INTRODUÇÃO
As patologias oncológicas hematopoiéticas podem estar associadas a algumas condições de trabalho e/ou fatores de risco. A bibliografia sobre o tema é escassa e, por isso, os conhecimentos associados não estão muito desenvolvidos entre os profissionais da saúde e segurança ocupacionais, bem como entre trabalhadores/chefias/empregadores. Pretende-se com esta revisão resumir o que de mais recente e pertinente se publicou sobre o tema.
METODOLOGIA
Em função da metodologia PICo, foram considerados:
-P (population): trabalhadores expostos a fatores de risco eventualmente cancerígenos a nível hematopoiético.
-I (interest): reunir conhecimentos relevantes sobre risco oncológico hematopoiético de alguns contextos laborais
-C (context): saúde e segurança ocupacionais
Assim, a pergunta protocolar será: Quais as tarefas e/ou fatores de risco laborais que podem potenciar o risco de patologia cancerígena hematopoiética?
Foi realizada uma pesquisa em janeiro de 2022 nas bases de dados “CINALH plus with full text, Medline with full text, Database of Abstracts of Reviews of Effects, Cochrane Central Register of Controlled Trials, Cochrane Database of Systematic Reviews, Cochrane Methodology Register, Nursing and Allied Health Collection: comprehensive, MedicLatina e RCAAP”.
No quadro 1 está descrita a pesquisa realizada e no quadro 2 estão resumidas as caraterísticas metodológicas dos artigos selecionados.
Motor de busca | Password 1 | Password 2 e seguintes, caso existam | Critérios | Nº de documentos obtidos | Nº da pesquisa | Pesquisa efetuada ou não | Nº do documento na pesquisa | Codificação inicial | Codificação final |
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RCAAP | Cancro hematopoiético | -título e/ ou assunto |
0 | 1 | não | ||||
Leucemia | 833 | 2 | não | ||||||
Trabalho | 0 | 3 | não | ||||||
Linfoma | 514 | 4 | não | ||||||
Trabalho | 0 | 5 | não | ||||||
EBSCO (CINALH, Medline, Database of Abstracts and Reviews, Central Register of Controlled Trials, Cochrane Database of Systematic Reviews, Nursing & Allied Health Collection e MedicLatina) |
Hematopoietic cancer | -2012 a 2022 -acesso a resumo -acesso a texto completo |
1739 | 6 | não | ||||
occupational | 47 | 7 | sim | 1 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 18 19 20 23 25 27 35 37 38 39 40 42 |
CH1 CH2 CH3 CH4 CH5 CH6 CH7 CH8 CH9 CH10 CH11 CH12 CH13 CH14 CH15 CH16 CH17 CH18 CH19 CH20 CH21 CH22 CH23 CH24 CH25 CH26 |
5 17 9 - - - - 16 - 1 14 - 18 6 7 - 2 - 3 20 - 13 - 12 8 19 |
Artigo | Caraterização metodológica | País | Resumo |
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1 | Artigo de Revisão | Brasil | O estudo pretendeu descrever o contexto laboral dos indivíduos diagnosticados com leucemia, entre 2007 e 2011, numa amostra de quase 8000 pacientes. Ainda que apenas existisse informação relativa à profissão em 52% dos casos, percebeu-se que esta patologia era mais frequente em agricultores, pescadores e trabalhadores florestais. |
2 | Artigo original | EUA | Através de uma amostra de quase 19.000 casos de leucemia, percebeu-se que esta era mais frequente em indivíduos que trabalhavam na construção civil, especificando os subtipos mais frequentes e quais as subespecializações mais envolvidas. |
3 | Suécia | Os autores analisaram a incidência de alterações oncológicas em limpa-chaminés suecos, de 1958 a 2006. Encontraram-se 813 cancros, versus 626 que seriam espetáveis para a população geral, alguns dos quais a nível hematopoiético. | |
4 | Paquistão | Trata-se de um estudo de caso-controlo em cinco hospitais desse país, de maio a setembro de 2014. Os autores concluíram que o risco de leucemia era superior nos trabalhadores da indústria química. | |
5 | Suíça | Esta investigação pretendeu analisar o risco de cancro pediátrico em familiares cujos pais estivessem expostos ocupacionalmente a pesticidas, entre 1990 e 2015. Parece existir um aumento da patologia oncológica. | |
