Sumário: 1. Introdução; 2. Desenvolvimento do artigo; 2.1. Garantismo penal; 2.2. Direito Penal em tempos de totalitarismo financeiro; 2.3. A construção do inimigo;2.4. A exclusão entre os excluídos; 2.5. Direito Penal humano; 3. Considerações finais; 4. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Na obra O Capital, Karl Marx faz referência aos primórdios da luta de classes antes mesmo de existir a forma-dinheiro similar a que se conhece hoje. No mundo antigo, o antagonismo existente entre as classes se dava pela “luta entre credores e devedores e conclui-se, em Roma, com a ruína do devedor plebeu, que é substituído pelo escravo”3. Decerto, a desigualdade social não figura tema novo, mas assume fases mais ou menos intensas a depender do período histórico em análise.
Nessa toada, parte-se, neste artigo, da inegável estratificação social já existente e intensificada a partir dos efeitos do capitalismo financeiro. Neste, a renda se encontra cada vez mais concentrada na mão de poucos, conquanto não sejam conhecidos quais são, de fato, os detentores da concentração monetária, uma vez que o aparato financeiro não tem rosto. Do avanço dessa fase do capitalismo, não há como dissociar conceitos como sociedade, política e Direito, do atual quadro de poder financeiro.
Na tentativa de compreender o totalitarismo financeiro e conter os excessos do Direito Penal que, em inúmeros casos, atua em benefício do capitalismo, é imperiosa a construção de um saber jurídico-penal e criminológico pautado na realidade social existente. Mazelas já existentes no Direito Penal clássico foram intensificadas a partir do fenômeno da globalização. Expande-se o Direito Penal sob a escusa de contenção dos riscos da modernidade e, dessa forma, aumentam-se os discursos punitivistas. Por fim, reforça-se a construção do inimigo, em mais uma manifestação da seletividade penal.
Deste novo cenário afligido por permanentes questões penais, surge o seguinte problema de pesquisa: de que forma a seletividade penal se manifesta em tempos de totalitarismo financeiro?
Almejando construir uma resposta, adotou-se, como marco teórico, a proposta do Direito Penal humano elaborada por Eugenio Raúl Zaffaroni na obra Direito Penal humano e poder no século XXI. Como hipótese, considerou-se a referida teoria como alternativa apta a lidar com as mazelas provenientes do totalitarismo financeiro, partindo dos seguintes passos: a superação do idealismo, a constitucionalização e a adoção do ser humano como centro da norma penal.
A pesquisa pertence à vertente metodológica jurídico-sociológica. Por sua vez, no que concerne ao tipo de investigação, foi adotado o tipo jurídico-projetivo. Ademais, o estudo parte de uma abordagem precipuamente problematizante, cujo foco é transdisciplinar.
Os objetivos desta pesquisa são: a) promover uma contraposição entre o garantismo penal clássico e o garantismo de Eugenio Zaffaroni; b) analisar como se dá o Direito Penal em tempos de totalitarismo financeiro; c) verificar a seletividade penal na vigência do capitalismo financeiro.
Como resultado alcançado, confirmou-se a hipótese de que o Direito Penal humano surge como proposta apta a lidar com as marcas do totalitarismo financeiro, partindo dos seguintes passos: a superação do idealismo, a constitucionalização e o ser humano como centro do Direito Penal.
2 DESENVOLVIMENTO DO ARTIGO
Nesta fase, serão trabalhadas as temáticas que refletem o objeto da presente pesquisa. Em suma: o garantismo penal; o Direito Penal em tempos de totalitarismo financeiro, a construção do inimigo e a exclusão entre os excluídos. Por fim, abordar-se-á o tema Direito Penal humano.
2.1 Garantismo Penal
Pondo termo ao conteúdo aflitivo e cruel das penas, Cesare Beccaria, adepto das teorias contratualistas e precursor do princípio da legalidade, serviu, a partir de um pensamento crítico evocado pela obra Dos delitos e das penas4, como um divisor de águas para o Direito Penal. Para o autor, “(...) só as leis podem fixar as penas de cada delito e (...) o direito de fazer leis penais não pode residir senão na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade unida por um contrato social”5.
