1. Apresentação
Neste artigo, abordaremos dois livros-reportagem sobre catástrofes ocorridas no Brasil, recentemente - Tragédia em Mariana (Record, 2018), de Cristina Serra, e Brumadinho: A Engenharia de um Crime (Letramento, 2021), de Lucas Ragazzi e Murilo Rocha. Tais trabalhos compartilham similaridades como a temática, visto que ambos tratam dos eventos trágicos decorrentes de rompimentos de barragens de rejeitos minerários no estado de Minas Gerais, e a organização formal, sob a alcunha do livro-reportagem. Nossa premissa, a ser verificada, é a de, apesar disso, eles indiciarem diferentes modos de apreensão jornalística do mundo, com distintas implicações éticas. Interessa-nos discutir suas formas de aproximação dos eventos que narram, com ênfase nas condições que oferecem para a emergência de vítimas de catástrofes nessas histórias.
Por condições de emergência, compreendemos que a condição de vítimas não deve ser tomada como uma evidência natural para percepção das experiências que se tem em torno de tais acontecimentos. Há que se ter em conta os deslocamentos epistemológicos que se dão entre lidar com o conhecimento baseado na vivência direta de alguém em uma dada situação e os modos do testemunho como forma de conhecer (Leal & Antunes, 2018), que, no jornalismo, parecem implicar na formação de uma verdadeira comunidade de personagens.
As personagens jornalísticas, à diferença daquelas puramente ficcionais, sabemos com Serelle (2020), têm dupla existência: na narrativa e no mundo histórico, e sua construção deve observar possíveis limites e passagens entre um e outro, visto que aquilo que aparece na narrativa pode impactar as vidas que as inspiraram e as existências concretas impõem restrições à composição das personagens (Malcolm, 1990/2011). A atenção a este traço aparece expressa, por exemplo, nas reflexões que Brum (2018) faz sobre um trabalho seu, “A Casa de Velhos”. Diz a autora que “nenhuma reportagem é mais importante que uma pessoa”, “já perdi, algumas vezes, as melhores aspas de uma matéria em nome desse cuidado fundamental com o outro” (Brum, 2018, pp. 111-112), apontando para o horizonte ético de seu fazer.
Lendo Mônica Martinez (2017), Serelle (2020) chama a atenção para a centralidade histórias de vida no jornalismo narrativo, que engloba textos com formatos tais como o perfil, grande reportagem ou livro-reportagem em articulação com elementos da prosa literária. Por meio das histórias de vida, aquilo que figuraria na cobertura diária apenas como “número ou estatística ou ainda reduzido a uma única face da personalidade que serve ao acontecimento noticiado”, ganha “perspectiva biográfica, complexidade psicológica e contexto social” (Serelle, 2020, p. 45). Acrescentaríamos que essa dinâmica se faz particularmente sensível em um recorte de reportagens sobre catástrofes: em Hiroshima, de John Hersey (1946/2017), toda a narrativa estrutura-se em torno das histórias de seis personagens; apresentada aos leitores mais de um ano após a conhecida explosão que dizimou a cidade japonesa, o texto “não trazia revelações técnicas nem dados desconhecidos sobre os efeitos da bomba atômica. Seu impacto veio do enfoque e da abordagem escolhidos por Hersey. ( ... ) O horror tinha nome, idade e sexo” (Suzuki, 1946/2017, p. 168). No discurso que apresentou quando da premiação Nobel pelo con junto de sua obra, Svetlana Aleksiévitch (1997/2016), cujos textos investigam grandes acontecimentos da União Soviética, como a explosão da usina nuclear em Tchernóbil, na escala de seus indivíduos comuns, disse que a atraía “esse pequeno espaço - o homem... o ser humano. Na realidade, é lá que tudo acontece” (p. 372).
Ressalvamos aqui que Tragédia em Mariana e Brumadinho: A Engenharia de um Crime não podem ser completamente apreendidas como obras inscritas na tradição do “jornalismo literário”. Ambas têm passagens em que se reconhecem recursos narrativos típicos de certa tradição realista para narrar os fatos, notadamente a descrição de cenas inteiras (Wolfe, 1970/2005), mas são, principalmente, livros com reportagens que buscam denunciar um crime, no caso do livro de Serra, e documentar uma investigação policial, como fazem Ragazzi e Rocha, sem que o investimento literário se sobressaia. Porém, enquanto livros-reportagem, espera-se deles que apresentem uma abordagem distinta da que caracteriza o jornalismo diário, inclusive em relação aos personagens de suas histórias.
Ademais, o livro-reportagem parece ter se constituído como um objeto cultural privilegiado entre repórteres. Na história que conta a respeito do “novo jornalismo”, Tom Wolfe (1970/2005) diz que os repórteres especiais das redações almejavam justamente conquistar as condições para deixá-las e, idilicamente, isolados, escreverem “o livro” que lhes daria fama e riqueza como retorno. Efetivamente, o livro-reportagem foi capaz, neste período, de cruzar fronteiras geográficas e linguísticas que mesmo as grandes reportagens de autores, como Gay Talese, Truman Capote e o mencionado Tom Wolfe, publicadas em revistas como The New Yorker, Esquire, Playboy e outras grandes revistas, não atravessavam facilmente. No Brasil, o que foi traduzido destes autores - e de muitos outros - foram seus livros, principalmente.
