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Revista Internacional CONSINTER de Direito - Publicação Oficial do Conselho Internacional de Estudos Contemporâneos em Pós-Graduação

versão impressa ISSN 2183-6396versão On-line ISSN 2183-9522

Revista Internacional CONSINTER de Direito  no.12 Vila Nova de Gaia jun. 2021  Epub 30-Jun-2021

https://doi.org/10.19135/revista.consinter.00012.04 

Artigos Originais

NOVAS TECNOLOGIAS E O FUTURO DAADVOCACIA NO BRASIL

NEW TECHNOLOGIES AND THE FUTURE OFADVOCACY IN BRAZIL

Natália Cristina Chaves1
http://orcid.org/0000-0003-2914-668X

Laurence Duarte Araújo Pereira2
http://orcid.org/0000-0001-8147-7553


Resumo

O avanço tecnológico tem transformado a forma como os serviços jurídicos são prestados. A inovação tem sido o motor a impulsionar o surgimento de um novo modelo de advocacia, diferente do tradicional, com a ativa participação de startups jurídicas, conhecidas como lawtechs ou legaltechs. No Brasil, esse movimento, voltado para uma maior abertura no exercício da advocacia, inclusive no sentido de sua mercantilização, colide com a sua rígida regulação e com o próprio entendimento do Poder Judiciário. O presente artigo busca traçar os desafios da advocacia no Brasil, discorrendo sobre a regulação existente e os entraves impostos a esse novo modus operandi do exercício da atividade, acelerado com a pandemia do COVID-19. Num ambiente de negócios cada vez mais virtualizados e de amplo acesso às ferramentas tecnológicas, a flexibilização na forma de se exercer a atividade jurídica, admitindo-se, inclusive, a possibilidade de sua mercantilização, é uma tendência já observada em outros países. Resistir a esse movimento significa caminhar em descompasso com a evolução da advocacia, na prática.

Palavras-Chave: Tecnología; Futuro; Advocacia; Lawtech; Mercantilização

ABSTRACT

Abstract: Advance in technology has transformed the way legal services are provided. Innovation has been the engine driving the rising of a new model of law practice, different from the traditional one, with the active participation of legal startups, known as lawtechs or legaltechs. In Brazil, this movement, focused on more flexibilization in law practice, including its commercialization, clashes with its rigid regulation and with the Judiciary's understanding. This article outlines the challenges of advocacy in Brazil, discussing the existing regulation and the limits imposed on this new modus operandi of the activity, accelerated by the pandemic of COVID-19. In an increasingly virtualized business environment and with broad access to technological tools, flexibility in the way of exercising legal activity, even admitting its commercialization, is a trend already observed in other countries. Resisting to this movement means moving out of pace with the evolution of law practice.

Keywords: Technology; Future; Lawyers; Lawtech; Commoditization

1 INTRODUÇÃO

O impacto da tecnologia no âmbito dos serviços jurídicos no Brasil é objeto, cada vez mais frequente, de debates em diversos setores da sociedade. Academia, entidades representativas de classe, governo e Poder Judiciário, entre outros segmentos, têm discutido as transformações que o avanço tecnológico exponencial do nosso tempo tem trazido para o mundo do direito e o que isso significa para o futuro da advocacia.

O presente artigo busca contribuir para esse debate, confrontando a regulação existente no Brasil com o novo modelo de advocacia decorrente desse ambiente de inovações tecnológicas, marcado pela presença de startups3 jurídicas, conhecidas como lawtechs4 ou legaltechs. Como se verá, a legislação vigente oferece entraves a esse movimento de fusão entre direito e tecnologia, voltado para soluções tecnológicas que transformam positivamente a rotina jurídica, tanto daqueles profissionais que exercem a advocacia quanto dos destinatários finais desses serviços.

De um lado, há a preocupação com o resguardo do exercício de uma atividade intelectual cuja regulação foi insculpida numa era não digitalizada, de modo a preservar a sua identidade e o seu papel na sociedade. Ainda que ferramentas tecnológicas possam contribuir para a otimização dos serviços jurídicos, não são substitutas de advogados. De outro lado, há o imperativo de adaptação ao novo paradigma trazido por essas inovações, o qual proporciona maior eficiência nos resultados e facilita o acesso à justiça.

