6,7
A hiperidrose pode classificar-se consoante a sua etiologia, em primária ou secundária, ou consoante a sua distribuição, em generalizada ou focal/localizada.1,7A hiperidrose primária é idiopática, habitualmente focal, bilateral e simétrica, estando circunscrita às mãos, pés, axilas e face. Ocorre predominantemente durante o período diurno e é agravada por fatores emocionais (como o stress) ou com o aumento da atividade do sistema nervoso simpático.1,7,8A hiperidrose secundária, mais frequentemente generalizada, mas surgindo também na forma focal/localizada, ocorre tanto no período diurno como noturno e surge devido a uma condição subjacente, seja ela aguda ou crónica, fisiológica ou patológica. Esta última pode ser de natureza endócrina/metabólica (ex: hipoglicémia), neurológica (ex: acidente vascular cerebral), infecciosa (ex: HIV), iatrogénica (ex: tamoxifeno, inibidores da aromatase, inibidores seletivos de recaptação de serotonina, opióides) ou maligna/paraneoplásica (ex: tumores sólidos, metastização hepática, doença disseminada).1,7,8,9Cerca de 18% dos doentes com doença disseminada apresentam hiperidrose paraneoplásica.3
A fisiopatologia da hipersudorese ou hiperidrose paraneoplásica ainda não é totalmente conhecida.10 Sabe-se que a libertação de substâncias pirógenas, resultantes da infiltração leucocitária e da necrose tumoral, induzem o aumento da temperatura corporal originando febre e, consequentemente, aumento da sudorese. No entanto, muitos dos doentes com hiperidrose paraneoplásica não apresentam pirexia.3,10Sugerem-se pelo menos duas possíveis causas para este fenómeno: uma disfunção do sistema nervoso simpático ou uma modificação do intervalo de temperatura basal no centro termorregulador hipotalâmico. Segundo esta hipótese, em doentes oncológicos terminais, as citocinas pró-inflamatórias libertadas pelas células tumorais (como a IL-1a, IL-2, IL-4, IL-6 e TNF-a) provocam uma diminuição do limite superior do centro termorregulador, originando sudorese em situação de apirexia.1,8,10
Na literatura, estão disponíveis algumas recomendações para o tratamento da hiperidrose, seja ela primária ou secundária. É bem conhecido o uso de anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) na hiperidrose por febre, ou a estratégia de rotação de opióides quando a etiologia é iatrogénica ao uso de um fármaco desta classe.11 No entanto, para a abordagem da hiperidrose paraneoplásica não existem recomendações, nem estudos recentes publicados, pelo que a presente revisão se torna pertinente.
Objetivo
Esta revisão tem como objetivo reunir a evidência científica existente acerca da abordagem da hiperidrose paraneoplásica em doentes paliativos.
Procedimentos Metodológicos de Revisão Integrativa
Para a elaboração desta revisão foi realizada uma pesquisa de meta-análises, revisões sistemáticas, ensaios clínicos aleatorizados e controlados, estudos observacionais (estudos de coorte, estudos de casos e controlos e estudos transversais), séries de casos, casos clínicos e normas de orientação clínica indexados nas bases de dados eletrónicas MEDLINE/Pubmed, The Cochrane Library, Database of Abstracts of Reviews of Effects (DARE), National Guideline Clearinghouse, BMJ Evidence-Based Medicine (BMJ EBM), National Institute for Health and Care Excellence (NICE), Canadian Medical Association Practice Guidelines Infobase e Bandolier. Para a seleção dos artigos foram utilizadas equações de pesquisa com os seguintes termos Medical Subject Headings (MeSH): Sweating, Hyperhidrosis, Palliative Care, Palliative Medicine.
Incluíram-se na pesquisa os artigos publicados até novembro de 2022, sem restrição linguística. Foram excluídas revisões narrativas, livros, artigos de opinião, artigos duplicados, artigos já incluídos em revisões sistemáticas ou meta-análises utilizadas neste trabalho, artigos com tema discordante com o objetivo da revisão, por exemplo, sobre “hot flashes”, sintomas B (febre, sudorese noturna e perda de peso), hiperidrose secundária a patologia endócrina, metabólica, neurológica ou infecciosa.