Os livros-reportagem resultavam, então, de pautas melhor apuradas e desenvolvidas que as reportagens preparadas para publicações periódicas e, com o privilégio de serem feitos em mais tempo, com mais recursos e uma estrutura de divulgação e discussão mais estruturada. Por meio de lançamentos, críticas e debates, se constituí ram como um objeto jornalístico do qual podemos esperar mais do que usualmente esperamos daqueles feitos para nos informarem no calor do momento, ou para nos mantermos atualizados sobre situações diversas.
A compreensão de que o livro-reportagem seria um objeto especial entre aqueles que o jornalismo faz circular é atualizada, no Brasil contemporâneo, por meio de falas como a de Daniela Arbex, para quem um de seus trabalhos, Holocausto Brasileiro, estaria mais próximo ao status do documento histórico que da cobertura jornalística fugaz. “O Holocausto Brasileiro é atemporal. Daqui 50 anos, quando alguém ler esse livro, ele vai continuar atual; vai continuar necessário e fundamental”, chegou a dizer (Amorim, 2020, para. 43). Ainda para a autora, o livro-reportagem se descola de certas práticas da imprensa, tomando um caminho que é suplementar:
acho que faz parte do nosso ofício dar visibilidade para temas importantes e pungentes. Pena que a imprensa não possa fazer isso com mais frequência. Nossas coberturas têm prazo, tem datas, e aí vejo uma vantagem do meu trabalho porque eu não tenho prazo, porque um livro é atemporal. (Autora de ‘Todo Dia a Mesma Noite’, Daniela Arbex diz: “Eu não abandono a minha pauta”, 2021, para. 4)
A seu modo, os autores de Brumadinho: A Engenharia de um Crime parecem indicar que reconhecem as condições dadas pelo livro-reportagem ao escreverem “a partir de uma visão privilegiada, (há) a intenção de entender o papel de cada personagem na engrenagem de um desastre ambiental e humano com consequências imensuráveis” (Ragazzi & Rocha, 2021, p. 12). Nos termos de Serra (2018), é o livro que possibilitaria superar uma repetição apresentada na cobertura periódica:
quando pensei em escrever um livro sobre o desastre da barragem de Fundão, um número não me saía da cabeça: os dezenove mortos na tragédia. Esse número se repetia no noticiário junto a muitos outros que procuravam traduzir a extensão de uma calamidade socioambiental jamais vista no Brasil: 34 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro despejados na natureza; cerca de 660 quilômetros percorridos pela lama no curso do rio Doce; 38 municípios atingidos; 14 toneladas de peixes mortos recolhidas no rio; centenas de milhares de moradores da bacia sem água potável. O jornalismo adora números. E, sem dúvida, eles são importantes. Mas não são capazes de traduzir a dimensão humana de uma catástrofe como essa. Não dão rosto à história. Era preciso mostrar esses rostos, revelar suas identidades, dar-lhes voz. (p. 14)
Tragédia em Mariana propõe contar, como informa o complemento do título da obra, “a história do maior desastre ambiental do Brasil”. Em 51 capítulos aborda o rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, em novembro de 2015, além da história de seu licenciamento, construção e operação. O livro traz também uma reflexão sobre a história da mineração em Minas Gerais e suas relações com políticos e órgãos de fiscalização. Em diversos capítulos dedica-se às vítimas dessa catástrofe - as que sobreviveram e as que sucumbiram, as que foram diretamente afetadas por elas e as que indiretamente sofrem seu impacto (Serelle & Pinheiro, 2021). A publicação, feita 3 anos após o desastre, investiga, põe alguns fatos em perspectiva. Por isto, uma de nossas hipóteses é que, em função deste prazo, resulta bastante diferente de Brumadinho: A Engenharia de um Crime, redigido e lançado no mesmo ano da catástrofe que tematiza, 2019.
Propomos então discutir, valendo-nos das duas obras, os modos de aproximação jornalística com tais acontecimentos a partir de três dimensões analíticas articuladas. Refletiremos, inicialmente, sobre possíveis implicações desse tempo de redação e investimento em apuração jornalística que revelam marcas de escuta e presença autoral- indícios de como os autores e autora apuraram as informações que constam em seus livros. Em seguida, lançamos mão da observação de traços de cada uma das obras naquilo que oferecem como elementos para compreender a maneira como as vítimas emergem enquanto personagens nessas histórias e as implicações éticas decorrentes das escolhas feitas por cada autor ou autora. Assim sendo, tratamos dos seguintes as pectos: personagens (s)em enredo, em que discutiremos quem são aqueles cujas histórias são contadas nesses livros e como isso se faz e com que possíveis efeitos; e projeto e paratextos, eixo por meio do qual discutiremos as intenções declaradas por cada autor-repórter (Marocco, 2020), bem como o quanto exploram ou não as potencialidades de um livro-reportagem no aspecto específico do desenvolvimento de personagens. Por fim, encaminharemos nossos comentários finais cotejando abordagens de outros repórteres sobre as representações de seus personagens para pensar como cada autor-repórter das obras que analisamos aqui se posiciona diante da catástrofe e que tipo de posicionamento jornalístico esta posição reflete.
