INTRODUÇÃO
O consumo abusivo de bebidas alcoólicas é um fator de risco e uma doença com graves consequências para a saúde, com amplo impacto na sociedade(1,2). É frequente considerar-se como socialmente aceitável, apesar da ligação a diversas doenças, problemas sociais e económicos(3-8). Estima-se que em todo o mundo cerca de 43% da população acima dos 15 anos tenha consumido álcool nos últimos doze meses (aproximadamente 2,3 mil milhões de pessoas).
O IV Inquérito Nacional ao Consumo de Substâncias Psicoativas na População Geral, Portugal 2016/17 (INPG 2016/17) inclui os dados mais recentes disponíveis sobre o tópico em Portugal. Segundo o INPG 2016/17 58,3% da população portuguesa entre 15 e 74 anos havia consumido bebidas alcoólicas nos últimos doze meses, valor inferior aos 70% verificados no Inquérito Nacional de Saúde em 2014(9,10). Portugal é ainda, de acordo com dados do Eurostat (2014), o país com maior percentagem de consumo diário de álcool (24%), muito acima da média da União Europeia (UE), de 9%. Seguindo a tendência mundial e europeia, em Portugal existe um maior consumo de bebidas alcoólicas por parte dos homens (consumo per capita e binge drinking), apesar de surgirem diferenças relevantes entre os valores obtidos em diversos inquéritos(2,9,10). Verificam-se assimetrias regionais, com um maior binge drinking e consumos de risco na população açoriana(11). Influenciado pela produção vinícola nacional, predomina em Portugal o consumo de vinho (61%), seguido pela cerveja (26%) e bebidas espirituosas (8%)(2), um padrão de consumo distinto do europeu.
Em 2016 o consumo excessivo de álcool foi o sétimo principal fator de risco para morte e anos de vida ajustados para incapacidade (DALYs), responsável por 5,3% de todas as mortes no mundo (10,1% na região europeia). Entre o grupo etário dos 15 aos 49 anos o álcool foi mesmo o principal fator de risco associado a mortalidade em ambos os sexos (3,8% dos óbitos femininos e 12,2% dos óbitos masculinos mundiais). Entre as causas de morte atribuíveis ao consumo de álcool, os acidentes representam a maior percentagem (28,7%, equivalente a cerca de 900 000 óbitos)(2,12).
A investigação científica na área do consumo de bebidas alcoólicas tem sido centrada nas consequências para a saúde dos indivíduos, ao invés dos fatores que determinam a sua ocorrência - predisposição genética, características dos indivíduos, fatores sociais, económicos e determinantes ambientais que condicionam o consumo e consequências da ingestão de álcool(13,14). Verifica-se a existência de polimorfismos genéticos responsáveis pelo metabolismo do álcool(15-18), assim como maior consumo nos jovens adultos(19,20) e no sexo masculino(19,21), com uma redução da diferença de consumo entre homens e mulheres(21). Com a idade, a frequência de consumo e número de bebidas ingeridas tende a diminuir(22). Maiores rendimentos, menor grau de escolaridade e desemprego contribuem para um consumo mais frequente, com consequências de saúde mais graves para aqueles com menores rendimentos(23). O consumo por pares (família, amigos, colegas) e a existência de relações disfuncionais(19,24,25), assim como o meio cultural envolvente(26) influencia também o consumo de bebidas alcoólicas, existindo nos países mediterrânicos uma maior tolerância ao consumo social e durante refeições, mas estigma do consumo crónico excessivo(27). O estudo dos fatores que influenciam o consumo de álcool deve também considerar a expectativa de efeitos positivos associados ao consumo(25), a disponibilidade e o preço de venda(28,29).
São necessários estudos mais robustos sobre a relação entre o consumo de álcool e consequências em meio laboral, assim como intervenções preventivas(30). A evidência científica existente atualmente indica que o trabalho durante longos períodos (superiores a 48 horas) e horários desregulados predispõe os trabalhadores para um consumo de álcool mais intenso, assim como para o desenvolvimento de depressão, ansiedade, privação de sono e acidentes de trabalho(31,32). A disponibilidade de bebidas alcoólicas no trabalho, a facilidade de obtenção durante horas de trabalho e pausas, a inexistência de normas regulatórias do consumo no trabalho e o consumo por colegas são também fatores de risco para o consumo de álcool no local de trabalho(33). As relações entre o consumo de álcool e consequências para trabalhadores e empregadores são apresentadas no modelo conceptual (Figura 1).