Buscar um ponto de equilíbrio entre esses dois polos é o verdadeiro desafio.

2 O TRATAMENTO JURÍDICO DA ADVOCACIA NO BRASIL

O Código Civil brasileiro, inspirando-se no Código Civil italiano de 1942, em seu artigo 966, dividiu as atividades econômicas em empresárias e não empresárias. De acordo com o caput de aludido dispositivo legal, empresário é “quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços5. O parágrafo único do referido dispositivo legal, por sua vez, excepciona, do conceito de empresário, as profissões intelectuais, ressalvando os casos em que o “exercício da profissão constituir elemento de empresa”6.

Não obstante o elemento de empresa tenha se tornado conceito de difícil elaboração e alvo de discussão acadêmica, em geral, as atividades intelectuais são tratadas como não empresárias pela legislação pátria. Rachel Sztajn, quanto a esse ponto, sustenta que a legislação pátria tratou, como empresária, a atividade que o direito originalmente tratava como mercantil ou comercial. Por outro lado, aludida legislação tratou como não empresária a atividade que, ainda que com profissionalidade, seria de natureza civil ou não mercantil7.

No campo societário, o Código Civil também manteve a dicotomia, dividindo as sociedades em empresárias e não empresárias, estas últimas também chamadas de sociedades simples (art. 982)8.

Partindo-se de mencionados dispositivos legais, verifica-se, portanto, que, no Brasil, a advocacia, enquanto profissão intelectual, como regra, se enquadra na esfera das atividades não empresárias. Contudo, o Código Civil não obstou a sua organização de forma empresarial, ainda que em caráter excepcional.

Não obstante o parágrafo único do artigo 966 do Diploma Civil admita, a partir da configuração do exercício da profissão como elemento de empresa, que atividades intelectuais sejam consideradas empresárias, a Lei n. 8.906/1994, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia, obstou essa faculdade, no âmbito da advocacia. É o que se infere da conjugação de seus artigos 15 e 16 transcritos na sequência:

Art. 15. Os advogados podem reunir-se em sociedade simples de prestação de serviços de advocacia ou constituir sociedade unipessoal de advocacia, na forma disciplinada nesta Lei e no regulamento geral(...)

Art. 16. Não são admitidas a registro nem podem funcionar todas as espécies de sociedades de advogados que apresentem forma ou características de sociedade empresária, que adotem denominação de fantasia, que realizem atividades estranhas à advocacia, que incluam como sócio ou titular de sociedade unipessoal de advocacia pessoa não inscrita como advogado ou totalmente proibida de advogar. (...)9

O Estatuto da Advocacia, portanto, veda, expressamente, a possibilidade de que a advocacia, no Brasil, seja prestada de forma empresarial, tanto pela limitação ao tipo societário (sociedade simples), quanto pela restrição ao nome (vedação à denominação de fantasia), à cumulação de atividades (objeto social limitado à advocacia) e à qualidade dos sócios (só podem ser advogados).

Daí decorrem outras restrições à mercantilização, ligadas às estratégias de captação de clientes, publicidade, cobrança de honorários advocatícios, entre outras previstas no Estatuto da Advocacia e/ou no Código de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil.

Na esteira dessas restrições, a Lei n. 8.906/1994 considera, em seu artigo 34, como infrações disciplinares, os atos de: “manter sociedade profissional fora das normas e preceitos estabelecidos nesta lei” (inciso II); “valer-se de agenciador de causas, mediante participação nos honorários a receber” (inciso III); “angariar ou captar causas, com o seu a intervenção de terceiros” (IV); manter conduta incompatível com a advocacia (inciso XXXV).

O Código de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil, cuja versão mais recente é a Resolução n. 02/2015 da Ordem dos Advogados do Brasil, vai além da Lei n. 8.906/1994 no sentido de impor restrições quanto à mercantilização da profissão e, portanto a uma maior abertura no exercício da profissão, a começar pelo seu artigo quinto, o qual estabelece que “o exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização10.

Quanto à publicidade, a regra geral do Código de Ética, prevista em seu artigo 39, é a de que “A publicidade profissional do advogado tem caráter meramente informativo e deve primar pela discrição e sobriedade, não podendo configurar captação de clientela ou mercantilização da profissão”. Daí decorrem vedações à publicidade por rádio, cinema e televisão, outdoors ou similares, inscrições em espaços públicos, divulgação em conjunto com outras atividades, entre tantas outras observadas, com frequência, em outros países como Canadá e Estados Unidos11.