2. Marcas de Escuta e Presença Autoral
Certas reportagens contemporâneas apresentam elementos metanarrativos por meio dos quais seus autores podem ponderar, por exemplo, sobre desafios enfrentados para a feitura de seu trabalho - éticos, de apuração e redação. Nas reportagens que abordamos neste trabalho, interessam-nos estes elementos metarrativos em função daquilo que indiciam: a qualidade do tempo dedicado pelos seus autores para a produção das obras. Ainda: estes elementos revelam a escuta dos repórteres de cada história, aqui entendida não apenas como um gesto passivo de audição das histórias alheias, seguido de sua transcrição e formatação em um texto que se diga jornalístico. A escuta, como sugere Eliane Brum (2021), estaria mais próxima da construção comum que repórter e sua fonte fazem de uma história, com implicações inclusive pessoais para ambas as partes:
ao escutar “empresto” meu corpo para as palavras de outre1. É uma experiência que se assemelha a uma possessão, mas não é. Meu corpo, eu, é um mediador ativo da outra voz. É evidente que, ao tornar essa voz palavra escrita por mim, a mediação delicada estará presente. É a narrativa de outre, a experiência de outre, as palavras de outre depois de atravessar o meu corpo. Mas o meu corpo não é um vazio absoluto pelo qual a narrativa de outre passa sem ser alterada pela experiência de passar por mim. (p. 60)
Por exemplo: Tragédia em Mariana traz um capítulo em que Serra relata um Natal passado junto de famílias atingidas, ainda no ano do rompimento da barragem de Fundão, 2013. A autora, que à época trabalhava para o programa televisivo Fantástico e estava empenhada na cobertura da catástrofe desde seus primeiros momentos, pôde escutar, da forma ativa como nós referimos - e trazer para esta narrativa -, uma série de elementos que indicavam o estado das famílias naquela circunstância. Maria Lúcia
não conseguia se acostumar ao ritmo e ao barulho da cidade. “Sinto falta da minha casa arejada, de sentir o ar correndo, entrando pelas janelas...” Também estranhava usar coisas doadas por anônimos ou compradas pela Samarco. Em algumas idas ao vilarejo em ruínas, recuperou pequenas peças de seu cotidiano desfeito. A capa do botijão de gás, panos de prato, toalhas de mesa, colchas, um liquidificador, garrafa térmica, louças, um edredom. “Lavei, clareei e estou feliz de usar coisas que eu usava lá em Bento Rodrigues”. ( ... ) Antes do almoço, dona Maria Lúcia comandou as orações. “Temos que agradecer a Deus porque estamos vivos. Não vamos esquecer, mas também não devemos ficar só olhando o passado. Tivemos uma lição de vida e temos que ser fortes para começar de novo”. (Serra, 2018, p. 100)
Por meio de passagens descritivas como esta, Serra informa que esteve junto aos atingidos no momento de suas elaborações iniciais e nos apresenta algumas delas. São falas de dor, bastante típicas de quem sofreu há pouco uma catástrofe, mas também de resiliência, capazes de já colocar em perspectiva algo tão desolador quanto a perda da própria casa e de diversos vínculos com a comunidade em que se viveu. Ao longo do livro, além de trechos que indicam a escuta de Serra nos primeiros meses que sucederam à catástrofe, aparecem também passagens por meio das quais se pode perceber a continuidade deste trabalho. No capítulo final de Tragédia em Mariana, por exemplo, retomam-se as histórias de algumas pessoas cujas trajetórias foram contadas na reportagem. Entre elas, a de Maria Lúcia:
em Mariana, a família seria acomodada numa casa na rua de Santana, perto do centro histórico. Foi lá que receberam a visita do ainda diretor-presidente da Samarco Ricardo Vescovi, que queria saber se estavam bem instalados. “Ele nos pediu desculpas. Estava acabado. Senti pena dele”, disse dona Maria Lúcia. À medida, porém, que as investigações revelaram o conhecimento dos dirigentes da mineradora sobre os riscos da barragem, os sentimentos mudaram. “Não senti dó mais, não. Mas eu o receberia de novo. Só tenho até a quarta série, mas ignorância é uma palavra que não está no nosso dicionário. Não se faz justiça com as próprias mãos”. (Serra, 2018, p. 444)
A escuta continuada a que nos referimos parece-nos fundamental para que falas como a de Maria Lúcia apareçam e permitam que sua constituição enquanto personagem de um livro-reportagem seja complexa. Ela é uma vítima que não pretende esquecer o que lhe foi feito, mas tampouco irá se fixar no horror; ela muda sua perspectiva em relação àqueles que são responsáveis pela catástrofe que alterou sua vida, mas preserva seus valores. Aparece, por meio das falas dispostas no livro, como uma personagem repleta de nuances - tal qual, imaginamos, seja no mundo histórico. Embora essa complexidade se apresente desde suas primeiras declarações, entendemos que o tempo ampliado da escuta jornalística permitiu que suas características singulares apareces sem mais uma vez, como se em uma confirmação.