Entre as principais repercussões do consumo de bebidas alcoólicas importa distinguir aquelas que têm efeitos na saúde dos indivíduos(2,5,34-37): dependência, maior risco de desenvolver neoplasias; doenças do aparelho gastrointestinal; doenças cérebro-cardiovasculares; síndrome metabólica e aumento de resistência a insulina; doenças músculo-esqueléticas; doenças infeciosas; doenças neuropsiquiátricas; lesões externas; síndrome alcoólico fetal e aborto, entre outras. Face a consumos moderados a elevados, as mulheres têm maior risco de mortalidade, comparativamente aos homens(38).
O binge drinking aumenta o risco de consequências negativas agudas e crónicas, sendo um indicador de vulnerabilidade para o desenvolvimento de alcoolismo(39,40). Apesar da controvérsia, estudos recentes confirmam que não existe um efetivo benefício com consumo ligeiro ou moderado, em relação à mortalidade(12,41,42). O consumo de bebidas alcoólicas também contribui para o aumento das desigualdades sociais em saúde através de uma potencial perda de rendimentos, disrupção familiar, violência interpessoal, problemas de saúde mental, estigmatização(43,44).
No local de trabalho, o consumo excessivo de álcool pode associar-se a situações de absentismo, ineficiência, diminuição da performance, incapacidade para tomar decisões, degradação da relação com clientes e colegas e acidentes de trabalho, com particular destaque para os trabalhadores da área da construção e dos transportes(31,45-49). O consumo de álcool em meio laboral predispõe à ocorrência de acidentes de trabalho, provavelmente devido às alterações que provoca na diminuição de coordenação e equilíbrio, aumento de tempo de reação (com alcoolémias desde 0,15 g/L), alteração da perceção e julgamento, diminuição da acuidade visual e do campo visual, assim como da capacidade de concentração e raciocínio (1,50,51).
Em 2003 cerca de 25% dos acidentes de trabalho em Portugal estariam relacionados com o consumo de álcool, ainda assim um valor inferior ao reportado em outros países(47,52,53), segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Indivíduos sob stress e fatigados estão mais predispostos a sofrer acidentes de trabalho(54,55), assim como aqueles pressionados por tarefas temporizadas, que trabalham apesar de se sentirem doentes(56), que têm horários de trabalho noturnos ou por turnos, com longas semanas de trabalho ou inexperientes. O risco de acidentes de trabalho é ainda influenciado por outros fatores individuais, relacionais, comunitários e societais, muitos dos quais comuns ao consumo de bebidas alcoólicas(57). O ambiente de trabalho também é relevante para a ocorrência de acidentes de trabalho, nomeadamente as condições de higiene(58), equipamentos degradados, tarefas não rotineiras, alterações no meio envolvente(56). Os acidentes de trabalho acarretam consequências para o indivíduo e para a sua família, tanto a nível de saúde como financeiro, mas também afetam diretamente os empregadores através de custos diretos e indiretos que chegam a 4% do Produto Nacional Bruto(59).
Em Portugal, poucos estudos procuraram identificar os efeitos do consumo de álcool em meio laboral, estando restritos a classes de trabalhadores específicos, como trabalhadores da construção civil(45). Não obstante, no meio laboral, a deteção de consumo excessivo de álcool associado ao trabalho deve ser abordada cautelosamente(60). As empresas nacionais devem adotar medidas de prevenção em regulamentos internos e documentos estratégicos (51,61-64), tendo por base a melhor evidência científica (65).
METODOLOGIA
Foi realizado um estudo epidemiológico observacional transversal analítico(83-85) de dados secundários obtidos através do IV Inquérito Nacional ao Consumo de Substâncias Psicoativas na População Geral (INPG 2016/17).
Fontes de dados
O presente estudo foi realizado através de uma análise secundária dos dados do INPG 2016/17, inquérito por questionário à população nacional residente no continente e regiões autónomas, com idades compreendidas entre 15 e 74 anos de idades, inclusive. Para o INPG 2016/17 foram considerados como critérios de inclusão a idade compreendida entre os 15 e 74 anos, a residência em Portugal Continental e nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira. Apenas foi considerada população residente em casas familiares, sendo excluída a população que não fale a língua portuguesa, residente em instituições, estabelecimentos coletivos e população sem-abrigo(10,66). A recolha de dados no âmbito do INPG 2016/17 foi efetuada a partir de entrevista presencial, com recurso à técnica Computer Assisted Personal Interview (CAPI)(10), entre dezembro de 2016 e junho de 2017.