Ainda quanto a esse aspecto, o Código de Ética exige ao advogado que se abstenha de induzir a litigância, em suas mídias sociais, como forma de captar clientela12 e que seja, de um modo geral, comedido em aparições, declarações públicas, apresentação de sua pessoa e de seu escritório, nos termos do artigo 42 e seguintes13, sendo, ainda, permitido, nos termos do artigo 45 do mesmo Código, o patrocínio a eventos e a circulação de material cultural, desde que de interesse dos advogados e adstrito a clientes14.

No tocante à publicidade online, o Código de Ética aqui tratado não é específico quanto a publicações em redes sociais, impulso a postagens, posicionamento em indexadores (como o SEO do Google)15, técnicas comumente utilizadas atualmente. Todavia, dispõe, no seu artigo 46, que “a publicidade veiculada pela internet ou por outros meios eletrônicos deverá observar as diretrizes estabelecidas neste capítulo”. O parágrafo único do artigo citado, por sua vez, abre a possibilidade de envio de mensagens a destinatários certos por telefone ou internet, desde que não implique o oferecimento de serviços ou captação de clientela.

Ao tratar dos honorários advocatícios, o Código de Ética preceitua, em seu artigo 52, que o crédito por honorários, seja do advogado autônomo ou de sociedade, não autoriza o saque de duplicatas ou de qualquer outro título de natureza mercantil, podendo apenas ser emitida fatura com base no contrato de prestação de serviços, a qual não poderá ser protestada16.

A leitura conjugada e sistemática dos dispositivos legais supracitados conduzem à inequívoca conclusão quanto à rigidez do ordenamento jurídico brasileiro, no tocante ao exercício da advocacia, obstaculizando a cumulação da prestação de serviços jurídicos com serviços de outras áreas, mais consentâneas com a complexidade das relações jurídicas na era digital, a potencialização de captações, mediante o uso de ferramentas digitais, além da captação de recursos no mercado de capitais, propiciando uma organização empresarial da atividade e possibilitando um melhor aproveitamento das inovações que têm surgido no mercado jurídico.

A despeito dos obstáculos decorrentes da legislação em vigor, será cada vez mais difícil conter esse movimento disruptivo no mercado jurídico, o que pode ser constatado a partir dos novos modelos de negócio e de ferramentas tecnológicas já existentes na prática.

A propósito, com a pandemia do COVID-19, que forçou a implementação e/ou a sofisticação dos serviços jurídicos na modalidade virtual, esse movimento tende a se intensificar.

3 INOVAÇÕES NO MERCADO JURÍDICO

Um dos mais conhecidos modelos de negócios que despontaram a partir do avanço tecnológico foi o de serviços jurídicos por meio das startups jurídicas conhecidas como lawtechs ou legaltechs.

No mercado de aviação, por exemplo, startups passaram a oferecer a clientes que tivessem voos atrasados ou cancelados, ou, ainda, que tivessem suas bagagens extraviadas, a possibilidade de buscar ressarcimento em plataformas online de resolução de conflitos, independentemente da constituição de um advogado e/ou da propositura de uma ação judicial.

Uma empresa chinesa que atua nesse segmento noticiou, em 2019, que focaria seus negócios no Brasil, estimando que, apenas naquele ano, 2 (dois) milhões de passageiros teriam direito a indenizações dessa natureza17.

Startups nesse segmento sustentam que, a despeito da atuação em prol de passageiros de companhias aéreas, não seriam escritórios de advocacia e que o modelo de negócios adotado seria benéfico aos consumidores. Contudo, essa não é a visão da Ordem dos Advogados do Brasil, que tem movido processos em face de referidas startups. A seccional do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, propôs sete ações civis públicas contra startups do ramo18, por entender que tal modelo de negócio implicaria mercantilização do exercício da advocacia.