Beccaria aduz, pois, a imprescindibilidade de que apenas o legislador seja capaz de tipificar condutas e cominar penas, tendo em conta a responsabilidade a esse conferida a partir do depósito de confiança proveniente do contrato social. Em síntese, “Beccaria foi seguidor de Rousseau quanto às ideias contratualistas, e disto deriva, como consequência necessária, o princípio da legalidade do delito e da pena”6.
Superado o penalismo iluminista iniciado por Beccaria, ocorreu, no século XIX, o despontar de um penalismo terapêutico, reforçado por correntes da medicina individual, particularmente a psiquiatria alienista, e da medicina social calcada no higienismo7. O intuito era o de justificar que, embora a sociedade fosse configurada por um contrato social, os pactuantes não eram iguais, considerando as diferenças biológicas que afetavam cada um. Disto veio um forte determinismo biológico8 apto a distinguir os indivíduos que transgrediam a norma penal como biologicamente condicionados. A pena adotaria, então, um viés terapêutico, marco do positivismo criminológico posterior9.
Em rumos contrários às escolas positivistas da criminologia, o garantismo penal surge como movimento de reafirmação dos direitos humanos, desprovido das diferenciações biológica e determinista supramencionadas. Como marcos principais a serem trabalhados, enumeram-se: Alessandro Baratta e Luigi Ferrajoli.
Alessandro Baratta, expoente responsável por difundir a criminologia crítica, graduou-se e se tornou doutor em filosofia do Direito pela Universidade de Roma. Em contramão às propostas positivistas da criminologia, Baratta propunha, sobretudo por meio da obra Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, um modelo integrado entre Direito Penal e criminologia, capaz de trazer um conteúdo humanista ao discurso jurídico-penal:
(...) no âmbito da práxis teórica contemporânea, no lugar do clássico modelo integrado de ciência penal pode surgir somente um novo modelo, em que a relação entre ciência social e discurso dos juristas não é mais a relação entre duas ciências, mas uma relação entre ciência e técnica10.
A integração proposta por Baratta tinha, portanto, o objetivo de efetivar o pleno gozo dos direitos humanos que, concomitantemente, proporcionaria o progresso social11. Posteriormente, Baratta12 elencou uma série de princípios denominados intrassistemáticos, isto é, de limitação formal, e extrasistemáticos, com foco na descriminalização. O objetivo era estabelecer princípios de Direito Penal mínimo a fim de construir uma “teoria dos direitos humanos como objeto e limite da lei penal”13.
Por sua vez, Luigi Ferrajoli, dotado de uma visão negativa do Direito Penal quando comparado a Baratta, via na racionalidade um meio de contenção dos excessos punitivos. Em forte debate com os abolicionistas de sua época, Ferrajoli não considerava admissível a possibilidade de extinção do sistema penal, tendo em vista que isso “levaria à existência de uma anarquia punitiva, com respostas estatais e sociais selvagens”14. A alternativa, portanto, seria a inserção da racionalidade no Direito Penal e no Direito Processual Penal, como pode ser visto na obra Direito e Razão, reforçando a necessidade de distinção entre Direito e moral na construção dos axiomas do garantismo penal:
A primeira condição equivale ao princípio da reserva legal em matéria penal e da conseqüente submissão do juiz à lei: o juiz não pode qualificar como delitos todos (ou somente) os fenômenos que considere imorais ou, em todo caso, merecedores de sanção, mas apenas (e todos) os que, independentemente de sua valoração, venham formalmente designados pela lei como pressupostos de uma pena15.
Considerando o período de surgimento do garantismo de Baratta e de Ferrajoli, não havia, à época, a preocupação com as ameaças punitivas do totalitarismo financeiro, cujo período de latência se deu nos anos subsequentes. Faz-se mister, no entanto, compreender a importância da criminologia para o contexto de poder no qual se insere. Por esse motivo, em que pese a relevância dos autores supramencionados, torna-se indispensável um estudo criminológico à luz do atual quadro de totalitarismo financeiro, estudo esse que será auxiliado, conforme será visto em sequência, pelas obras de Eugenio Raúl Zaffaroni, marco do garantismo penal hodierno.