Já em Brumadinho: A Engenharia de um Crime, que teve todo seu processo concluído no mesmo ano da catástrofe que narra, 2019, as marcas de escuta e presença de Ragazzi e Rocha são escassas. Neste trabalho, os trechos autorreferentes buscam destacar as fontes em que os autores se basearam para a feitura do trabalho, como quando escrevem que a “sequência de eventos narrada neste capítulo é construída, essencialmente, pelo cruzamento de dados feito pela equipe do delegado Luiz Augusto Nogueira” (Ragazzi & Rocha, 2021, p. 73), e mais adiante que
para escrever este livro-reportagem, os autores se basearam na farta documentação levantada pelos órgãos de investigação, em especial pela força-tarefa da Polícia Federal por meio do inquérito 62/2019, presidido pelo delegado Luiz Augusto Pessoa Nogueira, e também em entrevistas e depoimentos dados por personagens envolvidos direta ou indiretamente com a rotina de gestão, monitoramento e validação das condições da barragem I da mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho. (Ragazzi & Rocha, 2021, p. 209)
Há, neste livro, poucas passagens dedicadas às vítimas da catástrofe, entre as quais destaca-se o Capítulo V, “Enterrar Seus Mortos”. Nele, conta-se a história de Maria de Lourdes e sua família. Ela perdeu irmã e genro no deslizamento, e algum tempo depois viu seu sobrinho ser levado da cidade em que viviam, porque o pai da criança não conseguia mais morar ali - “caiu outra barragem em cima da gente” (Ragazzi & Rocha, 2021, p. 60). Tais histórias, porém, esgotam-se nesses termos, sem que sejam retomadas ou postas em perspectiva. Não sabemos, pela leitura do texto, portanto, o que se passou com as vítimas para além da catástrofe - e não podemos observá-las para além do que sentem no tempo em que a dor da perda é ainda mais candente. Pensando nos aspectos metanarrativos a este respeito, poucos elementos temos para saber de orientações éticas que os profissionais buscaram seguir tais como obter o consentimento informado das vítimas para relatar suas histórias e torná-las de domínio público e tomar os cuidados possíveis para evitar a chamada retraumatização. Tampouco pudemos perceber por meio dessas passagens se os autores se puseram junto às vítimas para escutá-las.
Embora sejam ambos livros-reportagem, Brumadinho: A Engenharia de um Crime e Tragédia em Mariana apresentam indícios de investimento autoral e investigativo muito diferentes. A atenção à documentação é significativa nos dois trabalhos, mas no livro de Serra divide espaço com um acompanhamento extensivo das vítimas, o que permite que apareçam de forma mais complexa no texto, como personagens nuançadas, que sofrem e põem a catástrofe em perspectiva - inclusive porque é de se esperar que, passado um tempo do choque inicial, outros sentimentos em relação ao trauma se manifestem. No livro de Ragazzi e Rocha, parece-nos que as vítimas aparecem como que para cumprir um papel previamente designado - e ele é menor em relação aos demais interesses do livro; a escuta dos autores, nesse trabalho, toma como norte a investigação policial e se manifesta com uma estrutura similar à da cobertura diária.
Não há prescrição quanto às formas de aproximação de um episódio no jornalismo, o que se pode fazer com recurso à investigação autoral, documental, antropológica, psicológica, ou policial, por exemplo. Nesse sentido, tanto as soluções adotadas por Serra quanto as de Ragazzi e Rocha são jornalisticamente validadas. O que buscamos observar aqui é se há uma diferença quanto à emergência das personagens, nesses trabalhos, quando se opta por um caminho ou outro, e o que merece atenção nesses casos. Nesse sentido, chamamos atenção para o efeito que decorre de o repórter empenhar sua presença e sua escuta junto às vítimas: funciona como o reconhecimento de que as palavras dessas pessoas têm um valor em si, sem intermediações, junto da palavra do repórter. Lembramos que as histórias produzidas jornalisticamente podem reincidir so bre as pessoas, no mundo histórico. Nestes casos, pessoas que tiveram uma trajetória de lutas fortemente marcada pela catástrofe que as abalou. Convém assim refletir se um determinado modo de emergência as posiciona junto aos leitores mais como o que são em um contexto de disputas - agentes, sujeitos - ou como o que são conforme uma mediação simplificadora, tal qual uma peça de investigação policial, como algo próximo de depoentes, pessoas cuja fala têm um propósito mais delimitado.
3. Projeto e Paratextos
O privilégio que mencionamos ser dado em Brumadinho: A Engenharia de um Crime para a investigação policial e aos investigadores que atuaram no caso do rompimento da barragem B1, em Córrego do Feijão, é explícito desde a capa do livro. Nela, além do título e de uma fotografia em que se vê um escritório inteiramente manchado por lama, lê-se que o livro-reportagem é “baseado nas investigações dos delegados da polícia federal Cristiano Campidelli, Luiz Augusto Pessoa Nogueira, Rodrigo Teixeira, (e) Roger Lima de Moura”; os nomes negritados, como se assinassem junto de Ragazzi e Rocha a autoria da obra. Ao final do livro, uma fotografia destes policiais abre uma secção de imagens, antecedendo outra em que se veem os jornalistas e um bombeiro; retratos das vítimas não há. Em secção intitulada “Por Que Este Livro?”, anterior ao Capítulo I e posterior aos agradecimentos, os autores escrevem que
não há na narrativa uma busca por punitivismo nem por vingança, muito menos o propósito de se elegerem ou de se personificarem heróis e vilões. Há, sim, a partir de uma visão privilegiada, a intenção de entender o papel de cada personagem na engrenagem de um desastre ambiental e humano com consequências imensuráveis. O conteúdo publicado neste livro não está sob segredo de Justiça, tendo sido obtido por meio de entrevistas e acesso autorizado a documentos públicos, depoimentos e partes dos processos judiciais destituídas de sigilo ou já publicadas pela imprensa. (Ragazzi & Rocha, 2021, p. 12)
Inexiste, nos paratextos ou mesmo em passagens de Brumadinho: A Engenharia de um Crime, o apelo de uma “história não contada”, ou da “catástrofe vista pela perspectiva das vítimas”; nesse sentido, o livro é direto no cumprimento daquilo que propõe: abordar a história desde o que dispõe sua investigação policial. A ausência de menções que indiquem escuta próxima das vítimas da catástrofe nos dá elementos para pensar as questões que colocamos neste trabalho, acerca de suas condições de emergência: se elas sequer são consideradas na proposta do livro, então não haveria porque ler a obra considerando os modos como aparecem no texto. O problema, porém, é que, a despeito do foco declarado por Ragazzi e Rocha, as personagens vítimas da catástrofe aparecem -- em termos protocolares -, como os descritos na sessão anterior, ou, mais de uma vez, apenas mencionadas em listas.