Amostra em estudo
A população-alvo corresponde à população em estudo, sendo a população portuguesa entre os 15 e 74 anos, residente em Portugal Continental e Regiões Autónomas, em 2016 e 2017, a partir da qual foi constituída uma amostra de 12 023 indivíduos(10), calculada para assegurar uma representação adequada dos consumidores de substâncias psicoativas, garantindo uma adequada relação de custo/ benefício. A amostra em estudo foi obtida por um sistema de tiragem de múltiplas etapas, estratificada, por conglomerados, de forma aleatória proporcional, assegurando representatividade estatística nacional e regional (NUTS II)(10).
Variáveis em estudo
Para o presente estudo foram consideradas como principais variáveis: ocorrência de acidentes de trabalhos nos últimos dois anos; consumo de álcool nos últimos doze meses; score AUDIT total; frequência de consumo; quantidade consumida; frequência de binge drinking; lesões relacionadas com consumo. Foram ainda consideradas várias variáveis socioeconómicas e demográficas, incluindo sexo; idade; residência; escolaridade; estado civil; situação laboral; rendimento; setor de atividade laboral; número de horas de trabalho semanal; tipo de horário de trabalho; satisfação com o trabalho; acesso a serviços de Medicina do Trabalho.
Análise estatística
Para a análise descritiva das variáveis quantitativas (idade e média de horas de trabalho semanal) foram calculadas as médias (m) e respetivo desvio-padrão (dp). Para as variáveis qualitativas foram apresentadas frequências absolutas e relativas, tendo em consideração as respostas válidas a cada uma das questões do inquérito em análise(67). Foi efetuada uma análise bivariada entre a ocorrência ou não de acidentes de trabalho nos últimos dois anos e as restantes variáveis em estudo, com o cálculo de Odds Ratio (OR) brutos e respetivos intervalos de confiança a 95%. Os valores foram calculados através de regressão logística simples. Foram considerados como estatisticamente significativos quando apresentaram um intervalo de confiança sem interseção do valor 1(68,69).
A seleção das variáveis a incluir no modelo de regressão logística múltipla teve em consideração o modelo conceptual desenvolvido no âmbito do presente estudo, sendo integradas as variáveis que se consideraram apresentar relevância epidemiológica. Para tal, foram consideradas as seguintes variáveis: sexo; idade; escolaridade; rendimento; setor de atividade laboral; tipo de horário de trabalho; satisfação com o trabalho; score AUDIT total. Foi realizada uma segunda regressão logística múltipla, considerando as três principais componentes do score AUDIT total (frequência de consumo, quantidade consumida e frequência de binge drinking), permitindo uma análise mais detalhada das associações entre variáveis.
Todas as análises estatísticas foram efetuadas através do software IBM® SPSS Statistics 25, incluindo o pacote de amostragem complexa disponibilizado, cujas variâncias são estimadas pelo método de linearização de Taylor(70). Foram calculados os respetivos intervalos de confiança a 95%, com recurso ao módulo de amostras complexas disponibilizado.
RESULTADOS
Dos 12024 indivíduos inquiridos, 51,7% eram mulheres, com média de idade de 43,8 anos. Entre a amostra que sofreu pelo menos um acidente de trabalho nos últimos dois anos, destaca-se um maior número de indivíduos do sexo masculino (61,1%) e com rendimentos mensais inferiores a 1000 euros (88,5%). 58,3% dos indivíduos refere ter consumido álcool nos últimos doze meses e, entre esses, 93,8% dos inquiridos refere um consumo ligeiro ou moderado. O consumo de álcool durante o horário de trabalho foi referido por 10,7% dos participantes e a disponibilidade de bebidas alcoólicas em bar ou cantina no local de trabalho foi referida por 32,9%. O resumo das principais variáveis analisadas está incluído na tabela 1.