2.2 Direito Penal em Tempos de Totalitarismo Financeiro
A importância deste tópico surge a partir da impossibilidade de construção de um discurso jurídico-penal asséptico e desconexo com a realidade em que se encontra inserido. Toda lei penal deve ter em mente o contexto global do quadro de poder que a permeia. De início, o colonialismo industrial fruto do mercantilismo, em sequência, o neocolonialismo proveniente da revolução industrial e, por fim, a globalização ainda em vigor16. Deste modo:
Qualquer programa político que queira evitar a utopia ou o delírio deve levar em conta o quadro de poder em que aspira a ser realizado. Portanto, a fim de elaborar uma lei penal em uma base minimamente realista, é necessário começar por se situar na conjuntura global e regional, como um passo indispensável para tentar uma aproximação do que seria necessário nesta circunstância17.
O capitalismo apresenta duas faces: o capitalismo produtivo, cujo marco temporal mais forte data da revolução industrial, e o capitalismo financeiro, fruto da globalização. Este segundo menor e mais forte que o primeiro, considerando sua desvinculação da política local, nacional e internacional. O capitalismo financeiro apresenta uma vastidão de poder muito superior ao alcance político, tendo em conta sua capacidade de transposição territorial e o enfraquecimento dos órgãos internacionais frente às grandes corporações18.
A reviravolta do capitalismo financeiro foi responsável por alterar “o equilíbrio tradicional com a política: o estabelecimento não está mais ligado horizontalmente à política, porém o domina, desfrutando de uma capacidade de deslocamento geográfico que falta à política, por essência territorial”19. Mantém-se, assim, o domínio dos Estados periféricos pelos Estados centrais a partir de um neocolonialismo oriundo da globalização. Enxugam-se os recursos provenientes dos Estados marginais enquanto o aparato financeiro beneficiado reside nos países centrais. Dada, ainda, sua fluidez e despersonalização, o poder financeiro se mostra capaz de migrar de um território a outro, fazendo-se inalcançável para qualquer política local.
A gestão do domínio financeiro se encontra com as altas cúpulas das empresas, nas quais existem gestores indicados a aumentar os lucros, ainda que de forma não ética, desprovidos da escolha de se manifestarem contrários, sob pena de serem substituídos20. E é nesse contexto de insegurança que surge o anseio social e midiático por rápidas respostas de contenção de riscos21, ainda que, para tanto, sejam suprimidos direitos e garantias fundamentais a fim de encontrar um culpado e puni-lo o mais rápido possível:
Por fim, disseminou-se na sociedade um sentimento exagerado de insegurança, que não parece corresponder exclusivamente a tais riscos, mas é potencializado pela intensa cobertura midiática de eventos perigosos ou danoso, pelas dificuldades encontradas pelo cidadão comum em compreender a acelerada mudança tecnológica e ajustar seu cotidiano a ela por causa da percepção social generalizada de que a sociedade tecnológica moderna acarreta notável transformação das relações e valores sociais e uma redução significativa da solidariedade coletiva. Em suma, todo esse conjunto de fatores aciona demandas por intervenções socioestatais que permitem controlar tais riscos e aplacar tais medos, aplicando-se a política criminal, entre outros mecanismos sociais22.
Expande-se o Direito Penal sob a falsa premissa de contenção dos riscos da modernidade, desistindo de colocar o ser humano como centro da norma penal a partir da personalização de um poder que não pode ser personalizado. A punição de gestores de empresas, sem a análise prévia da responsabilidade subjetiva e de princípios constitucionais, não garante a diminuição das mazelas do capitalismo financeiro, apenas traz um falacioso sentimento de revanche.
Da mesma forma, a guerra declarada ao tráfico de drogas não garante o enfraquecimento daquele que efetivamente goza de seus benefícios: o poder financeiro. Isso porque o papel da cocaína “é introduzido como um fator caótico nas sociedades altamente estratificadas, enquanto permite que o aparato de reciclagem do monopólio bancário colonizador mantenha a maior parte da renda do tráfico”23. Em suma, o poder financeiro se beneficia do caos declarado nos países marginais, inaugurando uma nova fase do colonialismo tardio.