O Juízo da 32ª Vara Federal do Rio de Janeiro determinou, em sede de tutela de urgência, o fechamento de um site de startup desse ramo sob o seguinte fundamento:

Depreende-se que o modo de divulgação dos serviços caracteriza a típica mercantilização do exercício da advocacia, o que não pode prevalecer. É de se considerar ainda que os referidos anúncios não possuem apenas finalidade informativa, mas o objetivo de captar clientes, o que importa em expressa afronta à norma legal.19

Em sede recursal, o entendimento foi mantido, sob argumento similar:

O procedimento narrado guarda muita semelhança com a mercantilização da advocacia, visto que a demanda judicial passa se tornar apenas uma moeda de troca para auferir de valores, seja por parte do usuário cedente, seja por parte da empresa que lucra com a percepção do restante da indenização de que pode (ou não) um passageiro ter direito. Ainda que sejam contratados advogados terceirizados para o ajuizamento da demanda judicial buscando a indenização, o serviço da empresa implica indiretamente a captação de clientela, vedado nos termos do Código de ética da OAB (art. 7º)20.

Em outra ação civil pública, foi deferida tutela de urgência para determinar que uma startup do ramo em comento se abstivesse de divulgar serviços próprios da advocacia, sob o fundamento de que o seu modelo de negócios não corresponderia a “mera função mediadora de conflitos, e sim defende os interesses de uma das partes (o consumidor) contra a outra (companhias aéreas), em busca de uma ‘justa indenização’ (ev. 1, comp14, doc. 15)21.

Diante da mobilização contra aludidas startups, elas se organizaram na Associação de Defesa dos Direitos dos Passageiros Aéreos (ADDPA), a qual defende o modelo de negócios e afirma que este se dá de modo extrajudicial, não se tratando de serviço jurídico, mas, sim, de mediação22.

Em 2020, a OAB notificou diversas lawtechs, voltadas para o mercado da aviação, denunciando uma suposta concorrência desleal com advogados23. Essas lawtechs são apenas um exemplo de nova estruturação dos serviços ofertados no mercado jurídico, a partir dos avanços tecnológicos.

Outro exemplo diz respeito ao uso de softwares para a realização de pesquisas jurisprudenciais, traçar o perfil de Tribunais, de modo a identificar os argumentos jurídicos mais convincentes, bem como para auxiliar na elaboração de contratos e de peças processuais.

Em 2017, a 1ª Turma de Ética Profissional da OAB, Seccional de São Paulo, publicou entendimento no sentido de que a utilização de robôs para auxiliar advogados na produção de peças processuais seria limitada pela vedação à mercantilização da advocacia e a captação ilegal de clientela24.

Na mesma linha, sobre o emprego de robôs na advocacia, em 2018, a OAB, Seccional do Rio de Janeiro, em conjunto com o IAB - Instituto dos Advogados Brasileiros, emitiu nota afirmando que:

O IAB Nacional e a OAB/RJ reafirmam que a ADVOCACIA É ATIVIDADE PRIVATIVA DE ADVOGADOS E ADVOGADAS habilitados e registrados nas seccionais do sistema OAB, devendo ser investigada a criação de um sistema alternativo de solução privada de acesso à Justiça.

O IAB Nacional e a OAB/RJ repudiam o uso indevido e despropositado de mecanismos que tentam explorar um dos efeitos mais danosos provocados pela chamada Reforma Trabalhista, qual seja, o do acesso à Justiça e ao Judiciário Trabalhista por aqueles que dependem da sua gratuidade.

A robotização de serviços jurídicos, mediante o uso de inteligência artificial, vem sendo relatada como um aspecto de transformação profunda da advocacia. Escritórios de advocacia já utilizam, hoje, softwares avançados para a realização de processos de discovery, isto é, revisão legal de grande volume de documentos, de maneira mais veloz e eficiente do que aquela realizada por seres humanos25.

Já existem, hoje, pessoas jurídicas especializadas na comercialização dos mais variados softwares para o mercado jurídico, abarcando realização de due dilligences, análise de contratos, análise comparada de legislações, além da própria automação de documentos e peças processuais26.

Se, dentro dos escritórios de advocacia, o uso de softwares e de outras ferramentas tecnológicas tem sido cada vez mais frequente, modificando a relação do advogado com o exercício da advocacia, no Poder Judiciário, as transformações são revolucionárias, começando pelo processo eletrônico e passando pela prática, cada vez mais intensificada, de atos processuais em ambientes virtuais.