A pergunta de investigação formulada, segundo a estratégia PICO, tem como: População (P) - doentes em cuidados paliativos; Intervenção (I) - abordagem da hiperidrose paraneoplásica; Comparação (C) - placebo ou não tratamento; Outcomes (O) - controlo sintomático da hiperidrose paraneoplásica.
O processo de seleção dos estudos e respetiva avaliação dos mesmos, através da aplicação dos critérios de inclusão e de exclusão, foi feita em paralelo por dois investigadores. A elegibilidade inicial dos artigos foi determinada através da leitura dos títulos e resumos. De seguida, após a obtenção da versão completa dos artigos selecionados na primeira fase de pesquisa, procedeu-se à sua leitura na íntegra. Foram ainda consideradas as referências desses artigos para a pesquisa. Por fim, os artigos incluídos na revisão foram classificados quanto ao seu nível de evidência e força de recomendação, de acordo com a classificação de Oxford Centre for Evidence-Based Medicine.
Resultados e Discussão
Da pesquisa inicial foram obtidos 146 artigos. Destes, foram excluídos 124 artigos após a leitura do título e resumo, e 9 após a leitura integral por não cumprirem os critérios de inclusão ou por se incluírem nos critérios de exclusão, conforme descrito na Figura 1. No final, foram incluídos nesta revisão 13 artigos (4 casos clínicos e 9 séries de casos).
Os artigos incluídos nesta revisão abordam diferentes estratégias: a utilização de fármacos (nomeadamente a tioridazina, a talidomida, a olanzapina, a gabapentina, os canabinóides), a acupunctura e a fitoterapia chinesa. Sumarizam-se na Tabela 1 as características destes artigos.
A tioridazina é uma fenotiazida antipsicótica com efeitos anti-muscarínicos que foi sugerida como tratamento da hipersudorese em 3 artigos encontrados (séries de casos). Estes autores verificaram que baixas doses de tioridazina eram bem toleradas e estavam associadas a resultados promissores no controlo do sintoma em estudo, embora sugiram a realização de ensaios clínicos aleatorizados para comprovar a sua eficácia.12,13,14Em Portugal, a comercialização da tioridazina foi descontinuada devido ao risco de prolongamento do intervalo QT e morte súbita, por esta razão, este fármaco não pode ser utilizado como opção terapêutica na hiperidrose.
A talidomida marcou o seu nome na história pelas piores razões devido às malformações congénitas que causou em crianças nas décadas de 50 e 60 do século passado. Ao longo dos anos, têm vido a ser descobertas novas aplicações clínicas que alteraram a forma como esta molécula é vista pela comunidade científica e a sociedade em geral. Uma das utilidades é ao nível dos cuidados paliativos, em doentes terminais, para controlo sintomático. Nesta revisão foi demostrado, em três estudos, o papel da talidomida na diminuição da hiperidrose em doentes em cuidados terminais, desde que usada em baixa dose e por curtos períodos, de forma a contrabalançar o risco de neuropatia periférica sensitiva, que pode ser potencialmente irreversível.15,16,17
Num caso clínico18 verificou-se que a olanzapina foi eficaz na resolução completa da hiperidrose refratária a venlafaxina, acetato de medroxiprogesterona, prednisolona, Terapia Hormonal de Substituição (THS) e tioridazina. A olanzapina é um antipsicótico frequentemente usado em cuidados paliativos para controlo de outros sintomas, e, tendo em conta o seu perfil de boa tolerabilidade, seria interessante a realização de mais estudos para a avaliação da sua eficácia na hipersudorese.18
A gabapentina é um anticonvulsivante utilizado frequentemente na dor neuropática, com boa tolerância e segurança. É utilizada no tratamento de hiperidrose associada à menopausa e castração química. Por esta razão, foi proposta como possível estratégia na abordagem da hiperidrose paraneoplásica19. Neste estudo, os autores verificaram que todos os participantes tiveram uma resposta satisfatória à gabapentina, sem efeitos adversos significativos. No entanto, dado a dimensão da amostra não é possível tirar conclusões sobre a eficácia deste fármaco na população em estudo.19
