INTRODUÇÃO
A Perturbação Obsessivo-Compulsiva (POC) é uma patologia psiquiátrica de natureza crónica, que pode condicionar um elevado impacto na funcionalidade global dos doentes (1).
Atualmente, a sua prevalência nos Estados Unidos da América (EUA), encontra-se estimada em cerca de 2,3%, apesar de se considerar, segundo a literatura, subestimada, quer pelo secretismo que os doentes mantêm relativamente aos sintomas, quer pela existência de comorbidades que mascarem o quadro psicopatológico (1) (2). Relativamente à idade de início da doença, a média, nos EUA, situa-se nos 19,5 anos e está descrita uma curva bimodal na qual os casos de início mais precoce tendem a ser do sexo masculino e os que surjam em idade adulta, do sexo feminino (2). No que concerne à distribuição da prevalência por sexo, os estudos epidemiológicos não parecem concordantes, sendo que alguns apontam para uma prevalência ligeiramente superior no sexo feminino (1,5 % no sexo feminino e cerca de 1 % no masculino) e outros referem não existir diferença (1) (2).
A etiopatogénese da POC está ainda pouco compreendida, mas são apresentados diversos modelos explicativos. Destaca-se o modelo proposto pelo Yale Child Study Center, que sugere que a POC possa resultar da interação entre fatores genéticos e ambientais. Apesar de ainda não se terem identificado genes que inequivocamente confiram vulnerabilidade, sabe-se que a probabilidade de desenvolver POC, bem como a sua prevalência ao longo da vida, é significativamente superior nos familiares de primeiro grau destes doentes (respetivamente quatro vezes maior probabilidade e 11,7% de prevalência). Em relação aos fatores ambientais, as evidências sugerem um forte contributo destes para a explicação dos casos crónicos de POC (pelo menos metade dos casos), salientando-se os papéis da educação e de experiências vivenciais precoces (1).
Em relação às manifestações clínicas, as obsessões e/ou compulsões são consideradas elementos centrais. As obsessões podem ser pensamentos, imagens e/ou impulsos, de caráter persistente e repetitivo. São experienciadas pelo próprio como desagradáveis e indesejadas, causando elevados níveis de ansiedade. As compulsões, ou rituais, por sua vez, são comportamentos ou atos mentais, que o indivíduo se sente compelido a realizar, como meio de alívio transitório da tensão emocional (1) (2).
A POC pode manifestar-se apenas por obsessões ou compulsões de forma individual, no entanto, em 75% dos casos, estes fenómenos acabam por ocorrer em simultâneo (3). Se as obsessões geram compulsões ou vice-versa, é ainda alvo de debate na comunidade científica (2).
É possível identificar vários subtipos clínicos tendo em conta o conteúdo/temática das obsessões e/ou compulsões, existindo tipicamente uma relação entre estas, nomeadamente: contaminação/limpeza, ordem/simetria, dúvida/verificação e acumulação (1). Há ainda menção, na literatura, a algumas crenças disfuncionais potencialmente subjacentes aos casos de POC, destacando-se a sobrevalorização da dúvida, do perfeccionismo, do medo ou das próprias responsabilidades (1).
A gravidade do quadro é variável e os sintomas podem ser ligeiros ou moderados e consumir uma a duas horas por dia, ou graves e constantes, causando limitações na vida diária que se podem tornar incapacitantes (2) (4).
A POC associa-se frequentemente a comportamentos de evicção, com elevado impacto na funcionalidade e a respostas emocionais/afetivas secundárias, tais como ansiedade, ataques de pânico e sentimentos de repulsa (1) (2).
Os critérios diagnósticos, segundo o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders- 5 (DSM-5), incluem os seguintes: a) presença de obsessões, compulsões ou ambas; b) tempo despendido superior a uma hora por dia, impacto funcional considerável ou mal-estar clinicamente significativo; c) inexistência de outra etiologia (médica, psiquiátrica, iatrogénica ou atribuível ao consumo de substâncias psicoativas ilícitas) para o quadro clínico. Este sistema de classificação acrescenta ainda dois especificadores, importantes na caracterização, o grau de insight e a presença/história de tiques (5).
O curso é geralmente crónico e flutuante e o mais comum é identificarem-se longitudinalmente períodos de melhoria e agravamento (1).
O tratamento de primeira linha inclui estratégias não invasivas como a Terapia Cognitivo- Comportamental (TCC) e a terapêutica com Inibidores da Recaptação de Serotonina (IRS) (4).
Através da análise crítica do caso clínico exposto, pretende-se alertar os leitores para a importância do reconhecimento da doença mental como uma das principais causas de incapacidade para o trabalho. Torna-se assim crucial reconhecer a necessidade de desenvolver estratégias de articulação mais eficazes entre as especialidades de Medicina do Trabalho e Psiquiatria.