Nessa seara, a Lei n. 11.419/2006, que dispõe sobre a informatização do processo judicial, foi um marco revolucionário. Na mesma linha, o Código de Processo Civil brasileiro de 2015 também trouxe diversas disposições relativas à prática de atos processuais em ambientes virtualizados.

Esse movimento acabou se acelerando com a COVID-19. A necessidade de adoção de medidas de distanciamento social acabou por impulsionar a virtualização dos serviços jurídicos e dos processos, bem como o uso de ferramentas digitais.

Em 2020, o Tribunal Superior do Trabalho, por exemplo, publicou a Recomendação n. 8/GCGJT, que permitiu a efetivação do jus postulandi por jurisdicionados via whatsapp, e que foi vista, por alguns advogados, como forma de violar a sua atividade privativa27.

Nesse mesmo sentido, também em 2020, o Supremo Tribunal Federal autorizou, nos Autos do Ato Normativo do CNJ n. 0007913-62.2020.2.00.0000, os Tribunais pátrios a implementarem o “Juízo 100% Digital” no Poder Judiciário, pelo qual “todos os atos processuais serão exclusivamente praticados por meio eletrônico e remoto por intermédio da rede mundial de computadores28.

Como se vê, cada vez mais, direito e tecnologia se interconectam.

Atualmente, a Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs - AB2L - enumera, em seu website29, mais de 100 (cem) entidades, entre elas, pessoas jurídicas já consolidadas e startups na área do direito, todas focadas, de alguma maneira, em revolucionar a prestação de serviços jurídicos, repensando a estrutura tradicional dos escritórios de advocacia e propondo soluções e ferramentas inovadoras, voltadas para facilitar e aprimorar o exercício da atividade, reduzindo custos e aumentando eficiência.

Hoje, as lawtechs brasileiras são agrupadas, pela AB2L, em diversas categorias, tais como analytics e jurimetria, automação e gestão de documentos, compliance, conteúdo jurídico, educação e consultoria, extração e monitoramento de dados públicos, redes de profissionais, regtech (que atua no cumprimento de exigências regulatórias), resolução de conflitos online, taxtech, o que demonstra a amplitude da influência tecnológica na advocacia.

Algumas lawtechs já foram incentivadas com consideráveis investimentos financeiros, como é o caso de lawtechs focadas na ampliação da eficiência de execuções judiciais e na resolução de conflitos online30.

A propósito das plataformas de resolução de conflitos online, cita-se a notória experiência do Mercado Livre, que afirma ter reduzido 98,9% (noventa e oito vírgula nove por cento) de judicialização dos conflitos originados de transações realizadas no seu site, a partir de um sistema de resolução de disputas online, no qual o comprador e o vendedor negociam por meio de um chat31.

Não há dúvidas, portanto, de que se está diante de um caminho sem volta, cujos reflexos demandam um repensar da regulação da advocacia.

4 O OLHAR DOS TRIBUNAIS BRASILEIROS

Instados a decidir sobre casos que envolviam a discussão em torno da natureza da atividade advocatícia (atividade empresária ou não empresária), ou ainda, sobre a possibilidade de sua mercantilização, os Tribunais pátrios reforçaram o entendimento no sentido da vedação à mercantilização da profissão, atendo-se a uma visão mais estrita da advocacia.

A propósito, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça já decidiu pela impossibilidade de escritórios de advocacia serem caracterizados como sociedades empresárias em casos de dissolução parcial de sociedades, impactando nos critérios de apuração de haveres:

As sociedades de advogados são sociedades simples marcadas pela inexistência de organização dos fatores de produção para o desenvolvimento da atividade a que se propõem. Os sócios, advogados, ainda que objetivem lucro, utilizem-se de estrutura complexa e contem com colaboradores nunca revestirão caráter empresarial, tendo em vista a existência de expressa vedação legal (arts. 15 a 17, Lei n. 8.906/1994). 5. Impossível que sejam levados em consideração, em processo de dissolução de sociedade simples, elementos típicos de sociedade empresária, tais como bens incorpóreos, como a clientela e seu respectivo valor econômico e a estrutura do escritório32.