6 | Brasil | Neste estudo realizou-se uma análise às caraterísticas maternas de crianças com leucemia e verificou-se que esta era mais prevalente na descendência exposta a alguns agentes químicos (agricultura, indústria química e petroquímica), cerca de 2,2 vezes mais. | |
7 | EUA e Rússia | Nesta referência bibliográfica está inserido um estudo de caso controlo numa coorte de quase 111.000 funcionários de limpeza da Central Nuclear de Chernobil, entre 1986 e 2006. Concluiu-se que a exposição a radiação ionizante, mesmo que em baixa dose, pode potenciar o risco de leucemia. | |
8 | Canadá | Pretendeu-se investigar a eventual relação entre o trabalho agrícola e os cancros hematopoiéticos neste país, entre 1992 e 2010. Percebeu-se que a exposição a pesticidas pode ter aumentado esse risco. | |
9 | Reino Unido | Se o risco de leucemia versus exposição a radiação ionizante está claro com doses elevadas, o mesmo não acontece com doses inferiores e mais prolongadas no tempo. O risco parece estar acrescido e haver algum efeito dose-resposta, o que é compatível com algumas das conclusões dos estudos equivalentes. | |
10 | EUA, Holanda e China | Ainda que o benzeno seja considerado como agente etiológico eventual de leucemia, o mecanismo não está descrito com clareza, ainda que pareça envolver o stress oxidativo e os seus metabolitos. | |
11 | Noruega, Reino Unido e Itália | Neste documento houve o objetivo de examinar o risco de cancro hematopoiético associado à exposição ao benzeno, em explorações marítimas de petróleo, entre 1999 e 2011, numa coorte de quase 25.000 trabalhadores noruegueses. Parece existir uma relação entre ambos. | |
12 | Artigo de Revisão | EUA | O benzeno pode causar vários cancros hematopoiéticos, mesmo a níveis abaixo dos valores máximos permitidos. Pretendeu-se descrever os eventuais mecanismos etiológicos associados, nomeadamente alterações na apoptose e stress oxidativo. |
13 | EUA | O benzeno poderá levar à anemia aplástica e/ou alguns tipos de leucemia, nomeadamente através da ação dos seus metabolitos | |
14 | EUA | Este artigo objetivou analisar a eventual capacidade do formaldeído causar alterações cancerígenas hematopoiéticas, analisando o que foi publicado entre 1966 e 2012. Os autores concluíram que não existem evidências robustas. | |
15 | Artigo Original | Itália | Este documento também pretendeu estudar o mesmo agente químico, entre 1947 e 2011, numa amostra de quase 71.000 pessoas. A conclusão foi de que parece existir potencialmente este risco oncológico. |
16 | Itália | Neste projeto de caso-controlo analisou-se a eventual relação entre a leucemia e os agentes químicos existentes na poluição atmosférica de uma zona industrial no norte de Itália; o risco em causa parece ficar potenciado. | |
17 | China | Segue-se outro estudo de caso-controlo, em relação ao risco de leucemia na descendência de progenitores expostos a REM pouco intensa. Não se encontrou evidência de esse risco estar aumentado. | |
18 | Reino Unido | Os autores aqui inseridos desejaram investigar o risco de leucemia e as REM pouco intensas em mais de 73.000 funcionários, entre 1973 e 2010. A conclusão foi equivalente ao estudo anterior. | |
19 | EUA | No documento em causa desenvolveu-se a investigação relativa ao risco oncológico em trabalhadores a exercer em Centrais Nucleares, numa coorte de mais de 119.000 funcionários. O risco parece estar acrescido, tal como na generalidade dos estudos equivalentes. | |
20 | Finlândia, Noruega, Islândia, Suécia e Dinamarca | Este projeto de caso-controlo pretendeu avaliar o risco de cancro hematopoiético em trabalhadores com turnos noturnos rotativos, numa amostra estudada entre 1961 e 2005, na Finlândia. Concluiu-se que não surgiu evidência dessa associação. |
CONTEÚDO
Noções gerais
Em ambiente laboral os agentes químicos mais relevantes em relação à leucemia são o benzeno, tetracloroetileno, estireno, clorofenois, aminas aromáticas, creosoto, crómio, arsénio, óxido de etileno, asbestos, agentes antineoplásicos e pesticidas. Em alguns ambientes de trabalho também podem ser relevantes as radiações ionizantes e os campos eletromagnéticos (1).