O interesse da comunidade científica pelas propriedades medicinais de derivados da Cannabis tem sido crescente nas últimas décadas. Ao nível dos cuidados paliativos, a aplicabilidade destes compostos tem-se centrado nas náuseas, vómitos, no apetite e na dor. No entanto, têm vindo a surgir vários estudos que procuram novas indicações, sintomáticas ou mesmo modificadoras de doença, no sentido de explorar todo o potencial destas terapêuticas. Dois estudos20,21comprovaram que estas substâncias, especificamente, a Nabilona e o Dronabinol, podiam ter um efeito benéfico na abordagem da hiperidrose paraneoplásica, com redução estatisticamente significativa do impacto deste sintoma na qualidade de vida e funcionalidade nestes doentes. O mecanismo de ação destas substâncias ainda não é totalmente conhecido.20,21Um dos aspetos mais debatidos acerca da introdução de medicamentos à base de extratos de canábis é o enquadramento jurídico. Em Portugal, até ao momento, o INFARMED deliberou a aprovação de uma lista de sete finalidades terapêuticas para estes fármacos. Além desta limitação quanto aos fins terapêuticos admissíveis, a prescrição está condicionada aos casos em que os tratamentos convencionais com medicamentos autorizados não estiverem a produzir os efeitos esperados ou caso estes estejam a provocar efeitos adversos relevantes.22
O interesse pela Terapia Complementar (TC) ao nível dos cuidados paliativos, tem vindo a aumentar ao longo dos anos, por esta razão, os artigos sobre a abordagem da hiperidrose paraneoplásica por estas estratégias também foram incluídos nesta revisão. Um caso clínico23 mostrou que a acupuntura pode ser eficaz no tratamento da hiperidrose paraneoplásica.
A tabela 1 pode ser acedida aqui
Estes autores defendem que esta forma de TC deveria ser utilizada como primeira linha, em alternativa ao tratamento farmacológico, nos doentes polimedicados, como é frequentemente o caso em cuidados paliativos. O mecanismo proposto para explicar estes resultados prende-se com a hipótese de a acupuntura ter um efeito imuno-modulador na libertação de citocinas pró-inflamatórias associadas à necrose tumoral.23
Relativamente aos estudos sobre a fitoterapia chinesa, os autores demostraram que as infusões de Yu Ping Feng San modificada e de Dang Gui Liu Huang Tang modificada mostraram ser eficazes na cessação da hipersudorese em mais de 70% dos participantes. Estas infusões são preparadas com plantas consideradas medicinais, cujo uso deve ser cauteloso, uma vez que, não são conhecidos os possíveis efeitos adversos, interações e toxicidade.24,25
Os resultados encontrados nesta revisão são heterogéneos e, apesar de na sua generalidade, parecerem mostrar vantagens no controlo da hiperidrose paraneoplásica em doentes paliativos, não existe evidência robusta que comprove o benefício inequívoco de uma abordagem sobre qualquer outra.
Como limitações da pesquisa realizada, identificamos estudos de baixa qualidade científica, com reduzidas dimensões amostrais, ausência de grupos controlo, falta de uniformização dos instrumentos de avaliação e ausência de estudos mais recentes.
Conclusão
Com esta revisão conclui-se que a evidência atual sobre a abordagem terapêutica da hiperidrose paraneoplásica em cuidados paliativos é de qualidade fraca (força de recomendação C).
Esta temática carece de estudos metodologicamente adequados, robustos e de alta qualidade que validem a evidência encontrada. Por esta razão, a generalização dos resultados encontrados e a respetiva aplicabilidade é limitada.
Na perspetiva dos autores, esta revisão alerta para a necessidade de estudos mais atuais e de melhor qualidade nesta área, dado o impacto que este sintoma apresenta na qualidade de vida dos doentes em cuidados paliativos e a ausência de recomendações fortes para a sua gestão.