Tota de respostas (n) | Frequência relativa (%) IC95% | ||
---|---|---|---|
Sexo | Masculino | 5802 | 48,3 (47,3-49,2) |
Feminino | 6222 | 51,7 (50,8-52,7) | |
Educação | Não frequentou ou apenas 1º ciclo | 2968 | 27,1 (26,2-28,0) |
2º e 3º ciclo | 3623 | 33,1 (32,1-34,0) | |
Ensino secundário ou profissional | 2773 | 25,3 (24,4-26,2) | |
Ensino superior | 1596 | 14,6 (13,8-15,3) | |
Rendimento mensal | Até 250 euros | 698 | 12,0 (11,2-13,0) |
251 a 1000 euros | 4259 | 73,4 (72,1-74,6) | |
1001 a 2000 euros | 703 | 12,1 (11,2-13,1) | |
Mais de 2001 euros | 145 | 2,5 (2,1-3,0) | |
Tipo de horário de trabalho | Contínuo diurno | 6798 | 82,4 (81,5-83,3) |
Contínuo noturno | 124 | 1,5 (1,2-1,8) | |
Turnos rotativos diurnos | 362 | 4,4 (3,9-4,9) | |
Turnos rotativos mistos | 615 | 7,4 (6,8-8,1) | |
Flexível | 264 | 3,2 (2,8-3,6) | |
Intermitente | 32 | 0,4 (0,3-0,6) | |
Jornada contínua | 58 | 0,7 (0,5-0,9) | |
Satisfação laboral | Muito satisfeito | 1644 | 21,0 (20,0-22,0) |
Satisfeito | 4688 | 59,8 (58,5-61,0) | |
Pouco satisfeito | 1223 | 15,6 (14,7-16,5) | |
Nada satisfeito | 290 | 3,7 (3,3-4,2) | |
Acidentes de trabalho ocorridos nos últimos dois anos | Sim | 397 | 4,9 (4,4-5,5) |
Não | 7663 | 95,1 (94,5-95,6) | |
Consumo de álcool nos últimos doze meses | Sim | 7008 | 58,3 (57,3-59,3) |
Não | 5016 | 41,7 (40,7-42,7) | |
Score AUDIT Total | Consumo ligeiro (0-7) | 6574 | 93,8 (93,2-94,4) |
Consumo de risco (8-15) | 317 | 4,5 (4-5,1) | |
Consumo nocivo (16-19) | 25 | 0,4 (0,2-0,5) | |
Dependência (20-40) | 92 | 1,3 (1,1-1,6) | |
Consumo de álcool durante refeições, no local de trabalho | Frequentemente | 308 | 5,8 (5,1-6,5) |
Algumas vezes | 363 | 6,8 (6,1-7,6) | |
Raramente | 368 | 6,9 (6,2-7,7) | |
Nunca | 4305 | 80,6 (79,4-81,7) | |
Disponibilidade de álcool no local de trabalho | Sim, dentro de um certo limite | 545 | 25,1 (23,1-27,2) |
Sim, sem limite de aquisição | 169 | 7,8 (6,6-9,2) | |
Não | 1454 | 67,1 (64,8-69,3) |
Na análise por regressão logística da ocorrência de acidentes de trabalho verificaram-se associações estatisticamente significativas entre a ocorrência de acidentes de trabalho e sexo, escolaridade, rendimento, número de horas semanais de trabalho, tipo de horário de trabalho, satisfação no trabalho, pontuação total do AUDIT, quantidade de álcool consumida, frequência de consumo excessivo de álcool, consumo de álcool durante o trabalho, consumo de álcool por colegas de trabalho e disponibilidade de álcool no local de trabalho.
A ocorrência de acidentes de trabalho foi maior nos homens (OR 1.595 - IC 95% 1.263 - 2.015), com 2º e 3º ciclos do ensino básico (OR 2.117 - IC 95% 1.417 - 3.162), com rendimentos mensais entre 251 e 1000 euros (OR 3,6 - IC 95% 1.007 - 12.869), a trabalhar no setor secundário (OR 1.499 - IC 95% 1.146 - 1.961), com um número médio de 41,9 horas de trabalho semanal (OR 1.027 - IC 95% 1.012 - 3.041 ). Também se verificou uma associação entre a ocorrência de acidentes de trabalho e o trabalho noturno, noturno e intermitente, quando comparado ao horário diurno contínuo. Indivíduos que afirmam estar nada satisfeitos com o trabalho apresentam um OR 2.776 (IC95%: 1,725 - 4,403), em comparação com aqueles que estão muito satisfeitos.
Acidentes de trabalho foram associados estatisticamente àqueles que têm um padrão de consumo de álcool de risco (OR 2.782 - IC 95% 1.836 - 4.216), nocivo (OR 7,52 - IC 95% 2.740 - 20.633) ou dependente (OR 4.954 - IC 95% 2.558 - 9.594), em comparação com aqueles que relatam consumo leve ou moderado. Também se verificou uma forte associação com o consumo de dez ou mais bebidas alcoólicas (OR 8.287 - IC 95% 3,96 - 17.341) e consumo excessivo de álcool quatro ou mais vezes por semana (OR 4.345 - IC 95% 2.368 - 7.975). A prevalência de acidentes de trabalho foi maior quando houve consumo de bebidas alcoólicas durante o período de trabalho, seja antecipadamente, nos intervalos, nas refeições ou durante o trabalho, e quando os trabalhadores com ressaca estavam presentes no local de trabalho. No local de trabalho, os acidentes de trabalho também estiveram associados ao consumo de bebidas alcoólicas por colegas de trabalho, ao acesso às bebidas alcoólicas no local de trabalho e ao absenteísmo. Um resumo da análise bivariada está incluído na tabela 2.