2.3 Construção do Inimigo
Günther Jakobs, partidário da escola finalista de Hans Welzel e discípulo deste, foi responsável por cunhar o termo Direito Penal do inimigo na tentativa de prover, ainda que de forma controversa e amplamente criticada, a contenção do Direito Penal. Decerto, a construção da noção de inimigo não configura tema novo, considerando as severas perseguições propagadas no período inquisitorial e, em período ainda mais recente, a punição da vadiagem e da mendicância na manifesta criminalização da pobreza. Nas palavras de Zaffaroni:
De fato, o direito penal desumano opera sempre por meio da constante fabricação de outros inimigos. O escândalo causado há alguns anos pelo breve e muito discutido artigo do Professor Bonn - Günther Jakobs - não fazia muito sentido, porque o direito penal sempre foi o direito penal do inimigo. O pecado de Jakobs talvez tenha sido apenas a ingenuidade que o levou a dizê-lo expressamente e a chamá-lo pelo nome, trazendo de volta o véu que havia escondido algo ciosamente guardado durante os últimos séculos ou talvez até mesmo o último milênio26.
O que Jakobs fez foi esclarecer um assunto que há muito permeia o Direito Penal, desde a sua forma mais primitiva até a sua forma mais moderna. Para o autor, é necessário que, objetivando manter a segurança do ordenamento jurídico, faça-se uma distinção entre dois polos de uma mesma moeda: o Direito Penal do inimigo em contraposição ao Direito Penal do cidadão27. Nessa linha, garantias e direitos fundamentais restam mais ou menos assegurados a depender de qual polo se encontra o indivíduo em análise no caso concreto:
Quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas. Portanto, seria completamente errôneo demonizar aquilo que aqui se tem denominado Direito penal do inimigo28.
Ao considerar fatores como a personalidade de quem delinque na imposição da pena, parte-se para um Direito Penal do autor em detrimento do Direito Penal do fato. Jakobs29defende que nem todo indivíduo que delinque representa um inimigo para o Estado, razão pela qual, para o autor, configura-se errônea a previsão de cúmulos na parte geral do Direito Penal, fazendo-se necessária a clara distinção entre aqueles que estariam aptos a receber a proteção da Constituição Cidadã.
Faz-se mister destacar que o Direito penal do inimigo não encontra respaldo na Constituição Federal, considerando o fundamento da dignidade da pessoa humana em somatória ao princípio da humanidade, entre outros princípios e garantias fundamentais. A ausência de um respaldo constitucional e legislativo, no entanto, não garante, por si só, que a construção do inimigo não esteja impregnada no poder punitivo - definido por Zaffaroni30 como o poder que o Estado exerce ou permite que seja exercido - ou no poder militarizador e verticalizador-disciplinar31, por exemplo.
A seletividade penal32 surge, pois, como evidente ramificação da construção de um inimigo digno de ser mais duramente penalizado, ou, ainda, seletivamente penalizado em detrimento de outros que também cometeram crimes. Isso porque “o outro inimigo é sempre uma não pessoa”33. Delimita-se a figura do delinquente, constrói-se, com auxílio midiático reforçado pela atuação dos próprios órgãos penais, o arquétipo de criminoso perigoso e violento, alimentando-se, sobretudo no contexto da América Latina, das características de homens jovens membros das classes sociais mais carentes34.
A seletividade se vale do estado de vulnerabilidade, seja social ou racial, em que se encontram determinados indivíduos ou parcelas da população. Na perspectiva de Zaffaroni35, o estado de vulnerabilidade pode ser compreendido como o grau de risco ou perigo que alguém corre somente por pertencer a uma classe, grupo ou estrato social, bem como por se encaixar em um estereótipo pré-fixado. Diante disso, infere-se que:
Os órgãos do sistema penal selecionam de acordo com esses estereótipos, atribuindo-lhes e exigindo-lhes esses comportamentos, tratando-os como se se comportassem dessa maneira, olhando-os e instigando todos a olhá-los do mesmo modo, até que se obtém, finalmente, a resposta adequada ao papel assinalado36.