Tragédia em Mariana, por sua vez, põe em destaque as vítimas da catástrofe que narra em diversos de seus paratextos, além de, como dissemos, tematizar capítulos com suas histórias. Na capa, o que se observa é uma vasta área coberta por lama em que trabalham alguns socorristas; e já em suas primeiras linhas se lê que o “livro é dedicado às vítimas da maior tragédia socioambiental do Brasil”, com menção direta a duas delas - Romeu Arlindo e Paula Geralda Gomes -; apresentação, miolo e fotografias reforçam atenção a esses personagens. Na apresentação, por exemplo, Serra (2018) declara que
compreender uma tragédia dessa magnitude em suas múltiplas perspectivas não estaria ao meu alcance sem a extrema generosidade e a confiança dos que me contaram suas histórias de vida, antes e depois do dia 5 de novembro de 2015. Entre eles, estão os parentes daqueles que foram tragados para sempre pelos vagalhões de lama; as vítimas que sobreviveram, machucadas no corpo e na alma; e dezenas de moradores da bacia do rio Doce de alguma forma afetados, seja com a perda de laços comunitários, de patrimônio, de emprego ou de seu sustento, antes proporcionado pelo rio. (p. 14)
Personagens, como dissemos, são centrais para livros-reportagem. Além das histórias sobre catástrofes como as citadas na abertura deste trabalho, protagonizam célebres obras como O Jornalista e o Assassino, da jornalista americana Janet Malcolm (1990/2011), O Segredo de Joe Gould, do escritor americano Joseph Mitchell (1965/2003), e Ricardo e Vânia, do jornalista brasileiro Chico Felitti (2019). Há livros-reportagem em que as personagens parecem ocupar papel menos central, como indivíduos cuja história singular se destaca e que aparecem bem constituídos, mas aparecem fortes no texto como vários outros, caso de Fama & Anonimato, do estadunidense Gay Talese, e, ainda que de modo diferente, de República das Milícias, do jornalista brasileiro Bruno Paes Manso (2020), livros em que o protagonismo parece distribuído entre várias histórias de vida, abordadas de forma complexa mas sem elementos que apresentem maior aprofundamento na caracterização biográfica. Os repórteres têm autonomia para abordar os personagens em escopo e intensidade, está claro, e o que propomos pensar aqui é como os livros analisados exerceram essa prerrogativa. Conforme os elementos paratextuais que analisamos, portanto, observamos uma diferença nessa empreitada: em Tragédia em Mariana, os personagens, principalmente os que são vítimas da catástrofe, são figuras destacadas; ao passo que, em Brumadinho: A Engenharia de um Crime, o privilégio é dado aos investigadores - cumpre pensar com que efeitos.
4. Personagens (S)em Enredo
Se Tragédia em Mariana apresenta uma ampla gama daqueles que se podem considerar atingidos pela catástrofe, conforme citação destacada anteriormente, há nele também o empenho de colocar suas histórias em enredo. Assim, sabemos que o
químico Marcos Aurélio Pereira de Moura, 34 anos, estava num momento especial da vida. Em ascensão profissional na empresa Produquímica, de São Paulo, comprara havia pouco tempo o apartamento onde morava com a mulher, Lira, 32. Os dois tinham planos. (Serra, 2018, p. 63)
O Marcos foi uma das 19 pessoas que morreram com a enxurrada de lama e sua história aparece por meio do que diz sua companheira, como que tecendo uma homenagem. Filomeno da Silva, “historiador informal de Bento Rodrigues” (Serra, 2018, p. 286), fala da perda de sua casa, mas antes recupera diversos elementos de sua trajetória - fundou clube de futebol, associação comunitária, zelava pela igreja da comunidade. O esforço para contar as histórias de vivos e mortos é uma marca deste trabalho; a catás trofe que atravessa todos os personagens é como o motor deste livro-reportagem, mas são as trajetórias singulares de pessoas afetadas por ela que imprimem o movimento. Colocar as personagens em enredo significa incorporar suas histórias à narrativa, para além de um papel pré-estabelecido que lhes tenha sido designado, como o de exemplificar determinado fenômeno; significa, neste caso, que contar a história da maior tragédia socioambiental do Brasil é também contar as histórias de pessoas atingidas por ela, dando vez não só aos elementos mais diretamente ligados à catástrofe como a eventos que permitam caracterizar as vidas desses personagens de modo mais abrangente.