Tota de respostas (n) | Frequência relativa (%) IC95% | OR (IC95%) | ||
---|---|---|---|---|
Sexo | Masculino | 242 | 61,1 | 1,595 (1,263-2,015) |
Feminino | 154 | 38,9 | * | |
Educação | Não frequentou ou apenas 1º ciclo | 87 | 23,1 | 1,526 (0,993-2,344) |
2º e 3º ciclo | 175 | 46,4 | 2,117 (1,417-3,162) | |
Ensino secundário ou profissional | 74 | 19,6 | 1,200 (0,767-1,879) | |
Ensino superior | 41 | 10,9 | * | |
Rendimento mensal | Até 250 euros | 5 | 1,8 | 0,813 (0,183-3,610) |
251 a 1000 euros | 250 | 86,7 | 3,600 (1,007-12,869) | |
1001 a 2000 euros | 31 | 10,7 | 2,433 (0,644-9,201) | |
Mais de 2001 euros | 3 | 0,9 | * | |
Tipo de horário de trabalho | Contínuo diurno | 274 | 69 | * |
Contínuo noturno | 12 | 3 | 2,529 (1,313-4,874) | |
Turnos rotativos diurnos | 26 | 6,5 | 1,867 (1,157-3,013) | |
Turnos rotativos mistos | 64 | 16,1 | 2,748 (1,996-3,783) | |
Flexível | 12 | 2,9 | 1,118 (0,603-2,075) | |
Intermitente | 7 | 1,7 | 6,730 (2,600-17,420) | |
Jornada contínua | 3 | 0,7 | 1,221 (0,334-4,463) | |
Satisfação laboral | Muito satisfeito | 76 | 19,6 | * |
Satisfeito | 210 | 53,9 | 0,941 (0,697-1,271) | |
Pouco satisfeito | 69 | 17,7 | 1,207 (0,835-1,745) | |
Nada satisfeito | 34 | 8,7 | 2,756 (1,725-4,403) | |
Consumo de álcool nos últimos doze meses | Sim | 275 | 69,4 | 1,035 (0,810-1,322) |
Não | 121 | 30,6 | * | |
Score AUDIT Total | Consumo ligeiro (0-7) | 226 | 81,9 | * |
Consumo de risco (8-15) | 31 | 11,2 | 2,782 (1,836-4,216) | |
Consumo nocivo (16-19) | 6 | 2,3 | 7,520 (2,740-20,633) | |
Dependência (20-40) | 13 | 4,6 | 4,954 (2,558-9,594) | |
Frequência de consumo de álcool | Nunca | 83 | 23,1 | * |
Uma vez por mês ou menos | 61 | 17,0 | 0,836 (0,575-1,217) | |
Duas a quatro vezes por mês | 50 | 13,7 | 1,248 (0,832-1,873) | |
Duas a três vezes por semana | 47 | 13,1 | 1,154 (0,758-1,757) | |
Quatro ou mais vezes por semana | 119 | 33,0 | 1,239 (0,903-1,701) | |
Quantidade consumida | Uma ou duas bebidas | 189 | 68,0 | * |
Três ou quatro bebidas | 50 | 18,0 | 1,219 (0,858-1,731) | |
Cinco ou seis bebidas | 25 | 9,2 | 3,114 (1,959-4,95) | |
Sete a nove bebidas | 1 | 0,5 | 0,927 (0,346-2,484) | |
Dez ou mais bebidas | 12 | 4,4 | 8,287 (3,960-17,341) | |
Frequência de binge drinking | Nunca | 160 | 57,6 | * |
Uma vez por mês ou menos | 71 | 25,7 | 1,973 (1,430-2,723) | |
Duas a quatro vezes por mês | 23 | 8,4 | 3,271 (1,990-5,375) | |
Duas a três vezes por semana | 10 | 3,4 | 2,636 (1,221-5,688) | |
Quatro ou mais vezes por semana | 14 | 4,9 | 4,345 (2,368-7,975) | |
Consumo de bebidas alcoólicas durante o período laboral | Frequentemente | 10 | 3,6 | 8,282 (3,624-18,931) |
Algumas vezes | 11 | 4,2 | 2,106 (1,098-4,040) | |
Raramente | 21 | 7,8 | 2,452 (1,511-3,978) | |
Nunca | 229 | 84,4 | * | |
Consumo de bebidas alcoólicas por colegas de trabalho | Frequentemente | 23 | 6,0 | 4,257 (2,512-7,213) |
Algumas vezes | 61 | 16,0 | 3,065 (2,226-4,221) | |
Raramente | 50 | 13,0 | 2,629 (1,864-3,710) | |
Nunca | 248 | 65,0 | * | |
Acesso a bebidas alcoólicas no local de trabalho | Sim | 84 | 22,0 | 1,503 (1,138-1,986) |
Não | 299 | 78,0 | * |
* categoria de referência