Em caso que versava sobre a partilha do valor econômico das quotas sociais de sociedade de advogados por cônjuge, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça asseverou, na ementa, que caso a demanda versasse sobre bens incorpóreos relacionados à participação societária, tais como clientela e fundo de comércio, esta seria indevida, uma vez que a sociedade de advogados, por expressa vedação legal, seria de natureza simples e, não, empresária33.

A impossibilidade de sociedade de advogados se caracterizar como atividade empresarial também se deu em julgamentos relativos a protesto de títulos, já que o Código de Ética da OAB veda o protesto de títulos de créditos por escritórios de advocacia34

Curioso notar, no entanto, que, em recente decisão proferida nos autos do Agravo em Recurso Especial n. 1.480.252 - RJ, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a legalidade de uma startup jurídica que permitiria o acesso a petições gratuitas para pequenas causas na área do direito do consumidor, envolvendo valores de até vinte salários mínimos, sustentando que tal acesso não configuraria mercantilização do exercício da advocacia35.

A justificativa para a divergência de entendimento se deu em decorrência da Lei n. 9.099/1995 que, ao tratar dos Juizados Especiais Cíveis, em seu artigo 9º, prevê que a assistência de advogados, para as causas com valor menor do que vinte salários-mínimos, seria facultativa.

Neste caso, o Relator Ministro Gurgel de Faria ponderou que:

4. Em sintonia com a orientação acima destacada, a Lei n° 9.099/95, em seu artigo 9°, faculta a assistência de advogado nas ações cujo valor da causa não ultrapasse o limite de vinte salários-mínimos. 5. A disponibilização gratuita de petições iniciais para postulação perante os Juizados Especiais, para as causas de até vinte salários-mínimos, como no presente caso, não configura prestação de serviços privativos de advogado, mercantilização da advocacia ou captação ilícita de clientela.

Contudo, tal entendimento é a exceção. Tanto que, ao analisar a exigência ou não de licitação para a contratação de serviços jurídicos relacionados ao setor público, o Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente se posicionado no sentido da sua dispensa, porquanto os escritórios de advocacia não exerceriam atividade empresária36.

A posição do Superior Tribunal de Justiça acerca da natureza da atividade advocatícia tem norteado o olhar dos Tribunais regionais37.

Cita-se, exemplificativamente, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais que, ao se pronunciar sobre a emissão de duplicatas por escritórios de advocacia, manifestou-se no sentido da sua impossibilidade, já que o exercício da advocacia seria incompatível com qualquer procedimento de mercantilização38. Na mesma linha da Colenda Corte Superior, o Tribunal estadual mineiro também se manifestou contrariamente a processos licitatórios no âmbito da advocacia, os quais encontrariam óbice no artigo 5º do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil39.

O Tribunal de Justiça paulista também tem se posicionado de modo similar. A título de exemplo, há menos de um ano, entendeu pela inexistência de dano moral na rescisão de uma sociedade em conta de participação envolvendo advogados e, também, um sócio não advogado, para a prestação de serviços de cobranças judiciais e extrajudiciais, porquanto referidos sócios, além de estarem acordes quanto ao distrato promovido, estariam cientes da “ilicitude da avença”, dada a vedação à mercantilização da profissão40. O Tribunal paulista não só reforçou a impossibilidade de sociedade em conta de participação para a prestação de serviços jurídicos, mas ainda determinou o envio de peças do processo para a OAB, Seccional de São Paulo.

O posicionamento dos Tribunais estaduais e, também, das Cortes Superiores, reforça uma visão mais estrita do exercício da advocacia, cujos contornos são conferidos por um Estatuto e um Código de Ética concebidos numa era não digitalizada e, portanto, não moldados para as inovações tecnológicas que têm revolucionado a prestação de serviços jurídicos.

5 O MOVIMENTO MERCADOLÓGICO E AS NOVAS CONCEPÇÕES DOUTRINÁRIAS

O mercado de lawtechs ou legaltechs é uma tendência crescente no Brasil.

No entanto, verifica-se que ainda há um distanciamento entre, de um lado, a regulação da advocacia no Brasil e a jurisprudência acerca da matéria e, de outro, os novos modelos de prestação de serviços jurídicos que vêm sendo adotados.