Brumadinho: A Engenharia de um Crime não parece ter essa abertura. Chega a explorar narrativamente eventos ocorridos com os investigadores: “no dia 9 de julho de 2016, ignorando o clima frio do início da noite, o delegado Roger parou o carro perto de casa e caminhou até um bar na vizinhança” (Ragazzi & Rocha, 2021, p. 43). Todavia, quando aborda as histórias das vítimas, ocorre de apenas mencionar uma sequência de acontecimentos corriqueiros de suas vidas, como acontece no Capítulo XII, “Em Busca das Últimas Jóias”, dedicado ao esforço das equipes de resgate na busca por desaparecidos, passados mais de 200 dias da catástrofe. Sobre Robert Ruan, auxiliar-geral desaparecido na enxurrada, escrevem que foi
atacante do time amador Brumadinho Futebol Clube, ele sonhava em ser jogador profissional - chegou a fazer testes no Atlético, mas foi recusado para as categorias de base. Três meses antes da tragédia, o irmão mais velho de Robert foi assassinado. (Ragazzi & Rocha, 2021, p. 174)
O recurso, aqui, parece ser o de abordar uma vida por meio de um sequenciamento de eventos que, no entanto, não influenciam os rumos da narrativa e se esgotam logo que apresentados, visto que esses personagens e suas histórias não retornam no texto. Sobre outros trabalhadores, escrevem:
o soldador e mecânico Renato Eustáquio de Souza, de 31 anos, estava vivendo um dia importante, cheio de expectativas. Após nove anos na Vale, ele participava de treinamento na mina do Córrego do Feijão. Se tudo corresse bem naquela sexta-feira, ele seria promovido e poderia ajudar ainda mais a mulher na criação das duas filhas. O lubrificador de máquinas e equipamentos Tiago Tadeu Mendes da Silva, de 34 anos, com poucos meses de trabalho no complexo em Brumadinho, não via a hora de retornar para casa, no Barreiro, em Belo Horizonte, para curtir os filhos no último final de semana de janeiro - um menino, recém-nascido, e uma menina, de 4 anos. Pouco depois do meio-dia do dia 25 de janeiro de 2019, Tiago, como fazia sempre, se dirigiu para o refeitório da Vale. No cardápio, havia feijoada. (Ragazzi & Rocha, 2021, p. 171)
Entendemos que há uma diferença entre dispor uma série de acontecimentos - como a perda de um parente, o almoço do dia, uma promoção - e uma narrativa a seu respeito, que buscaria concatená-los, dar-lhes sentido, ou até articular uma homenagem, como ocorre, muitas vezes, nos relatos sobre pessoas que faleceram - possibilidade que emerge, provavelmente, do contato direto com as vítimas sobreviventes. Em Brumadinho: A Engenharia de um Crime, as histórias das vítimas não parecem influir na narrativa, não são postas em enredo - parece que neste livro seria possível contar a história da catástrofe sem recorrer às trajetórias singulares das pessoas afetadas por ela. Quando se aproximam dessas histórias, os repórteres o fazem ao modo do documento policial, com uma escuta cujo objetivo é claro: a produção de uma peça de denúncia. As vítimas se revelam, assim, a partir de artefatos documentais mais afeitos a outros campos, como os procedimentos periciais forenses ou médicos, aparecendo a partir de laudos ou exames. Detalhes e vestígios que constituem a “materialidade das vítimas” e certificam sua existência, mas, contrariando em parte a ação do autor-repórter, obliteram os elementos para uma outra aproximação jornalística e seus modos de interpelação da dor e do sofrimento que se quer escutar.
Por meio dessa abordagem, sabemos que certas pessoas são vítimas, mas não como o são. Cumpre dizer que isto é fato conhecido desde que seus nomes foram primeiro listados como os de indivíduos que perderam vidas ou pessoas próximas na enxurrada de lama.
5. Aproximações e Distanciamentos
Entendemos que o modo singular como muitas das vítimas são apresentadas no livro de Serra, com atenção às suas trajetórias individuais, está ligado a modos de escuta e proximidade que a autora propôs ter com elas, conforme indicam passagens destacadas em “Marcas de Escuta e Presença Autoral”, e também de compromissos que declara na apresentação de seu livro, como os indicados em “Projeto e Paratextos”. A repórter se pôs em cena, e daí deriva sua perspectiva: mais próxima das pessoas que foram atingidas pela catástrofe - diríamos também que mais aprofundada, em consonância com o que pode ser um livro-reportagem.
Caminho diferente é o de Brumadinho: A Engenharia de um Crime, no qual a proximidade com as vítimas não parece ser decisiva. Na constituição deste livro-reportagem, Ragazzi e Rocha privilegiaram outra forma de abordar a catástrofe - por meio da investigação policial em seu entorno. Também daí deriva sua perspectiva narrativa e as condições de emergência das vítimas, que aparecem mais como depoentes: suas trajetórias não parecem direcionar o documento que produzem, cujo objetivo declarado é o de contar a história da investigação policial. Os atingidos, neste trabalho, não são sondados nem mesmo em sua posição sobre essa investigação - sua celeridade, aparente eficiência, cuidado ou impactos que produziriam em suas vidas.