A International Agency for Research on Cancer (IARC) identificou mais de cem agentes químicos carcinogénicos e, destes, cerca de um quarto aumenta o risco de leucemia e linfoma. Esta entidade classifica o butadieno e o formaldeído (usados na indústria da produção de plástico, borracha e têxtil, por exemplo), como inseridos no grupo 1, ou seja, cancerígenos para humanos (1); ela publicou ainda que o benzeno, óxido de etileno, alguns pesticidas e o formaldeído como provavelmente ligados à leucemia (grupo 2A); bem como alguns tipos de radiação (2).
Associações a alguns setores profissionais
Os funcionários da construção (numa coorte norte-americana de quase 19.000 trabalhadores) apresentaram risco acrescido de leucemia global, salientando até alguns subtipos (leucemias aguda linfocítica, mielóide aguda e crónica) (2).
A IARC salientou a existência de um maior risco hematopoiético relacionado com as atividades profissionais associadas à construção naval, produção de calçado e borracha, ainda que as conclusões não sejam consensuais entre investigadores (2).
Por sua vez, o trabalho de limpeza de chaminés demonstrou estar associado a todos os tipos de cancro hematopoiético (3).
Entre as patologias oncológicas assistidas num hospital paquistanês, por exemplo, verificou-se que a leucemia estava associada à produção de agentes químicos (p˂0,05), fábricas de refinação dos combustíveis (p=0,012) e proximidade de zonas onde se praticava a agricultura (p=0,069), com destaque para os pesticidas (4). Já numa coorte brasileira, por sua vez, verificou-se que os setores profissionais mais associados à leucemia foram a agricultura, atividades florestais e pesca (1).
Associações a fatores de risco específicos
-Pesticidas
Crianças cujos pais interajam profissionalmente com pesticidas durante a gestação e/ou após o nascimento, através de poeiras e/ou de contato com a roupa, apresentam maior incidência de cancros (sobretudo leucemia) (5) (6). Alguns pesticidas foram classificados pela IARC como carcinogénicos para humanos (5). Um estudo especificou que mães com exposição a estes produtos apresentam descendência com risco superior de leucemia na magnitude de cerca de oito vezes mais (7). Outros investigadores publicaram que este tipo de agentes químicos potencia o risco de cancro hematopoiético, especificando até diversos subtipos de leucemia (mieloide aguda e crónica e linfocítica crónica), mencionado também o mieloma múltiplo (8).
-Solventes
Mães com exposição a solventes apresentam descendência com risco superior de leucemia, na magnitude de cerca de oito vezes mais (7).
O benzeno associa-se a algumas alterações mielodisplásicas (9) e está na constituição dos combustíveis fósseis (10). Encontrou-se uma relação entre a exposição cumulativa e o risco de leucemia mielóide aguda e crónica linfocítica, bem como mieloma múltiplo, mesmo que em doses baixas (11), por vezes abaixo de 1 ppm (12); bem como anemia aplástica, pancitopenia, linfoma (13) e outras síndromes mielodisplásicas (12) (13). A IARC classificou-o como carcinogénico para humanos, eventualmente associado às leucemias mieloide aguda (11) (12)/linfoblástica aguda e linfocítica crónica, tal como mieloma múltiplo e linfoma não hodking (11). Contudo, o mecanismo exato não está devidamente esclarecido, ainda que se suponha que a etiologia passe pela indução de alterações genéticas/cromossómicas nas células hematopoiéticas, através da interferência nos mecanismos de apoptose e diferenciação celular, devido ao stress oxidativo causado por alguns dos seus metabolitos (10) (12).
