Introdução
A psitacose, também conhecida como ornitose, é uma infeção causada por Chlamydia psittaci (C. psittaci) transmitida aos seres humanos predominantemente a partir de pássaros psitacinos. Provocam uma doença disseminada caracterizada por pneumonite e que está englobada nas pneumonias atípicas.1 Caracteriza-se por um quadro com manifestações sistémicas proeminentes e alguns sintomas respiratórios.1 Numa meta-análise de estudos observacionais, a C. psittaci foi estimada como causadora de aproximadamente 1% dos casos de pneumonia adquirida na comunidade (PAC). Surtos ocorrem entre trabalhadores que manuseiam perus e patos em instalações de processamento de aves. No entanto, é difícil estabelecer a incidência e prevalência precisas da psitacose, provavelmente devido à falta de testes de rotina.2 A transmissão acontece, na maioria dos casos, por aerossóis, inalação de urina, fezes ou outras partículas contaminadas. Tem um período de incubação que varia de cinco a 14 dias, mas é extremamente variável, podendo estender-se por semanas em casos de infeção subaguda ou latente. Tem uma apresentação clínica semelhante a uma síndrome gripal.1,2 Pouca informação epidemiológica acerca deste agente está disponível para Portugal. Neste manuscrito, descrevemos um caso clínico de uma doente de 50 anos com pneumonia a C. psittaci.
Caso clínico
Doente do género feminino, 50 anos, casada, com três filhos. Apresenta como antecedentes pessoais obesidade grau II (Índice de massa corporal de 35,2), não fazendo nenhuma medicação crónica, sendo totalmente independente para as atividades de vida diária (AVD´s).
Concluiu o sexto ano de escolaridade e trabalha num armazém agro-avícola desde há vários anos. Reside com o marido e com dois filhos, uma família classificada como nuclear, na fase VI do Ciclo de Vida de Duvall.
Foi observada num Serviço de Atendimento Permanente (SAP) por quadro de dispneia, tosse seca, toracalgia, cansaço generalizado e febre com três dias de evolução, tendo sido medicada sintomaticamente com paracetamol, tiocolquicosido e nimesulida. Não foi realizado qualquer meio complementar de diagnóstico (MCDT).
Por agravamento da sintomatologia, passados dois dias, foi novamente observada no Centro de Saúde (CS). Iniciou amoxicilina 875 mg + ácido clavulânico 125 mg, per os bi-diário (bid), e budesonida 160 μg/dose + formoterol 4,5 μg/dose, uma inalação bid.
Por manter agravamento progressivo do quadro clínico, apesar da terapêutica instituída, ao nono dia de doença e quinto dia de antibioterapia empírica dirigiu-se ao Serviço de Urgência (SU), onde realizou radiografia torácica, Fig. 1, que revelou “…opacidade na topografia do lobo superior direito, compatível com pneumonia lobar…” e análises clínicas cujos resultados estão na Tabela 1. Destaca-se marcada elevação da proteína C reativa (PCR) e das transaminases hepáticas. Realizou ainda ecografia abdominal que revelou “hepatomegalia homogénea com maior eixo de 22,5 cm. Sem outros achados dignos de referência”. Foi então medicada com levofloxacina 500 mg, per os de toma única diária (id), que cumpriu apenas 3 tomas por intolerância.
Apesar da terapêutica anterior instituída, a doente permaneceu sempre consideravelmente sintomática, com tosse seca, cansaço para as AVD´s e dispneia. Dirigiu-se então pela segunda vez ao SU, no 12º dia de doença, onde após uma anamnese mais detalhada foram pedidos os anticorpos anti-Chlamydia psittaci (IgG e IgM) que se revelaram ambos positivos. Foi então medicada com doxiciclina 100 mg, per os bid, durante 10 dias, e azitromicina 500 mg, per os id, durante três dias.
