Introdução
A pneumonia é uma infeção do parênquima pulmonar e a sua ocorrência é subestimada.1 Resulta da proliferação de patógenos microbianos nos espaços alveolares e da resposta do hospedeiro a esses agentes patogénicos.1 Os microrganismos chegam à via aérea por vários mecanismos, sendo o mais comum a aspiração das secreções orofaríngeas.1,2 Quando existe aspiração do conteúdo gástrico, a pneumonia descreve-se como “pneumonia de aspiração”. Pode estar associada a alterações do estado de consciência, assim como, a desordens esofágicos ou neurológicos que levam à lesão da barreira mecânica de defesa da via aérea.2 Nas crianças, as pneumonias recorrentes estão frequentemente associadas a FTE,3 no entanto, em adultos, as FTE são pouco frequentes e estão associadas, principalmente, a lesões malignas, a processos traumáticos ou iatrogénicos, sendo que, são raros os processo infeciosos.4-7
Caso Clínico
Homem de 80 anos que morava na sua própria casa com apoio da sua mulher; com antecedentes de doença pulmonar obstrutiva crónica e hipertensão arterial. Deu entrada no Serviço de Urgência por dispneia, febre e tosse produtiva, associava ainda perda de peso (80 kg para 75 kg em duas semanas). No exame objetivo salientava-se fervores crepitantes em ambas bases pulmonares. Analiticamente, com leucocitose (24550/uL) e a proteína C reativa aumentada (234 mg/dL). Na radiografia de tórax (RxT) póstero-anterior apresentava uma imagem compatível com consolidação na base do hemitórax direito. Admitiu-se pneumonia adquirida na comunidade com score de CURB-65 = 2. Após rastreio séptico, iniciou amoxicilina/clavulanato 1,2 g intravenoso (e.v.) a cada 8 horas durante 7 dias e azitromicina 500 mg e.v. uma vez por dia durante 5 dias, apresentou melhoria clínica e diminuição dos parâmetros inflamatórios; sendo o rastreio séptico negativo. Após um dia de finalizar o ciclo de antibiótico, iniciou com febre, expetoração, sonolência tendo evidência de fervores crepitantes dispersos em ambos os campos pulmonares. Analiticamente, apresentava elevação dos parâmetros de fase aguda e na radiografia do tórax, agravamento da imagem de consolidação no hemitórax direito. Decidiu-se iniciar empiricamente piperacilina/tazobactam 4,5 g e.v. a cada 8 horas, com prévia colheita de rastreio séptico, tendo as secreções brônquicas restos de conteúdo alimentar. Realizou uma tomografia computorizada de tórax (TC-T) onde se verificou uma imagem sugestiva de fístula traqueoesofágica (FTE) a nível do manúbrio esternal (maior calibre com 2-3 cm), associada ainda a uma dilatação difusa do esófago (já descrita em TC-T prévia, há três anos). A endoscopia digestiva alta (EDA) evidenciou um esófago difusamente dilatado, e a presença de pequena depressão fechada, que poderia corresponder ao orifício esofágico da fístula; ausência de relaxamento do esfíncter esofágico inferior (EEI), sem evidência de lesões sugestivas de processo neoplásico.
O caso foi discutido com as especialidades de Pneumologia e Cirurgia Geral colocando-se a hipótese de possível acalasia idiopática, tendo indicação para a colocação de um stent endobrônquico. No entanto, o doente desenvolveu um processo séptico grave e faleceu quatro dias depois. As culturas de secreções brônquicas foram positivas para Klebsiella oxytoca multirresistente.
Discussão
A acalasia é um neologismo de origem grego e significa sem qualidade de relaxamento8; é pouco frequente em adultos (0,3-1,6 casos em 100 000 pessoas ano) e o tipo mais comum é a acalasia idiopática.1,9 A sua patogénese é caracterizada por dano do plexo neural do esófago com inflamação do plexo mesentérico e redução do número de células ganglionares. O sistema colinérgico é, aparentemente, preservado.10 Pode apresentar-se como disfagia, regurgitação esofágica, dor retroesternal, pirose, perda de peso ou, como neste caso, tosse e pneumonia,1 sendo que, esta apresentação está mais associada com acalasia avançada por regurgitação e aspiração crónicas,3 no entanto, estádios avançados da acalasia apresentam hipertrofia do EEI, o que não foi descrita na EDA. O diagnóstico diferencial da acalasia deve realizar-se com doença de Chagas e pseudoacalasia; sendo que, neste caso não se verificou história de viagens passadas ou recentes para a América do Sul ou para a América Central, lugares onde se encontra o vetor (insetos triatomíneos) que transmite o protozoário Trypanosoma cruzi. Relativamente à pseudoacalasia, a endoscopia digestiva alta descartou a possibilidade de infiltrado tumoral por carcinoma do fundo gástrico ou do esófago distal.3 O diagnóstico de acalasia é feito através da deglutição de bário e/ou pela manometria esofágica, sendo que, atribui-se à endoscopia um papel secundário.3 A dilatação esofágica, observada nas imagens na TC-T e na EDA, além da falta de relaxamento do EEI, fez considerar o diagnóstico de acalasia. No entanto, pela instabilidade do doente, assim como, o seu desfecho (morte), não foi possível realizar uma manometria esofágica que confirmasse o diagnóstico. Através de uma abordagem multidisciplinar com outras especialidades, considerou-se que a acalasia contribuiu para o desenvolvimento da FTE, sendo a dilatação e a fragilidade da parede esofágica, fatores facilitadores para o processo patológico. Em adultos, FTE é uma patologia pouco frequente11) e está associada a processo neoplásicos, traumatismos ou iatrogenia sendo rara a etiologia infeciosa.4,6,7 O diagnóstico é feito pela clínica e por alterações imagiológicas que demonstrem a fuga de contraste, a presença da FTE ou alterações encoscópicas,5 tal como foi referido neste caso.