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Gazeta Médica

versão impressa ISSN 2183-8135versão On-line ISSN 2184-0628

Gaz Med vol.11 no.2 Queluz jun. 2024  Epub 26-Jun-2024

https://doi.org/10.29315/gm.v11i2.843 

Artigo de Perspetiva

Manuel José Leitão e os Primórdios da Neurocirurgia em Portugal: Diagnóstico e Tratamento das Fracturas Vertebrais

Manuel José Leitão and the Beginning of the Neurosurgery in Portugal: Diagnosis and Treatment of Vertebral Fractures

Rui Pires de Carvalho*1 
http://orcid.org/0009-0002-6640-4262

Carlos Vieira Reis2 
http://orcid.org/0009-0001-2426-5551

1. Serviço de Neurocirurgia, CUF Descobertas e Torres Vedras, Lisboa, Portugal.

2. da União Mundial de Escritores Médicos, Portugal.


RESUMO

Diversos cirurgiões portugueses do século XVIII e início do século XIX escreveram e publicaram tratados de Anatomia e Cirurgia de relevo para a época. Um exemplo de um facultativo que pugnava pelo progresso teórico e prático nestas áreas é o de Manuel José Leitão, Cirurgião da Casa Real, Examinador da Junta do Protomedicato, Cirurgião Mor do Regimento de Cavalaria de Chaves e Lente de Anatomia e Cirurgia do Hospital Militar da mesma cidade, nos finais de setecentos.

Palavras-chave: Neurocirurgia/história; Portugal, Fracturas Vertebrais

ABSTRACT

Several Portuguese surgeons of the eighteenth and early nineteenth centuries wrote and published treatises of relevance to the time on anatomy and surgery. An example of a surgeon that strived for theoretical and practical progress in these areas is that of Manuel José Leitão, Surgeon of the Royal House, Examiner of the Board of “Protomedicato”, Major Surgeon of the Cavalry Regiment of Chaves and Professor of Anatomy and Surgery of the Military Hospital of the same city, at the end of the eighteenth century.

Keywords: Neurosurgery/history; Portugal; Spinal Fractures

Introdução

Os cirurgiões portugueses no século XVIII tinham um percurso formativo diverso: desde uma formação mais completa na Escola do Hospital de Todos os Santos (posteriormente, no Hospital de S. José), na Escola da Misericórdia do Porto (Hospital de D. Lopo e, depois, Hospital de S. António) ou outras Misericórdias (exemplos de Évora e Setúbal), a uma formação prática,1 mais ou menos duvidosa, muitas vezes não se submetendo ao devido exame pelo Cirurgião Mor do Reino, ou, durante a sua vigência, pela Junta do Protomedicato, ou respectivos Delegados.

Para garantir o ingresso, no Exército, de cirurgiões melhor preparados, no fim do século XVIII, foram fundadas Aulas de Anatomia e Cirurgia dos Hospitais Militares em Almeida (1773), Elvas (1783), Tavira (1786) e Chaves (1789), esta última precisamente pela ação de Manuel José Leitão.

Recorda-se que um cirurgião não era autónomo, excepto em caso de manifesta urgência ou em localidades em que não havia médico.2 Caso contrário, o seu diagnóstico e proposta de tratamento deveriam ser confirmados por um médico (ou “Físico”, formado em Coimbra). Esta diferença de estatutos, apesar da criação das Régias Escolas de Cirurgia e das Escolas Médico - Cirúrgicas de Lisboa e Porto, durou até 1866.