Cumpre destacar, contudo, o livre arbítrio pertinente à conduta do infrator, de forma que a vulnerabilidade intrínseca a sua classe social ou racial, por si só, não faz com que um indivíduo venha a delinquir. Todavia, há aqueles que são “mais sensíveis às demandas do papel formuladas pelas agências dos sistemas penais”37, ou, ainda, que não possuem uma estrutura familiar adequada, o que colabora para que o papel já formulado de delinquente pela seletividade penal venha, então, a ser efetivamente preenchido.
O idealismo pertinente ao discurso jurídico-penal legitimante parte da igualdade de aplicação das normas penais. No entanto, o que se verifica é que “as prisões, que em sua maioria abrigam pessoas pobres que cometem crimes grosseiros e nem sequer são condenadas, negam a igualdade que o famoso contrato idealista de direito penal pressupõe”38. Os papeis pré-formulados de criminalidade não abrangem a totalidade de indivíduos que cometem condutas delituosas, bem como possuem como foco tipos penais específicos, em desconsideração “de crimes econômico-políticos (como Wolf-gang Naucke os chama) que causam a ruína de nações e mergulham populações inteiras na pobreza e na miséria”39.
A proposta que Zaffaroni traz de construção de um Direito penal humano não parte do aumento punitivo dos estratos socioeconômicos mais elevados, conforme será visto em tópicos ulteriores - considerando o poder de contenção que o Direito Penal desempenha -, mas de equalização do ser humano enquanto centro da norma penal.
Fato é que a seletividade penal, em comunhão à construção do inimigo, não figura tema novo, sendo, pois, reincidente ao longo da história punitiva. Entretanto, trata-se de assunto que favorece o totalitarismo financeiro, conforme será visto no tópico subsequente, a partir da promoção de uma exclusão entre os excluídos que em muito colabora com a incapacidade de coalisão política.
2.4 A Exclusão Entre os Excluídos
A criação de arquétipos de criminosos favorece a ampliação do punitivismo até mesmo nos setores político-sociais intitulados mais progressistas. Para os mais conservadores, correspondem ao papel: traficantes de drogas, pedófilos e ladrões. Para os setores mais progressistas: abusadores de mulheres, racistas e homofóbicos. É defendida, a partir disso, a proposta de Jakobs de criação do inimigo anteriormente trabalhada.
Aos que correspondem ao objeto de punição ansiado pela classe correspondente, propõe-se a punição desmedida e desprovida de direitos e garantias fundamentais. Questiona-se a presunção de inocência que permite responder ao processo penal em liberdade - em caso de não haver alguma das hipóteses do artigo 312 do Código de Processo Penal40. Reivindica-se, em certa medida, algum tipo de punição corpórea, ainda que ilegalmente praticada no interior das prisões. Critica-se a finitude da pena, argumentando que, a depender do crime praticado, a pena deveria ser perpétua:
Desejando e aplaudindo as prisões e condenações a qualquer preço, estes setores da esquerda reclamam contra o fato de que réus integrantes das classes dominantes eventualmente submetidos à intervenção do sistema penal melhor se utilizem de mecanismos de defesa, frequentemente propondo como solução a retirada de direitos e garantias penais e processuais, no mínimo esquecidos de que a desigualdade inerente à formação social capitalista que, lógica e naturalmente, proporciona àqueles réus melhor utilização dos mecanismos de defesa, certamente não se resolveria com a retirada de direitos e garantias, cuja vulneração repercute sim de maneira muito mais intensa sobre as classes subalterizadas, que vivem o dia a dia da Justiça Criminal, constituindo a clientela para qual esta prioritariamente se volta41.
Retoma-se, aqui, o fato de que, em que pese não exista respaldo constitucional e legislativo para tanto, o Direito Penal do Inimigo se encontra, desde sempre, impregnado nos setores da sociedade. Em resposta às expectativas sociais que tratam o Direito Penal como gargalo resolutor de mazelas, criam-se, cada vez mais, tipos penais na mais evidente manifestação do Direito Penal simbólico42. Como exemplo, a tipificação da homofobia fruto do ativismo judicial desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26 43.
