Introdução
Os primeiros casos de infeção pelo vírus SARS-CoV-2 foram diagnosticados em Wuhan, no final de 2019.1 Desde então, o surto pela doença cresceu de forma descontrolada a nível mundial.
Em Portugal, os primeiros casos foram reportados a 2 de março de 2020.2 A 18 de março, uma semana após a doença ser caraterizada pela Organização Mundial da Saúde como pandemia,3 foi declarado o primeiro estado de emergência no nosso país.4 Verificou-se um aumento exponencial do número de casos, mais acentuado no último trimestre de 2020, e a 24 de fevereiro de 2021 foi ultrapassada a barreira das 800 000 infeções em Portugal.5
A pandemia afetou de forma dramática a prestação de cuidados de saúde à população e os cuidados de saúde primários não foram exceção.6,7 A sobrecarga de cuidados e tarefas alterou-se de tal forma que a COVID-19 passou a ser o foco da atenção de muitos médicos (de família e não só), surgindo como a principal hipótese diagnóstica em grande parte das consultas médicas por doença aguda.
O presente caso clínico pretende ilustrar que “nem tudo o que parece, é” e alertar para a necessidade de uma anamnese cuidada e abordagem abrangente e holística, características da Medicina Geral e Familiar (MGF).8
Caso Clínico
Apresenta-se o caso de uma mulher de 43 anos, autónoma, desempregada, com o 9º ano de escolaridade. É casada e reside com o marido e dois filhos (de 20 e de 18 anos), enquadrando-se, portanto, numa família nuclear, no estádio cinco do ciclo de vida familiar de Duvall.9
Esta utente tinha como antecedentes pessoais: perturbação de ajustamento, fibromialgia e adenomiose uterina. No que diz respeito a este último problema, apresentava um mioma dominante com 37 mm de maior eixo, razão pela qual se encontrava a aguardar histerectomia (previamente agendada, mas adiada devido à pandemia). Tinha como antecedentes obstétricos três gestações, com dois partos por cesariana e um abortamento espontâneo durante o primeiro trimestre (em 2018). Não tinha alergias medicamentosas conhecidas. Estava habitualmente medicada com duloxetina 60 mg/dia; lorazepam 1 mg/dia; desogestrel 0,075 mg/dia.
A utente contactou a linha SNS24 a 09/04/2020 por apresentar cefaleia, náuseas, disgeusia, odinofagia, tosse, dispneia, mialgias e cansaço com três dias de evolução. Negava febre ou outras queixas. Negava contacto com pessoas com COVID-19 confirmada ou suspeita. Face a este quadro, foi orientada para avaliação numa Área Dedicada a Doentes com Suspeita de Infeção Respiratória Aguda nos Cuidados de Saúde Primários (ADR-C).
Segundo a avaliação médica no ADR-C, realizada no próprio dia, a utente encontrava-se apirética (35,6ºC), com saturação de oxigénio de 98% em ar ambiente, ligeiramente taquicárdica (frequência cardíaca de 103 batimentos por minuto) e não apresentava sinais de dificuldade respiratória. A pele e as mucosas estavam coradas e hidratadas, o tempo de preenchimento capilar e a auscultação cardíaca e pulmonar eram normais. Foi colocada como principal hipótese diagnóstica a COVID-19, foi emitido teste de pesquisa de RNA de SARS-CoV-2 por RT-PCR, prescrito paracetamol para controlo álgico e foram fornecidas recomendações de autocuidados em contexto de isolamento domiciliário.
A doente, cuja médica de família se encontrava ausente do serviço, foi contactada pela primeira vez no dia 16/04/2020 no âmbito da vigilância dos utentes com suspeita ou confirmação de infeção por SARS-CoV-2 através da plataforma Trace COVID-19®. Foram exploradas as suas queixas, que se mantinham sobreponíveis ao previamente descrito. Face às náuseas e ao cansaço reportados, questionou-se quanto à possibilidade de uma eventual gravidez, que a utente negou. Questionada acerca da regularidade da toma do anticoncecional, referiu esquecimentos esporádicos e amenorreia desde janeiro de 2020, que a própria atribuía aos seus antecedentes de adenomiose.
Atendendo à estabilidade do quadro clínico e ao facto do resultado do teste de pesquisa de RNA de SARS-CoV-2 ainda não estar disponível foi programado um novo contacto telefónico para o dia seguinte.
Ao receber o resultado do teste para COVID-19, que foi negativo, a utente decidiu realizar um teste de gravidez no seu domicílio, cujo resultado foi positivo.