Até às primeiras décadas do século XIX as intervenções sobre o Sistema Nervoso Central e Periférico e estruturas esqueléticas envolventes (crânio e coluna) foram sendo praticadas por cirurgiões, em regra com supervisão por médico (“físico”), e posteriormente, mesmo ainda nas primeiras décadas do século XX, continuaram a serem realizadas, em regra, por cirurgiões gerais, com supervisão ou orientação de neurologistas. Foi o que sucedeu, por exemplo, nos Centros de Tratamento Neurológico, em França, na Primeira Guerra Mundial, e, em Portugal, mesmo com Egas Moniz.3

I. Manuel José Leitão: vida e obra

Natural de Ribeira de Pena,4 frequentou a Escola de Cirurgia do Hospital de S. José, sendo discípulo de Constâncio, e foi Cirurgião da Corte, tendo acompanhado a Rainha-Mãe, D. Bárbara, na sua viagem à Corte de Espanha. Apercebendo-se das graves limitações em número e qualidade dos cirurgiões militares da província de Trás-os-Montes, solicitou a sua transferência para Chaves. Propôs e organizou a Aula de Cirurgia e Anatomia de Chaves, cuja frequência estava aberta a civis, além dos soldados-alunos (um dos discípulos mais conhecidos será Joaquim da Rocha Mazarém5).

Para atrair interessados conseguiu que aos seus alunos, uma vez completado o curso com aproveitamento, fosse dada a primazia na ocupação de vagas nos Corpos Militares daquela província. Lutou contra diversas adversidades,6 sendo inicialmente apenas nomeado como Cirurgião Mor do Regimento de Cavalaria de Chaves, embora encarregado de estabelecer a Aula de Anatomia e Cirurgia do Hospital Militar de Chaves, e só depois Cirurgião Mor do mesmo (em Janeiro de 1789, mantendo o serviço regimental).

Paralelamente, em 1788, este interessado cirurgião publicou um Tratado em 5 Volumes (Fig. 1) intitulado Tratado Completo de Anatomia e Cirurgia com hum resumo da História da Anatomia, e Cirurgias, seus progressos, e estado della em Portugal, oferecidos a Real Junta do Proto-Medicato,7 de onde extrairemos o Estado da Arte relativamente ao tratamento das fracturas vertebrais, adiante transcrito.

Figura 1: Tratado Completo de Anatomia, e Cirurgia (…), Tomo IV. 

Regista-se que na época era relativamente frequente a troca de relatos e experiências dos facultativos,8 bem como discussão das possíveis etiopatogenias de casos clínicos que acompanhavam, em jornais respeitáveis como O Jornal Encyclopédico (…) ou, mais tarde, em 1812, o Jornal de Coimbra. Leitão, imbuído deste espírito de partilha, descreveu, n` O Jornal Encyclopédico, nos números de Outubro e Novembro de 17899 (Fig. 2), o caso do paciente António Vieira, de Chaves, vítima de agressão, com traumatismo craniano e fractura afundada, ao qual teve que “aplicar o trépano” e proceder a esquirolectomias, em diversas intervenções, num processo demorado mas coroado de sucesso, contra a resistência e cepticismo de colegas e familiares. Este caso, já descrito em monografias e artigos anteriores,10 é particularmente relevante na História da Medicina nacional, já que Leitão defendeu, na sua discussão, que os défices sensitivos e motores eram contralaterais à área de lesão atendendo que:

“(…) a causa disto era porque os nervos que se distribuem do lado direito, têm a sua origem no lado esquerdo da medulla oblongada e cérebro, e os que se distribuem no lado esquerdo do corpo tinham o seu nascimento no lado direito da base da mesma medulla oblongata e cérebro (…)”

Figura 2: O Jornal Encyclopédico (…), números de Outubro e Novembro de 1789. 

Esta convicção contrariava a opinião do 1º Médico do Hospital Militar de Chaves e do preconizado pelos conceituados Haller e Van Swieten11… Mas Leitão fundamentava devidamente a sua opinião, evocando diversos tratados de Anatomia e de Fisiologia (de Verdier, Heister, de Fieu, entre outros), antecipando-se aos conhecimentos de anatomia topográfica, funcional e de fisiologia do Sistema Nervoso Central consolidados várias décadas depois, com as observações e estudos de Burdach, Goll, Broca, Wernicke, Broadmann, etc.