A tipificação exacerbada de condutas não é capaz de, desvinculada de políticas públicas e de uma política criminal coesa e efetiva, prevenir delitos. Se assim o fosse, não mais haveria inúmeros casos de violência doméstica ou de feminicídio a partir da promulgação da Lei n. 11.34044 e da criação da qualificadora de feminicídio, incluída no artigo 121, § 2°, inciso VI, do Código Penal45. O que há, a partir disso, é o aumento da seletividade penal que atinge mais fortemente aqueles que pertencem às classes socioeconômicas desprivilegiadas:
Entretanto, estas campanhas punitivistas são singularmente bem-sucedidas entre muitas das pessoas que sinceramente combatem e ostentam estes movimentos, e muitas vezes caem na armadilha do punitivismo, o qual, como em qualquer outro caso, não só não resolve conflitos, mas também abre novas áreas de arbitrariedade seletiva, com sua sequência inseparável de corrupção, autonomia das agências policiais e reforço da discriminação46.
O discurso punitivista favorece a exclusão entre os excluídos, o que, por sua vez, fortalece, ainda mais, o poder desempenhado pelo totalitarismo financeiro. Ao enxergar o próximo, também já excluído, como inimigo, impede-se uma eventual coalisão política apta a reconhecer a realidade como é e a reivindicar melhorias. Logo, aqueles já excluídos pelo sistema capitalista não se enxergam como pertencentes a um mesmo grupo marginalizado, pelo contrário, passam a ver no outro um monstro a ser combatido.
Na perspectiva de Zaffaroni47, para o controle dos excluídos, utiliza-se não apenas a letalidade das agências penais, mas o incentivo da violência entre os próprios excluídos, esta última reforçada pelos aparelhos midiáticos que compõem as corporações transnacionais. Certamente, a mídia, braço forte do poder financeiro, se beneficia economicamente das matérias que suscitam o constante sentimento de insegurança. A seletividade penal e o discurso punitivista são midiaticamente rentáveis na medida que promovem mais acessos e captam mais telespectadores.
Ademais, beneficia-se o poder financeiro ao enfraquecer Estados a partir da violência propagada entre os próprios excluídos. Nessa diretiva, “(...) o alto nível de violência entre os próprios excluídos, o poder das quadrilhas armadas e a impotência - e a corrupção - da polícia condicionam o caos da chamada insegurança, que enfraquece nossos Estados ao atenuar seu controle territorial”48. Conforme visto anteriormente, o poder financeiro, já beneficiado pela sua capacidade de transposição territorial que afeta o alcance político local, bebe da fonte de caos gerada nos países marginais e do enfraquecimento de Estados nacionais.
2.5 Direito Penal Humano
O agigantamento do aparelho financeiro deu origem a massas de capital despersonalizadas, “que no hemisfério norte começaram a tomar o lugar da política, fazendo dos políticos dos seus países seus reféns ou lobistas”49. Ao contrário das outras fases do capitalismo, o capitalismo desprovido de um produto não possui mais um dono aparente. Trata-se de conglomerados empresariais e de grandes corporações que não possuem um único responsável.
Pouco se fala em quantias físicas de lucro, como a moeda, o ouro ou a prata, trabalha-se, tão somente, com números que podem ser eletronicamente transferidos - daí a capacidade que o poder financeiro tem de se movimentar entre os Estados. Uma simples queda eletrônica de números é capaz de afetar a economia global, o que torna os países tão dependentes das grandes corporações.
Da capacidade de transposição territorial e da sujeição da política aos aparatos financeiros, surge o totalitarismo financeiro que se beneficia do discurso punitivista, da seletividade penal e da criminalidade nos países marginais:
No último caso, os concessionários operam no sul e enfraquecem alguns estados da nossa região, uma vez que, como no caso do tráfico de cocaína, introduzem o caos nas sociedades, corrompem todas as instituições estatais, provocam altas taxas de violência e morte, acabam com a polícia, e mesmo com as forças armadas, e com a própria política, ou seja, contribuem para degradar estados naquilo a que mais adiante chamaremos modelos de estados atrofiados50.