O modelo de regressão logística múltipla A foi ajustado para sexo, idade, escolaridade, rendimento, setor de trabalho, tipo de horário de trabalho, satisfação no trabalho e score AUDIT total (tabela 3). Os acidentes de trabalho são mais provavelmente relatados por trabalhadores com 2º ou 3º ciclo do ensino básico do que aqueles com ensino superior (aOR 2.934 - IC95% 1.471 - 5.854). Uma associação semelhante também foi identificada entre trabalhadores com turnos rotativos mistos, em comparação com aqueles que trabalhavam em horários diurnos regulares (aOR 2.045- IC95% 1.233- 3.420). Foi encontrada forte associação entre a ocorrência de acidentes de trabalho e dependência do consumo de álcool, comparada ao consumo leve ou nulo (aOR 3.981 - IC95% 1.916 - 8.274).
A análise através do modelo B de regressão logística múltipla foi ajustada para sexo, idade, escolaridade, rendimentos, setor de trabalho, tipo de horário de trabalho, satisfação no trabalho, frequência do consumo de álcool, quantidade de álcool consumida e frequência do consumo excessivo de álcool (tabela 3). Associações semelhantes foram encontradas neste modelo, destacando uma maior probabilidade de acidentes de trabalho em trabalhadores insatisfeitos com seu trabalho (aOR 2.074 - IC 95% 1.024 - 4.199) e aqueles que consumiram 10 ou mais bebidas em uma ocasião (aOR 3.963 - IC 95% 1.438 - 10.923). Não foi encontrada associação estatística entre a ocorrência de acidentes de trabalho e a frequência de consumo de álcool.
Modelo A a OR (95% CI) | Modelo B a OR (95% CI) | ||
---|---|---|---|
Sexo | Masculino | 1,390 (0,956-2,021) | 1,431 (0,967-2,117) |
Feminino | * | * | |
Idade | 0,987 (0,973-1,000) | 0,990 (0,977-1,004) | |
Educação | Não frequentou ou apenas 1º ciclo | 2,029 (0,900-4,550) | 3,276 (1,447-7,416) |
2º e 3º ciclo | 2,934 (1,471-5,854) | 3,420 (1,677-6,974) | |
Ensino secundário ou profissional | 1,886 (0,909-3,915) | 1,778 (0,834-3,792) | |
Ensino superior | * | * | |
Rendimento mensal | Até 250 euros | 0,122 (0,015-1,010) | 0,124 (0,015-1,025) |
251 a 1000 euros | 2,849 (0,579-14,013) | 2,756 (0,563-13,485) | |
1001 a 2000 euros | 2,621 (0,497-13,835) | 3,162 (0,600-16,652) | |
Mais de 2001 euros | * | * | |
Setor de atividade laboral | Primário | 1,301 (0,689-2,456) | 1,133 (0,565-2,273) |
Secundário | 1,372 (0,900-2,091) | 1,038 (0,672-1,603) | |
Terciário | * | * | |
Tipo de horário de trabalho | Contínuo diurno | * | * |
Contínuo noturno | 0,814 (0,308-2,156) | 1,316 (0,470-3,684) | |
Turnos rotativos diurnos | 0,363 (0,124-1,060) | 0,560 (0,209-1,501) | |
Turnos rotativos mistos | 2,045 (1,223-3,420) | 1,848 (1,089-3,138) | |
Flexível | 1,498 (0,530-4,230) | 1,458 (0,502-4,239) | |
Intermitente | 10,923 (2,404-49,632) | 6,275 (1,618-24,334) | |
Jornada contínua | 0,629 (0,074-5,329 | 0,484 (0,051-4,556) | |
Satisfação laboral | Muito satisfeito | * | * |
Satisfeito | 0,823 (0,518-1,309) | 0,835 (0,515-1,352) | |
Pouco satisfeito | 1,335 (0,769-2,318) | 1,104 (0,620-1,963) | |
Nada satisfeito | 1,458 (0,672-3,166) | 2,074 (1,024-4,199) | |
Score AUDIT Total | Consumo ligeiro (0-7) | * | - |
Consumo de risco (8-15) | 1,824 (1,061-3,137) | - | |
Consumo nocivo (16-19) | 2,838 (0,650-12,401) | - | |
Dependência (20-40) | 3,981 (1,916-8,274) | - | |
Frequência de consumo de álcool | Nunca | - | * |
Uma vez por mês ou menos | - | 0,738 (0,456-1,193) | |
Duas a quatro vezes por mês | - | 1,139 (0,661-1,964) | |
Duas a três vezes por semana | - | 1,473 (0,874-2,482) | |
Quantidade de álcool consumida | Quatro ou mais vezes por semana | - | * |
Uma ou duas bebidas | - | 0,648 (0,398-1,057) | |
Três ou quatro bebidas | - | 1,250 (0,626-2,496) | |
Cinco ou seis bebidas | - | 0,519 (0,128-2,104) | |
Sete a nove bebidas | - | 3,963 (1,438-10,923) | |