DESCRIÇÃO DO CASO
Trata-se de uma profissional do sexo feminino, com 40 anos de idade, casada, a residir com o marido e três filhos, sem antecedentes pessoais ou familiares de relevo. Exerce funções como assistente técnica num hospital central desde 2001, com atuação no atendimento de utentes (programação e marcação de consultas), gestão da comunicação (informação a pedido, atendimento telefónico) e também efetua procedimentos administrativos (processos clínicos, introdução de dados dos utentes).
O início da sintomatologia data aos seus 17 anos, relatando dúvida de natureza obsessiva em relação a tarefas do dia-a-dia, marcada ansiedade e rituais de verificação de manhã e à noite - averiguando repetidamente se tinha desligado o gás, máquinas, televisão ou fechado corretamente as portas e janelas. Ainda assim, apesar de alguns períodos de agravamento desta sintomatologia manteve relativa funcionalidade no trabalho e na vida familiar, ocultando os comportamentos dos colegas e família até aos 38 anos.
Nessa altura, por agravamento do quadro clínico que estaria a condicionar já marcada disfuncionalidade, sobretudo a nível laboral, foi referenciada pelo Médico Assistente à consulta de Psiquiatria. À data, a doente apresentava rituais de verificação que consumiam em média mais de quatro horas por dia. No trabalho relatava uma verificação excessiva de todas as tarefas realizadas, demorando o dobro do tempo comparativamente aos colegas: revia repetidamente os nomes nos processos clínicos, ligava várias vezes ao mesmo doente para confirmar o agendamento da consulta e confirmava o encerramento de todas as portas e janelas antes de sair do local e por mais de dez minutos, tendo inclusivamente começado a fazer registos fotográficos motivada pelo medo das consequências dos seus eventuais erros e de causar a morte de um doente.
Estes comportamentos ocorriam também no domicílio, verificando, para além do já acima descrito, várias vezes ao longo da noite se os seus filhos estariam a respirar, perturbando a higiene do próprio sono. A nível da condução, sentia necessidade de verificar repetidamente as passadeiras por onde tinha passado, demorando cerca de três horas a completar um percurso de quinze minutos, com consequente evitamento desta tarefa. Acrescentava ainda que estes comportamentos surgiam associados a pensamentos intrusivos, dúvida persistente e medo de consequências catastróficas das suas ações, sentindo-se angustiada quando abordada esta temática, por se aperceber do carácter excessivo destes eventos.
Dada a elevada disfuncionalidade global, esteve aproximadamente três meses com certificado de incapacidade temporária para o trabalho.
Assumiu-se como hipótese diagnóstica mais provável a de POC, tendo por base os critérios de diagnóstico do DSM-5, e a doente foi medicada com Paroxetina titulada até à dose 60 mg/dia, com boa tolerabilidade e progressiva melhoria parcial das queixas (menor frequência e intensidade das obsessões e compulsões).
Após o regresso ao trabalho, foi avaliada em consulta de Medicina do Trabalho, tendo sido emitida uma ficha de aptidão condicionada com a recomendação de evicção de tarefas que implicassem atendimento ao público por este ser identificado pela própria como um fator de agravamento da ansiedade. Foi então proposta, atendendo às expetativas da própria, transferência para o arquivo das consultas externas, onde trabalha atualmente- foi-lhe cedido um gabinete individual, encontrando-se resguardada da interação com utentes. Iniciou ainda acompanhamento em psicologia ocupacional no local de trabalho, que mantém até à data.
Atualmente, a doente reconhece benefício global destas intervenções, com redução do tempo despendido e da frequência dos rituais, com retorno à funcionalidade na vida pessoal e laboral.
DISCUSSÃO
O caso descrito segue o curso habitual da maioria das POC, crónico e flutuante e teve início próximo da média de idades descrita na literatura (2). Como é típico nestes casos, os doentes só tardiamente recorrem a ajuda especializada e demoram em média mais de sete anos desde o início dos sintomas até à procura de ajuda, normalmente quando os sintomas se tornam incapacitantes (2).
Os conteúdos quer das compulsões (verificação), quer das obsessões (dúvida patológica), estão entre os mais frequentemente mencionados na literatura, constituindo esta associação um dos subtipos clínicos mais comuns (verificação/dúvida). Em relação aos critérios de diagnóstico utilizados (DSM-5), mais se acrescenta que a doente apresentava um nível de insight bom/razoável, um dos especificadores relevantes na descrição clínica, por se poder associar a uma probabilidade de remissão superior (4).