A construção do inimigo a partir da seletividade penal favorece o poder financeiro na medida que introduz no outro a máscara de não pessoa. “Somente esta máscara explica por que o vizinho pacífico de ontem se torna subitamente o inimigo a ser reprimido em um genocídio (...)”51. Ao retirar a humanidade do próximo, trabalha-se a favor do totalitarismo financeiro por dois fatores: pelo incentivo à violência entre os excluídos que dificulta a coalisão política a fim da busca por melhorias políticas, econômicas e sociais; pelo enfraquecimento dos Estados nacionais e das agências penais em razão da violência e da seletividade penal que os acometem.
Todos os elementos mencionados fazem parte do que Zaffaroni52 menciona como Direito Penal desumano. Para a transposição desse cenário, o autor propõe a construção de um Direito Penal humano, cujas bases serão, doravante, elencadas.
Em um primeiro momento, impende questionar: existe uma criminologia crítica latino-americana? Em que pese não exista a possibilidade de nacionalização de um saber enquanto ciência, decerto a criminologia é elaborada sob influência dos poderes e das características dos locais em que se origina. Por muito tempo os criminólogos críticos latino-americanos foram esquecidos em detrimento da valorização do discurso jurídico-penal central, inapto a lidar com as questões predominantes nos países marginais53.
Legitimou-se o poder punitivo a partir do uso de qualquer uma das teorias legitimantes disponíveis, em total desconsideração da sua função latente54. Em síntese, conforme abordado ainda na década de 1990 na obra Em busca das penas perdidas, na mais evidente desconsideração da dicotomia existente entre “ser” e “dever ser”:
O discurso jurídico-penal é elaborado sobre um texto legal explicitando, mediante os enunciados da “dogmática”, a justificativa e o alcance de uma planificação na forma do “dever ser”, ou seja, como um “ser” que “não é” mas que “deve ser”, ou, o que é o mesmo, como, um ser “que ainda não é”55.
Os discursos importados se tornam, portanto, incapazes de elaborar um Direito Penal condizente com os direitos humanos, uma vez que descartam a realidade na qual cada país se insere. Disso surge a tarefa do Direito Penal humano de projetar o cumprimento dos direitos humanos, inseridos no âmbito do “dever ser”, na realidade social, “ou seja, promover esse dever ser se torna um ser na sociedade e no planeta, num sentido diametralmente oposto aos interesses do capital financeiro transnacional”56.
Como meio de concretizar esse objetivo, propõe-se a superação do idealismo. Trata-se de tema trabalhado na obra Em busca das penas perdidas, em que Zaffaroni57 destaca a importância do realismo de Hans Welzel para a construção de um discurso jurídico-penal condizente com a realidade social. Posteriormente, na obra Direito Penal humano, o autor trabalha a imperiosa necessidade de inserção de dados das ciências sociais no Direito Penal, haja vista que este “não poderia empurrar o ser para o dever ser sem ter dados empíricos”58.
Em sequência, é proposta a figura da constitucionalização, isto é, a constitucionalização do Direito Internacional em somatória à internacionalização do Direito Constitucional. Trata-se de movimento atual que opera em lentidão, considerando o enfraquecimento dos órgãos internacionais. Todavia, consiste em movimento adequado ao Direito Penal humano, uma vez que:
(...) por meio do aprofundamento da constitucionalização e internacionalização do direito penal sob a premissa básica de que todo ser humano é uma pessoa, ele necessariamente levará ao privilégio da vida diante da ameaça de sua destruição massiva e, portanto, assumirá por mandato legal positivo sua função de impedir o genocídio e - simultaneamente - de proteger todos os bens legais59.
Logo, a premissa básica do Direito Penal humano é introduzir o ser humano como centro do Direito Penal. No âmbito jurídico interno, trata-se de aspecto perfeitamente condizente com o fundamento da dignidade da pessoa humana, cuja base reside no ser humano como centro da norma jurídica, impossibilitando sua instrumentalização para outros fins60.