Frequência de binge drinking | Nunca | - | * |
Uma vez por mês ou menos | - | 2,118 (1,328-3,378) | |
Duas a quatro vezes por mês | - | 2,065 (1,042-4,094) | |
Duas a três vezes por semana | - | 2,410 (0,849-6,840) | |
Quatro ou mais vezes por semana | - | 2,159 (0,855-5,453) |
* categoria de referência
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Entende-se que o presente estudo vem colmatar uma lacuna na evidência científica nacional sobre a associação entre o consumo de álcool e ocorrência de acidentes de trabalho, já que a maioria da evidência científica e relatórios técnicos foram publicados há cerca de dez anos(1,45,48).
Comparação com evidência científica existente
Ao comparar com o panorama europeu(71), verifica-se que Portugal é um dos países da Europa onde a taxa de acidentes laborais é mais elevada, superior ao dobro da média europeia. O consumo reportado nos últimos doze meses é cerca de 11% superior à média europeia(72). O consumo de álcool em Portugal é caracterizado como sendo de elevada frequência, mas razoavelmente moderado.
Dados do INPG 2016/17 revelam ainda que 19,4% da população portuguesa empregada consome bebidas alcoólicas durante pausas para refeição, no horário laboral. O valor é superior aquele reportado num contexto norte-americano (7%)(73), belga (11%), dinamarquês (14%), holandês (4%) ou polaco (8,2%), por exemplo(62). Tal comportamento poderá ser influenciado pela elevada disponibilidade de bebidas alcoólicas no local de trabalho, reportada por 32,9% dos indivíduos inquiridos, o que se encontra relacionado com um maior consumo pelos trabalhadores(74).
De acordo com um estudo realizado em 2007, em trabalhadores da construção civil em Portugal, 25% destes referia consumir álcool durante o horário de trabalho e 73% referia fazê-lo durante pausas para refeição(48). Quando analisados os dados relativos a trabalhadores da construção civil no INPG 2016/17 os dados são bastante diferentes (66% refere não consumir álcool durante as refeições, no horário laboral), o que poderá estar relacionado com as diferentes metodologias de estudo utilizadas, já que no estudo realizado em 2007 foi realizado numa amostra relativamente reduzida (100 trabalhadores) e implicou a quantificação do consumo de álcool através de testes de alcoolemia(48).
A associação estabelecida entre o sexo masculino e a ocorrência de acidentes de trabalho (OR bruto de 1,595) é semelhante aquela referida em Espanha(75). Um menor grau de escolaridade (OR bruto de 2,117) e de rendimentos (OR bruto de 3,600) também aparente estar associado à maior ocorrência de acidentes de trabalho, como sugerido num estudo finlandês realizado em 2012(76). De acordo com os dados do INPG 2016/17, o trabalho em turnos mistos ou intermitente predispõe à ocorrência de acidentes de trabalho, conclusão coerente com a literatura conhecida atualmente(77).
Um consumo de bebidas alcoólicas encontra-se significativamente associado à ocorrência de acidentes de trabalho quando este ocorre segundo um padrão de risco, nocivo ou dependente (segundo score AUDIT). Associações semelhantes são reportadas em estudos realizados em Espanha(78), Alemanha(79) e Estados Unidos(80). Importa destacar que a frequência de consumo de bebidas alcoólicas, incluindo o consumo ligeiro e moderado, não mostrou uma associação estatisticamente significativa com a ocorrência de acidentes de trabalho, tal como descrito na literatura científica(81,82).