Salienta-se ainda a existência de instrumentos de medida, tais como a Yale-Brown Obsessive-Compulsive Scale, que, mesmo apesar de não terem sido aplicados neste caso, poderão contribuir para o seguimento mais assertivo dos doentes com POC, uma vez que permitem a caracterização mais detalhada dos sintomas apresentados (6).
A POC consta como uma das dez principais causas de incapacidade de acordo com a Organização Mundial de Saúde (7) e está associada à diminuição da qualidade de vida, podendo comprometer as esferas do trabalho, vida social/lazer e vida familiar/responsabilidades domésticas (2), constituindo assim uma temática relevante a ser abordada em Saúde Ocupacional.
No caso descrito, torna-se bastante evidente o impacto laboral desta patologia, verificando-se: elevado consumo de tempo na realização de tarefas, sobrevalorização das responsabilidades associadas ao posto de trabalho e necessidade de evicção de situações gatilho, resultando num claro prejuízo da produtividade. Um estudo realizado em 2008, em doentes com POC nos EUA, demonstrou que mais de 1/3 dos participantes tinha incapacidade permanente para o trabalho e destes, 82% tinham estado empregados no passado e, cerca de 1/3, mantido cargos de destaque (administrativos ou executivos) (8).
Os Serviços de Saúde Ocupacional, pelo contacto privilegiado com os trabalhadores, desempenham um papel fundamental na identificação das perturbações mentais, acompanhamento e referenciação ou encaminhamento a consultas de especialidade, no âmbito da vigilância da saúde (9). Frequentemente, a expressão clínica das patologias mentais é mais evidente no próprio contexto laboral, sendo o Médico do Trabalho o responsável pelo diagnóstico presuntivo e consequente orientação para a psiquiatria (9). Nesta doente, apesar do seguimento regular em consulta periódica de Medicina do Trabalho, os sintomas nunca foram detetados, possivelmente pelo facto de se ter mantido relativamente funcional e destas queixas poderem ter sido ocultadas pela própria (componente subjetiva de constrangimento), tendo decorrido mais de vinte anos desde o início dos sintomas e o seguimento em consulta de especialidade. No recém-publicado pela Direção Geral da Saúde, Guia Técnico nº 3 - Vigilância da Saúde dos Trabalhadores Expostos a Fatores de Risco Psicossocial no Local de Trabalho, constam algumas linhas orientadoras para a referenciação/orientação de trabalhadores com diagnóstico presuntivo de doença mental. Embora as recomendações não existam de forma individualizada para a POC, perante estas situações, os quadros clínicos deverão ser classificados em graves, moderados ou ligeiros e a atuação do Médico do Trabalho deverá ser em consonância com a gravidade: nos casos graves, prevê-se o encaminhamento para o Serviço de Urgência e nos moderados para os Cuidados de Saúde Primários (Médico de Família ou ACEs da área de residência) (9). Interessa ressalvar que esta classificação de gravidade tem por base um conjunto de critérios também sugeridos pelo referido Guia (como o tipo de patologia em causa), existindo algumas ferramentas que poderão ser aplicadas pelo Médico do Trabalho para auxiliar nesta distinção, nomeadamente escalas de incapacidade- Escala de Incapacidade de Sheehan e a Escala Global de Avaliação do Funcionamento. Independentemente da gravidade, é ainda recomendada a articulação com o(s) profissional(is) de saúde mental que eventualmente acompanhem a situação, de modo a conhecer pormenorizadamente o estado clínico do trabalhador e otimizar o processo de vigilância da saúde do mesmo (9).
Uma estratégia terapêutica conjunta, dirigida quer à gestão dos sintomas, quer às suas consequências, pode ter um efeito sinérgico e acelerar o processo de recuperação (10). O papel do Médico do Trabalho poderá passar essencialmente pela minimização destas consequências para o trabalhador, ajustando as condições do trabalho às limitações identificadas e impostas pela patologia: condicionar a aptidão, propor recomendações dirigidas na ficha de aptidão, realocar o trabalhador a um posto de trabalho mais protegido e em última instância determinar a inaptidão para determinadas funções.
CONCLUSÃO
O acompanhamento pela Psiquiatria, em associação às alterações laborais propostas pelo Médico do Trabalho, parece ter contribuído para uma melhoria substancial da funcionalidade global e em particular, laboral.
Afigura-se importante sensibilizar os profissionais de saúde para este tipo de situações, que configuram quadros crónicos e potencialmente incapacitantes, que possam eventualmente culminar numa incapacidade absoluta para o trabalho. Assim, torna-se essencial promover uma articulação eficaz entre as especialidades envolvidas na prestação de cuidados de saúde aos trabalhadores, com enfoque numa abordagem holística que vise a diminuição do impacto laboral da patologia mental.