Faz-se mister destacar que, para que seja concretizada a proposta de Direito Penal humano, deve-se assimilar que toda e qualquer pessoa deve consistir no centro do Direito Penal, o que se choca com a construção do inimigo proposta pela seletividade penal. A pessoa existe independente da lei, não se cria um ser humano por meio de uma construção normativa penal. Portanto, o conceito de pessoa prevalece, enquanto elemento atrelado aos Direitos Humanos, e não pode ser relativizado à vontade do poder61.
Por fim, retomando a construção do inimigo de acordo com o punitivismo ansiado por cada grupo político-social (conservadores ou progressistas), imprescindível questionar: a lei penal deve ser para ricos ou para pobres? Evidente a existência de sociedades amplamente estratificadas, não se trata, contudo, de punir mais ou menos a depender da classe social que o indivíduo ocupa. Se assim o fosse, “isto seria um simplismo inaceitável que, mais uma vez, cairia no mascaramento de não pessoas das camadas superiores”62. Ao contrário do que pregam alguns setores da sociedade que se dizem progressistas, a lei penal deve se ater ao ser humano, independente de quem seja, sob pena de se cair, mais uma vez, na proposta de Jakobs de Direito Penal do inimigo.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar da importância da criminologia garantista clássica - aqui representada por autores como Alessandro Baratta e Luigi Ferrajoli - faz-se necessário compreender o papel que a criminologia crítica desempenha no atual quadro de poder. Por este motivo, optou-se, na pesquisa aqui disposta, pela teoria do Direito Penal humano, desenvolvida por Eugenio Raúl Zaffaroni, como marco teórico apto a lidar com o totalitarismo financeiro que acomete, de forma ainda mais grave, os países situados no hemisfério sul do globo.
O capitalismo financeiro possui como característica sumária a existência de grandes corporações desprovidas de um único dono. Neste, não há de se falar em quantias físicas como a moeda, o ouro ou a prata. Trata-se de valores eletronicamente quantificados e de fácil transferência, o que facilita, ainda mais, a capacidade de rápida transposição territorial que os aparelhos financeiros possuem. A administração dos conglomerados empresariais reside na mão de cúpulas de gestores cujo objetivo principal é o aumento compulsório do lucro, ainda que de forma antiética, sob pena de serem prontamente substituídos.
Nesse cenário, o Direito Penal atua como aparato de auxílio ao poder financeiro dominante: prega-se o discurso amplamente punitivista calcado na seletividade penal e na construção do inimigo, estimula-se a violência nos países marginais e a constante exclusão entre os excluídos. Ao vestir no próximo a máscara de não pessoa, retoma-se a proposta de Jakobs de Direito Penal do inimigo, o que dificulta qualquer hipótese de coalisão política em busca de melhorias políticas, sociais e econômicas. A violência instaurada, reforçada pelo constante sentimento de insegurança - este fortemente propagado pela mídia, empreende o caos nos países marginais, o que beneficia o neocapitalismo pertinente ao totalitarismo financeiro ao enfraquecer os Estados nacionais e ao descredibilizar a política local.
O Direito Penal humano surge como proposta de rompimento desse cenário. Apresenta como elementos: a superação do idealismo, a constitucionalização e o ser humano como centro do Direito Penal. O primeiro consiste na superação do idealismo baseado no “dever ser” em detrimento de uma análise pautada no realismo. Trata-se de tentativa de efetivar os direitos humanos, os quais residem no “dever ser”, na realidade social, isto é, no “ser”. Para tanto, utiliza-se do fenômeno da constitucionalização e da internacionalização dos direitos humanos.
Por fim, propõe-se a inserção do ser humano, independente de quem seja, como centro do Direito Penal - aspecto este condizente com o fundamento da dignidade da pessoa humana. Foram estes os passos para a construção de um Direito Penal humano sugeridos por Zaffaroni. Evidente que quaisquer tentativas de efetivação dos direitos humanos no plano prático operam em lentidão, o que, no entanto, não reduz a importância das propostas zaffaronianas, trazidas neste artigo, a fim de realocar o ser humano como centro da norma penal e, a partir disso, combater, paulatinamente, a seletividade penal intensificada pelo totalitarismo financeiro.