Tais diferenças e nuances dizem respeito não apenas a procedimentos internos ao fazer jornalístico, mas, na chave de uma análise cultural, tratam da percepção do jornalismo como prática contextual e situada (Escosteguy, 2012; Zelizer, 2017). Tanto a maneira de permitir a emergência da palavra das vítimas como o modo mesmo de lidar com o relato de acontecimentos catastróficos assinalam modos culturais particulares que se cristalizam nesse jornalismo encarnado contemporaneamente no livro-reportagem bra sileiro. Por um lado, destaca-se uma espécie de elogio da anonimidade, pela celebração da vida comum; isso que Eliane Brum (2012) traduziu como “insubordinação do olhar”, o gesto de “contar os dramas anônimos como os épicos que são, como se cada Zé fosse um Ulisses, não por favor ou por caridade, mas porque cada Zé é um Ulisses” (p. 187).
No livro-reportagem assim conformado ganha realce a apresentação de uma parateoria, que parece tocar enfaticamente em pontos como a dimensão ética do encontro com o outro, as possibilidades e impossibilidades da linguagem para dar conta da experiência no jornalismo contemporâneo. As reportagens, além de incorporarem a reflexividade, expressam menos segurança para falar do real. Nelas o que percebemos é a suspensão da autoridade narrativa em face a um mundo que parece difícil de ser interpretado. Diante daquilo que é complexo, o narrador pergunta recorrentemente como abordá-lo.
Noutra perspectiva, apoiando-se em abordagens e epistemes características de outros campos (a apuração judicial; a investigação policial), a forma cultural do livro-reportagem da catástrofe atualiza a reinvindicação jornalística de pôr a ancoragem narrativa em “fatos”, “verdade” e “realidade” dos acontecimentos do mundo. Reitera, assim, que sua legitimidade se funda na capacidade narrativa de indexar e referencializar o mundo dos acontecimentos trágicos alicerçado na apresentação da “história” das vítimas, sobretudo as vítimas fatais, com relatos que tendem a uma “exaltação” dos personagens a partir de uma normatividade da condição contemporânea de vítima.
Não discutimos aqui a “precisão” com que as representações das vítimas se deram, mas reconhecemos a importância de buscar fazê-las mais nuançadas, o que nos livros analisados aparece como consequência de um tipo de proximidade assumida ou apenas “sugerida” pelos autores com as pessoas cujas histórias se contam. No limite, uma representação jornalística será sempre incompleta em relação ao sujeito que a inspirou, como reconhece Fabiana Moraes (2015) acerca de Joicy, foco da reportagem O Nascimento de Joicy, em que acompanhou a redesignação de gênero e outras transformações na vida desta camponesa. Ao refletir sobre o reconhecimento que o trabalho obteve com o Prêmio Esso de Reportagem, Moraes (2015) observa que ele foi dado ao recorte midiático que ela produziu da personagem, pois “Joicy, claro, é bem maior que a série na qual a retratei” (p. 19). Também Agee e Evans (1939/2009) demonstram ciência da distância que um personagem jornalisticamente construído mantém em relação ao indivíduo sociohistórico a que se refere. Para os autores, contudo, esta precariedade da equivalência não justifica que se abra mão da tentativa de narrá-los. Escrevem:
devo mediar, devo tentar registrar as vidas humanas, estranhas e cálidas de cada um de vocês em relação a seu mundo.
E isso também não pode ser feito levianamente: levianamente não, nem brevemente, de forma alguma: e nem com qualquer esperança de “sucesso”. (Agee & Evans, 1939/2009, p. 107)
A proximidade com pessoas tornadas personagens parece, ainda, ter um custo pessoal alto para os repórteres. Mitchell (1965/2003), por exemplo, relata as implicações pessoais que lhe tocaram após a publicação de “Professor Sea Gull” (O Professor Gaivota), em que tematizou a história de Joe Gould, homem pobre que se apresentava como escritor na boêmia Greenwich Village. Publicada a reportagem, o artista exibicionista não deixou de procurá-lo, pedindo que lhe ouvisse mais, que escrevesse mais, que contribuísse financeiramente, que dividisse com ele seu espaço de trabalho, na redação de The New Yorker - até que romperam. De forma semelhante, Moraes (2015) conta sobre cobranças que Joicy lhe fazia - mais: sobre a desconfiança que a mulher lhe apresentou após muitos meses de trocas e acompanhamento próximo.
“Há inclusive quem diga que você vem ficando com todo o dinheiro que deveria me dar”, disse Joicy, falando de um telefone a quase 300 quilômetros de distância de mim. Eu estava quase acostumada a ouvir absurdos de diferentes graus nas conversas que mantínhamos há mais de um ano, mas a frase foi fulminante. Primeiro, me calou. Depois, estapeou. Veio uma indignação triste, comedida, aquela que nos mostra claramente que, dali em diante, nenhuma ação será proveitosa ou ajudará na manutenção das coisas, pelo contrário: é preciso parar. (Moraes, 2015, p. 91)
Ainda para Moraes (2015), dor, suor, assombro e alegria “invariavelmente estão presentes na relação estabelecida entre jornalista e personagem - principalmente quando esta relação ultrapassa um breve encontro permeado por algumas perguntas, um ‘muito obrigada’ e um ilusório ‘até logo’” (p. 17). Como o Gould que reconhece ter sido socialmente visto por um novo prisma desde que sua vida foi contada por Mitchell, os personagens de uma narrativa jornalística ganham uma nova camada de existência, uma vez narrados - aqui reside parte da responsabilidade ética dos repórteres, e por isso seria ilusório o “até logo” que as partes se dizem. Os aspectos que concernem à questão das vítimas-personagens, tais como sua conceituação, os aspectos normativos relacionados com a formulação de suas histórias, as dimensões afetivas e o papel da empatia na abordagem de tais sujeitos e a ética no uso de tais relatos não se resolvem apenas no anúncio feito por esses projetos jornalísticos de que ouvir as histórias das vítimas faz parte de sua prática como instrumento de ações que visam ampliar o conhecimento público e a reparação de direitos.