Durante a consulta telefónica de reavaliação a utente referiu que esta gravidez não era desejada e reportou um agravamento sintomático marcado, sobretudo à custa de dor abdominal suprapúbica e náuseas incapacitantes. Por este motivo, foi referenciada ao serviço de urgência de Obstetrícia do hospital da área de residência.
Na avaliação realizada no serviço de urgência encontrava-se apirética, sem sinais de dificuldade respiratória e sem alterações na gasimetria arterial que lhe foi efetuada. Foi-lhe realizada uma ecografia, cujo relatório foi: “Gravidez intrauterina. Feto de 48 mm (≈11 semanas), com atividade cardíaca e corporal presentes. Líquido amniótico normal”.
Assim sendo, a utente foi informada sobre o tempo de gestação e foi-lhe dada alta, com indicação para suspender a duloxetina e proceder ao agendamento das consultas de vigilância da gravidez na sua Unidade de Saúde Familiar.
Discussão
Existem vários pontos que merecem reflexão no caso descrito.
Um deles é a diversidade dos sinais e sintomas a que se associa a COVID-19.10-11 Nos doentes com COVID-19 têm sido reportados vários sinais e sintomas, decorrentes do atingimento respiratório (tosse, dispneia, …), cardíaco (aperto torácico, …), gastrointestinal (anorexia, diarreia, náusea/vómito, dor abdominal, …), renal, neurológico (vertigem, cefaleia, alteração da consciência, ataxia, convulsões, …), ocular (conjuntivite), cutâneo (eritema, vesículas, livedo reticularis, …), hematológico, olfativo e gustativo, entre outros.10
Atendendo à quantidade e diversidade das possíveis manifestações, a COVID-19 pode mimetizar várias situações clínicas, de gravidades distintas.12 No diagnóstico diferencial desta patologia entram, desde logo, as infeções que conhecíamos previamente à pandemia (com ou sem atingimento respiratório), mas também toda uma miríade de outras condições, tais como a doença crónica exacerbada (insuficiência cardíaca, doença pulmonar obstrutiva crónica, entre outros) ou mesmo situações fisiológicas, sem doença associada, como é o caso da gravidez descrita. A exploração adequada da história clínica (incluindo história da doença atual, antecedentes pessoais e contexto epidemiológico), bem como o exame físico cuidado, poderão ajudar a reduzir o leque de hipóteses de diagnóstico.
Na avaliação inicial, realizada no ADR-C, a doente referia cefaleia, disgeusia, odinofagia, tosse, dispneia e mialgias, que poderiam ser enquadradas numa suspeita de infeção respiratória, causada pelo SARS-CoV-2 ou por outros agentes etiológicos. Por outro lado, esta mulher negava contacto com outras pessoas com sintomatologia semelhante à que apresentava, encontrava-se em idade fértil e, além disso, apresentava náusea e cansaço, dois sintomas comuns durante a gravidez. Deste modo, seria importante excluir estas suspeitas diagnósticas na abordagem inicial, independentemente do contexto de cuidados de saúde em que esta utente se apresentasse.
Um aspeto a discutir neste caso tem a ver com a desvalorização da amenorreia pela utente e com o raciocínio clínico direcionado durante a avaliação na ADR, que levaram ao atraso diagnóstico da gravidez. Este atraso teve implicações: a) por um lado, perante o cenário de gravidez não desejada pela utente, inviabilizou a opção pela interrupção voluntária pretendida (legalmente permitida até às dez semanas de gestação); b) por outro lado, não foi possível detetar (nem corrigir) precocemente situações que pudessem afetar a evolução da gravidez e o bem-estar materno e fetal, um dos objetivos primordiais do seguimento das gestantes e que caracteriza a MGF.13
Reforça-se, com este caso, a necessidade de exclusão sistemática de eventual gravidez, em qualquer mulher em idade fértil que procure cuidados médicos, independentemente do médico, especialidade ou âmbito de atuação (seja este a consulta, urgência, internamento ou outros).
A Medicina Geral e Familiar possui um processo de tomada de decisões influenciado pela prevalência e incidência das doenças na comunidade.8 É, portanto, expectável que, no âmbito da atividade clínica exercida numa ADR-C e em pleno contexto pandémico, a maioria das situações clínicas avaliadas possam ser casos de COVID-19. Contudo, é fundamental não esquecer que há mais “vida” para além da COVID-19 e, que devemos, portanto, continuar a considerar outras hipóteses de diagnóstico que já conhecíamos previamente à pandemia.