9º dia de doença | 2 semanas após início de terapêutica dirigida | Valores de referência | |
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Leucócitos (103/μL) | 8,6 | 6,3 | 4,0-10,1 |
Neutrófilos (103/μL) | 6,3 | 3,06 | 1,5-8,0 |
Eosinófilos (103/μL) | 0,13 | 0,13 | 0,0-0,3 |
Basófilos (103/μL) | 0,03 | 0,02 | 0,0-0,3 |
Linfócitos (103/μL) | 1,69 | 2,72 | 0,8-4,0 |
Monócitos (103/μL) | 0,45 | 0,32 | 0,0-1,2 |
Aspartato aminotransferase (UI/L) | 31 | 35 | 15-37 |
Gama-glutamil- -transpeptidase (UI/L) | 127 | 73 | 5-55 |
Fosfatase alcalina (ALP) (UI/L) | 197 | 130 | 50-136 |
Proteína C reativa (PCR) (mg/dL) | 29,33 | 1,42 | 0,06-1,00 |
Gasometria arterial realizada ao 9º dia de doença no SU | |||
pH | 7,522 | 7,37-7,45 | |
pCO2 (mmHg) | 32,5 | 35-46 | |
pO2 (mmHg) | 61,7 | 70-100 | |
HCO3- (mmol/L) | 26,1 | 21-26 | |
BE (B) (mmol/L) | 3,7 | -2 - +3 | |
SatO2 (%) | 91,5 | >96 | |
Lactato (mmol/L) | 1,19 | <1,8 |
pO2 (pressão parcial de oxigénio); pCO2 (pressão parcial de dióxido de carbono); HCO3 (bicarbonato); BE (base excess); SatO2 (saturação de oxigénio arterial)
Foi reportada uma melhoria progressiva do quadro clínico, encontrando-se completamente assintomática após sete dias do início da terapêutica dirigida. Nas análises de reavaliação, duas semanas após o início da terapêutica dirigida, observam-se parâmetros inflamatórios e de função hepática em perfil descendente (Tabela 1), com melhoria sintomática significativa. Na Fig. 2 está representado o percurso e evolução clínica da doente.
Discussão
O agente causal da psitacose é a C. psittaci, bactéria gram-negativa, hospedeiro intracelular obrigatório.2-4 A maioria dos doentes com psitacose tem um histórico de contacto com pássaros. C. psittaci foi documentada em pelo menos 460 espécies de 30 ordens de aves, incluindo perus, faisões, galinhas5 e até avestruzes e pinguins.6) Em França, os patos mulard estão associados a doenças humanas, embora funcionem como reservatório ou portadores assintomáticos. Cada ordem de ave tende a ser infetada por um genótipo predominante de C. psittaci.7
O órgão humano mais acometido é o pulmão, manifestando-se como tosse seca e dispneia. Não existem características radiológicas que permitam diferenciar a pneumonia por psitacose da pneumonia por outras causas. Os principais diagnósticos diferenciais da psitacose são outras causas de pneumonia atípica. Os achados mais frequentes são consolidação segmentar (31%) e consolidação lobar (21%), as quais ocorrem principalmente nos lobos inferiores.1 A contagem de células leucocitárias é geralmente normal, podendo ocasionalmente haver marcada leucocitose. A PCR está frequentemente elevada. As enzimas hepáticas estão alteradas em aproximadamente metade dos pacientes hospitalizados, geralmente com elevação leve do aspartato aminotransferase e baixos níveis séricos de albumina.8
As tetraciclinas são o fármaco de eleição para o tratamento da psitacose. A doxiciclina (100 mg per os bid) geralmente produz uma resposta clínica rápida em pacientes com doença leve a moderada. Embora a duração ideal da terapia para a psitacose não tenha sido determinada, geralmente opta-se por um período entre 7 a 10 dias. Outros agentes têm sido propostos como alternativas. Os macrólidos são frequentemente usados no tratamento da PAC na ausência de um diagnóstico microbiológico e têm grande probabilidade de serem eficazes contra a psitacose. Um macrólido, como eritromicina ou azitromicina, é geralmente recomendado como terapia de segunda linha quando as tetraciclinas são contraindicadas.10,11
Conclusão
Este relato de caso demonstra a necessidade de realizar sempre uma adequada anamnese, revelando-se preponderante para o sucesso diagnóstico e terapêutica dirigida. Neste caso, dada a evolução clínica inicial desfavorável optou-se pela realização de antibioterapia dupla, com melhoria progressiva da sintomatologia.
A psitacose é um diagnóstico diferencial importante a ser considerado em situações de pneumonia comunitária que não responde à antibioterapia convencional, que evolui de modo insatisfatório e cuja epidemiologia é positiva para exposição às aves. O tratamento precoce é fundamental no prognóstico devido à boa resposta terapêutica.