O formaldeído, por sua vez, aumenta o risco de patologia oncológica linfohematopoiética segundo alguns estudos; contudo, outros discordam. É usado como biocida, conservante ou como matéria-prima na produção de outros agentes químicos (14) (15) (sobretudo nas indústrias do plástico, têxtil, construção civil, produção de colas e cosmética; é também emitido por tapeçarias e veículos motorizados (14); bem como na indústria da produção de móveis e outros produtos com madeira e artigos médicos (gerais, dentários e veterinários) (15). A IARC classificou-o como cancerígeno para humanos (grupo 1), sobretudo em função do carcinoma nasofaríngeo e hematológico (14) (15).
-Fármacos citostáticos
Alguns profissionais de saúde estão expostos a agentes oncológicos como fármacos antineoplásicos. Em alguns casos o risco da via cutânea parece ser mais relevante que a inalatória (16). Aliás, os fármacos utilizados para tratar a leucemia, podem originar outras alterações mielodisplásicas (13).
-Campos eletromagnéticos
A IARC classificou os campos magnéticos de muito baixa frequência como possivelmente cancerígenos (grupo 2B); sendo que alguns estudos fazem associação com leucemia nas crianças expostas (17), com um aumento discreto do risco; no entanto, de realçar que os estudos nem sempre consideraram os mesmos subtipos de leucemia. Contudo, na realidade, outros consideram que não se encontrou evidência clara entre a leucemia e a exposição a campos eletromagnéticos (18).
-Radiação Ionizante
Enquanto a associação entre leucemia e a radiação aguda intensa está bem estabelecida, o mesmo não ocorre para doses menores, mesmo que com exposição prolongada. Numa coorte de mais de cinco milhões de indivíduos concluiu-se que o risco de leucemia fica aumentado também com radiação de menor intensidade, mas prolongada no tempo; como nos trabalhadores de centrais nucleares (sem acidentes) (9)- por exemplo, numa coorte de mais de 119.000 trabalhadores deste setor verificou-se um risco discreto aumentado de leucemia e outras alterações hematológicas oncológicas (como o mieloma múltiplo) (19); contudo, outros estudos parecidos não chegaram a essa conclusão (7).
-Cronodisrrupção
Não parece haver associação entre os turnos noturnos e rotativos e os cancros hematopoiéticos; ainda que a IARC considere que a cronodisrrupção é provavelmente carcinogénica para humanos (grupo 2A), de acordo com os dados obtidos através da experimentação animal, devido às alterações na glândula pineal (20).
DISCUSSÃO/ CONCLUSÃO
Existem alguns fatores de risco com associação suspeita ou comprovada em relação à etiologia de algumas patologias oncológicas hematopoiéticas; a bibliografia consultada destaca sobretudo alguns agentes químicos (benzeno, tetracloroetileno, estireno, clorofenois, aminas aromáticas, creosoto, arsénio, asbestos, alguns agentes antineoplásicos e pesticidas), bem como a radiação ionizante/campos eletromagnéticos. É fundamental que os profissionais do setor adquiram conhecimentos mínimos relativos ao que a escassa bibliografia descreve, de forma a ser possível planear medidas de proteção coletiva e individual que consigam atenuar o risco. Seria também interessante que algumas equipas de saúde e segurança ocupacionais, a exercer em instituições com trabalhadores expostos a estes fatores de risco, conseguissem investigar o tema, lançando para a bibliografia dados inovadores e/ou mais completos dos que o que estão presentemente publicados.