A evidência sobre o impacto da realização de testes para a deteção do consumo de álcool na prevenção de acidentes de trabalho é inconclusiva(83), apesar de estudos realizados numa empresa de transporte de passageiros sugerirem uma redução na ocorrência de acidentes de trabalho após introdução desta prática(63). A associação entre a inexistência de ações de prevenção, regulamentos ou testes para deteção do consumo de álcool e a ocorrência de menos acidentes de trabalho detetada no INPG 2016/17 não permite esclarecer a análise, devendo ser considerada a possibilidade de existência de outras causas para a ocorrência de acidentes de trabalho.
Conforme descrito na literatura(44,45,59), as campanhas de prevenção do consumo excessivo de álcool mais efetivas são dirigidas a grupos de risco e indústrias específicas. Assim, o estudo efetuado, representativo da população geral portuguesa, não parece ser adequado para estudar esta associação. Ainda assim, recomenda-se a atuação em grupos ocupacionais específicos e a promoção de ambientes de trabalho sem disponibilidade de álcool(49).
Pontos fortes e limitações do estudo
A metodologia utilizada no INPG 2016/17, consolidada ao longo de quatro estudos transversais, permite assegurar a representatividade da população portuguesa e garantir uma abordagem realista ao consumo de substâncias, como o álcool(10,66).
A utilização de um modelo de análise estatística por regressão logística múltipla procurou analisar os resultados de uma perspetiva mais realista, considerando diversas categorias integradas no modelo conceptual desenvolvido, ao invés de uma seleção unicamente baseada em critérios estatísticos. Estudos prévios corroboram a importância de considerar fatores pessoais e laborais no estudo do consumo de substância em meio laboral(84).
Os inquéritos por entrevista, nomeadamente associados a comportamentos associados ao consumo de substâncias, apresentam limitações que podem levar a uma sub-representação da realidade devido à relutância em reportar esses comportamentos(84). O viés de memória(85) e de variações na perceção do risco dos respondedores também poderão condicionar os resultados obtidos, assim como o sub-reporte associado a inquéritos por entrevista sobre consumos de substâncias psicoativas(86,87). O mesmo se aplica à identificação de acidentes de trabalho, os quais se encontram subnotificados.
Uma vez que se trata de um estudo transversal, apenas poderão ser inferidas associações entre a exposição em estudo e o efeito, e não uma relação causal(67,85,88).
Importa salientar que o INPG 2016/17 foi realizado com o objetivo principal de aferir os hábitos de consumos de substâncias psicoativas na população portuguesa, pelo que a análise da associação com a ocorrência de acidentes de trabalho se reveste de alguma cautela - já que o total de casos reportados é relativamente reduzido(10). O inquérito contempla a população entre os 15 e 74 anos, pelo que é expectável que seja representativo da população em idade ativa. Contudo, existe a possibilidade de os participantes apresentarem características diferentes dos não participantes, questão não contemplada no INPG 2016/17(67).
Infelizmente, o registo de acidentes de trabalho em Portugal não contempla a caraterização do perfil de consumo de substâncias pelo trabalhador. Tampouco o registo de atendimento em urgências hospitalares permite a identificação de casos como sendo acidentes de trabalho (ou a caminho do trabalho). As duas abordagens poderão permitir estudos mais consistentes sobre a associação entre o consumo de álcool e ocorrência de acidentes de trabalho.
CONCLUSÕES
Foi identificada uma associação estatisticamente significativa entre a ocorrência de acidentes de trabalho e o consumo de álcool, na população residente em Portugal, com idades compreendidas entre os 15 e os 74 anos. De acordo com a regressão logística múltipla efetuada, essa associação foi particularmente forte quando os trabalhadores relataram dependência de álcool, ingestão de dez ou mais bebidas alcoólicas em uma única ocasião, consumo excessivo de álcool uma vez por mês ou menos e consumo excessivo de álcool entre duas a quatro vezes por mês. O relato de acidentes de trabalho também esteve associado a baixa escolaridade, turnos rotativos mistos, horários de trabalho intermitentes e menor satisfação no trabalho. Estes são dados relevantes em termos de Saúde Pública e Saúde Ocupacional, sobre os quais existe uma reduzida evidência científica nacional. Os resultados obtidos permitem uma melhor caraterização dos perfis de consumo de álcool associados à ocorrência de acidentes de trabalho e podem ser úteis ao enquadramento de intervenções mais eficazes nos locais de trabalho, em particular intervenções dirigidas à disponibilidade de álcool, sendo relevante a análise do impacto dessas medidas em estudos futuros.