É possível, como parece ter sido o caso de Brumadinho: A Engenharia de um Crime, manter um distanciamento ampliado das pessoas cujas histórias se contam. Isso que, no caso de Ragazzi e Rocha, fizeram por meio do privilégio dado ao documento policial, não cria, porém, solução ética para o problema que é colocar no mundo uma representação que, como sabemos, pode reincidir sobre essas pessoas. Ao não percebermos ênfase em questões sobre como lidar com histórias pessoais de vítimas, acerca do equilíbrio moralmente delicado entre ouvir tais histórias e difundi-las, por meio da estratégia adotada no livro, as vítimas aparecem como personagens cujas trajetórias singulares têm menor importância, cujas falas têm um lugar preestabelecido, mais ao modo de como o jornalismo diário realiza sua cobertura noticiosa que como um livro-reportagem pode abordar uma catástrofe.
6. Considerações Finais
Conforme apontamos na apresentação deste texto, muitos livros-reportagem produzidos no século XX tematizaram catástrofes. Hiroshima, de Hersey (1946/2017), é emblemático - “nenhuma outra reportagem na história do jornalismo teve a repercussão de Hiroshima. Os cerca de 300 mil exemplares da revista The New Yorker com data de 31 de agosto de 1946 no cabeçalho esgotaram-se rapidamente nas bancas”, conta-nos Suzuki (1946/2017, p. 161). “Do país todo e do estrangeiro chegavam à redação pedidos de autorização para a reimpressão da matéria” (Suzuki, 1946/2017, p. 161). O que esta reportagem trouxe de mais especial foi o foco nas vidas de seis pessoas - entre as milhares - atingidas pela bomba, e por meio dele sabemos melhor como a cidade e as pessoas foram destroçadas pela bomba.
O enfoque sobre as vidas das pessoas atingidas por uma catástrofe como a da explosão da usina nuclear de Tchernóbil em 1986 também foi o que deu a Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch (1997/2016), seu prestígio e reconhecimento. Sua obra, composta de outros livros em que a autora investiga “a história do socialismo ‘doméstico’, do socialismo ‘interior’. Aquele que vivia na alma das pessoas” (Kuruvilla, 2016, para. 10) e feito de ainda outras catástrofes, recebeu um Prêmio Nobel.
No Brasil e contemporaneamente, muitos livros-reportagem têm se dedicado às catástrofes que acontecem em nosso país. A repórter Daniela Arbex, de fato, parece estar se especializando nessas histórias. Entre seus livros, estão Holocausto Brasileiro, em que conta a história do Hospital Colônia, em que cerca de 60.000 pessoas julgadas doentes ou inadequadas para a sociedade brasileira dos anos XX morreram; Todo Dia a Mesma Noite, sobre o incêndio que no ano de 2013 foi acendido em uma boate mais que cheia no sul do Brasil e deixou 242 vítimas mortais, e Arrastados, sobre o rompimento da barragem de Brumadinho.
Na maioria desses livros - aqui incluímos o de Cristina Serra -, a centralidade das fontes é notável e muitas vezes declarada por meio de afirmações como as que analisamos em “Projeto e Paratextos”. A preocupação em contar as histórias das vítimas sobreviventes e mortais está no horizonte dos livros-reportagem sobre catástrofes no Brasil, portanto. Contudo, para que esse horizonte seja eticamente forte, não basta a intenção de narrá-las e é preciso que seus autores indiquem também uma preocupação acerca do modo como o fazem - o que indicamos em “Marcas de Escuta e Presença Autoral”. Por meio dos livros que cotejamos aqui, percebemos duas perspectivas. Uma se coloca próxima às personagens, como a de Cristina Serra, e parece perseguir esse horizonte eticamente forte de que falamos. A outra, que aborda as personagens sem, contudo, tomar suas trajetórias pessoais como definidoras para a história de catástrofe que conta, como fazem Ragazzi e Rocha, indica outro posicionamento - este ancorado em práticas jornalísticas validadas nas práticas mais comuns em redações periódicas, mas que nos parece carente complexidade que faça justiça à dimensão sensível das histórias que narra. As duas perspectivas, ao reivindicarem, por um lado, a narrativa jornalística alicerçada na tradição de apresentar os “fatos”, a “verdade” e a “realidade”, ou, por outro lado, que a narrativa opere com protocolos calcados na reflexividade, na força da subjetividade e no engajamento, apontam a relevância de compreender os livros-reportagem e seus jornalismos como uma forma cultural, cuja análise os perceba enquanto práticas contextuais e situadas.