A transformação na prestação de serviços jurídicos a partir do desenvolvimento tecnológico parece ser uma tendência irreversível. Com efeito, setores público e privado têm buscado absorver as inovações tecnológicas em seus serviços jurídicos. Prova inequívoca disso é a publicação, pelo Conselho Nacional de Justiça, da Resolução 332/2020, que dispõe sobre o uso de inteligência artificial no Poder Judiciário.

Doutrinariamente, os impactos dessas inovações na advocacia já têm sido discutidos há alguns anos, tanto no Brasil quanto no exterior. Ana Luiza Melo Maciel e Pollyana Persotti Tibúrcio41 afirmam que “o papel de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil é essencial nesse momento, para tornar possível a modernização e impulsionar as mudanças geradas por essas forças externas”.

É importante ressaltar que todo esse movimento não é visto, pelos estudiosos do tema, como um movimento que levará ao fim da advocacia, com o que os autores deste artigo também concordam. Acredita-se, pelo contrário, que a substituição de algumas tarefas mecânicas, antes realizadas por advogados, mediante o uso de softwares avançados, conferirá aos profissionais da área do direito a possibilidade de focarem a sua atuação em aspectos relativos às suas habilidades humanas únicas. Mark Fenwick e Erick P. M. Vermeulen42 sustentam que, com a disruptura das profissões legais, os advogados terão que se adaptar. Sobre as inovações tecnológicas e seus impactos sobre a advocacia, afirma, ainda que:

Isto não significa que advogados de empresa se tornarão irrelevantes, mas, ao contrário, que a profissão legal terá que se inventar de modo a desempenhar a função-chave de desenhar e projetar as novas transações e organizações de um futuro digital.

Alguns autores aludem a uma “advocacia 4.0” e defendem um diferente modo de pensar a advocacia. Para Gérson Salvi Cunha:

Em síntese, o advogado 4.0 usa a tecnologia como ferramenta, e ela, por sua vez, é a protagonista dessa mudança na estrutura do mercado, que impõe o trabalho especializado, a amplificação do conhecimento e traz a advocacia para essa nova realidade43.

O advogado, nesse cenário, é visto, inclusive, como um empreendedor, que deve trabalhar não só com base em seu conhecimento técnico jurídico, mas, também, com os olhos abertos para oportunidades de inovação e de negócios, na posição de responsável por trazer clientes e receitas para seu escritório44.

Como mencionado, entre os estudiosos, é recorrente a ideia de que a tecnologia representará não o fim, mas uma necessidade de adaptação e melhoria dos serviços jurídicos. Segundo Benjamin Alarie, Anthony Niblett e Albert H. Yoon, “Escritórios de advocacia inovadores serão aptos a fornecer consultoria legal mais barata, rápida e acurada”45.

Roberto Vasconcelos Novaes, por sua vez, defende a revisão dos conceitos de atividades privativas, que em sua concepção foram elaborados em tempos nos quais o trabalho jurídico não tinha a mesma capacidade de difusão e ampliação de conhecimento como vemos hoje, graças à tecnologia46.

Tal movimento de transformação dos serviços jurídicos, a partir da tecnologia é, além de tudo, parte de um movimento global de transformação do mercado, também com impactos sociais e políticos, nas palavras de José Garcez Ghirardi:

O mercado da advocacia no Brasil incorpora e atualiza, assim, elementos centrais do amplo processo de globalização que tem marcado o tipo específico de transformação política, social e econômica característica das últimas décadas. As respostas que tal mercado tem dado a esse movimento - do qual é, também, importante ferramenta de construção e implementação - parecem apontar para a possibilidade de uma sensível ressignificação do mercado advocatício, e não só no Brasil, em futuro não muito distante. As forças antiéticas, mas complementares, da superespecialização solicitada por uma elite econômica global e a massificação que deriva da ascensão de largos contingentes antes excluídos do consumo compõem-se para pôr em xeque os modos tradicionais de oferecer e desenvolver serviços jurídicos. Na verdade, é possível mesmo arguir que parte desta mudança já esteja em curso47.

Vale, neste aspecto, reforçar as previsões do autor britânico Richard Susskind, cuja obra é uma das mais relevantes no campo das predições sobre o futuro do direito e das profissões jurídicas: a tecnologia não só modifica a forma como os serviços são prestados, a partir de processos como, por exemplo, automação, mas, também, permite a inovação: o desafio não é apenas o de automatizar ou tornar mais eficiente o serviço já existente, mas também o de praticar serviços jurídicos de formas nunca antes realizadas48.

6 A EXPERIÊNCIA INGLESA

Na vanguarda desse movimento transformador, no âmbito da advocacia, cita-se a experiência inglesa.

No Reino Unido, o Legal Services Board, criado por lei com o encargo de garantir que a regulação dos serviços jurídicos atenda ao interesse público49 (Reino Unido, 2007), publica, em seu website, análise de mercado na qual demonstra que os modelos societários de Incorporated Company e Limited Liability Partnertship (LLP), tipicamente empresariais, passaram a compor, em 2010, 32% da fatia do mercado de sociedades prestadoras de serviços jurídicos , sendo que, em 2006, representavam cerca de 12% do total do mercado50 (LSB, 2010).

O Legal Services Board, por si só, já foi criado a partir de um movimento de flexibilização da regulação sobre a advocacia. O Ato dos Serviços Jurídicos de 2007 foi emitido pelo governo britânico no sentido de criar a entidade, conferindo-lhe oito objetivos programáticos, a saber: (i) proteger e promover o interesse público; (ii) apoiar o princípio constitucional do Estado de Direito; (iii) melhorar o acesso à justiça; (iv) proteger e promover os interesses dos consumidores; (v) promover a competição para serviços jurídicos não reservados; (vi) encorajar uma profissão jurídica diversificada e forte; (vii) aumentar a compreensão pública em relação aos direitos e deveres legais dos cidadãos; e (viii) promover e manter a adesão aos princípios profissionais51.

Como decorrência dessa iniciativa, admitiu-se a criação de estruturas empresariais alternativas, conhecidas como ASB’s ou Alternative Business Structures, pelas quais os serviços jurídicos podem ser prestados por empresários não advogados. Admitiu-se, também, as LDP’s ou Legal Disciplinary Practices, que podem ser prestadas por até 25% (vinte e cinco por cento) de não advogados, além de admitirem a oferta de serviços multidisciplinares, cumulando a advocacia com outras atividades52.

Portanto, no Reino Unido, passou-se a admitir a mercantilização da advocacia e a sua cumulação com outras atividades, potencializando a atuação no mercado, de forma mais eficiente ao destinatário.

Mesmo com as mudanças já implementadas em termos de regulação, com uma maior abertura no exercício da advocacia, já há entendimento no sentido de que elas são insuficientes a responder à complexidade e à velocidade com que o mercado tem se modificado53.

O The Law Society of England and Wales, entidade representativa dos advogados no Reino Unido, expediu publicação, em janeiro de 2016, intitulada “The future of legal services”. Na referida publicação, constam diversas pesquisas de mercado e previsões, as quais apontam para a constatação de que o mercado de serviços jurídicos estaria “irreconhecível” em 2020 e que o ritmo das mudanças traria, também, reformas na regulação da atividade54, com a inclusão de novas formas de prestação de serviços, especialização e marketing (LSEW, 2015).

Resta saber se o Brasil seguirá resistindo ao repensar da regulação do setor ou se assumirá a vanguarda desse movimento transformador, sempre resguardando o exercício da profissão e o seu relevante papel na sociedade.

7 CONCLUSÃO

Conforme visto, há uma tendência de mercado, como dita, irreversível, no sentido da transformação na forma como os serviços jurídicos são prestados e a tecnologia é, fundamentalmente, uma força motriz propulsora dessa transformação.

Como alertado em artigo anterior, “Metaforicamente, o fato social é a tela que limita o direito no pintar das figuras que os valores inspiram. Modificando-se essa tela, é imperioso que o direito acompanhe o mesmo compasso, sob pena de os valores não serem bem retratados”55.

No Brasil, ainda há uma resistência ao repensar da regulação da advocacia, inevitável diante das inovações que já estão ocorrendo na prática e para não alargar, ainda mais, o distanciamento entre o direito e a realidade.

Todavia, isso não significa renunciar aos preceitos tão caros ao exercício da profissão, sendo que o grande desafio é encontrar o ponto de equilíbrio entre o resguardo da essência da advocacia e a necessidade de sua adaptação à era digital.

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Recebido: 15 de Outubro de 2020; Aceito: 22 de Fevereiro de 2021

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