Terá falecido em 3 de Setembro de 1799, segundo Manuel Gião,12 sem ver publicada a obra Cirurgia Militar ou Tratádo Cirurgico das Emfermidades do Exército (…), datada de 1794, cujo manuscrito está conservado na Biblioteca Nacional de Portugal.13 Solicitou licença para publicação a D. Maria I, merecendo despacho inicial para apreciação pela Mesa, mas tal desiderato não chegou a concretizar-se. A obra aborda a medicina e cirurgia em tempo de paz (condições dos Hospitais, cuidados com os fardamentos, higiene, alimentação, escolha dos recrutas, etc) e de guerra. Relata casos clínicos muito interessantes, como fracturas de crânio ou traumatismo lombar, pelo registo pormenorizado da observação e procedimentos.

II. Manuel José Leitão e o diagnóstico e tratamento das “fracturas das vertebras, sacro, e coccyx”

No Tratado já referido, digno de leitura pelo descritivo muito razoável da anatomia, nomeadamente osteologia e sistema nervoso central, no seu IVº Tomo, página 211 e seguintes, Leitão descreve:

“Quando depois de huma queda, ou pancada violenta, se sente uma dor fixa na região das vertebras, e quando se comprimem com os dedos se sente nella huma crepitação, ou hum vacilamento em algumas partes osseas das vertebras, póde-se julgar que há nellas fractura (…)”

Não deixava de referir, no entanto, que era muito difícil perceber a existência de fracturas das apófises espinhosas por estarem muito profundas “em razão de estarem mui cobertas de musculos, e pelle, á excepção de quando o sujeito he mui magro, e descarnado”.

Não tendo as fracturas das apófises espinhosas grandes consequências, “(…) ellas se reporão com os dedos, e se porão duas compressas molhadas em agoa ardente canforado, ou simples, pôr-se-há uma de cada lado da fractura, e por cima della outra que comprima as duas compressas precedentes, depois huma folha de papelão que compreenda todas as compressas, e ultimamente a ligadura escapularia.”

Relativamente às fracturas dos corpos vertebrais, Leitão vaticinava, desde logo, um prognóstico reservado, que hoje, felizmente, com os meios diagnósticos e terapêuticos disponíveis, na grande maioria dos casos não se verifica. Na sua opinião:

“É impossível que os corpos das vertebras sejam fracturados sem que seja a espinhal medula comprimida, e o doente morra indispensavelmente (…)”

Mas para que, subentenda-se, não transparecesse que nada se fazia:

“(…) para que a Arte não pareça sem defeito em semelhantes circunstancias, molhar-se-ão algumas compressas em agua ardente canforada, ou espirito de vinho, e se susterá este apósito com huma ligadura de espartilho, ou escapular, até que o enfermo seja decidido da sua sorte”.

Já relativamente às fracturas do sacro, o nosso facultativo mostrava-se mais interventivo, defendendo que o cirurgião, assim que verificasse a sua existência, procedesse do seguinte modo:

“(…) se reduzirão as pessas fracturadas, se a fractura he na parte inferior se introduzirá o dedo index untado de algum óleo para por meio delle reduzir a fractura, impelindo para fora as extremidades da fractura para se conformar pela parte de fóra com a outra mão, por sima se lhe porá hum emplastro confortativo, ou as compressas molhadas em vinho quente, ou agoa ardente, a sua atadura em cruz, ou quadriplicada”.

No que diz respeito às fracturas do cóccix, não referindo ou sugerindo tratamentos ou abordagens específicas, Manuel José não as subestimava e afirmou: “(…) podem ser timiveis por causa dos terríveis acidentes que podem produzir as partes circunvizinhas”.

E terminou este capítulo, pronunciando-se relativamente ao prognóstico das lesões destes dois segmentos, dizendo depender

“(…) dos acidentes que as acompanha, se o doente vomitar sangue, ou o lançar pelo anus, serão de consequências funestas, prescrever-se-lhes-há hum regime exacto, o ventre livre por meio dos cristeis,14 e as sangrias proporcionadas ás forças, temperamento, e accidentes.”

Epílogo

Seguramente que estas observações e orientações suscitam condescendentes sorrisos ao prezado leitor.

É, contudo, necessário contextualizá-las ao nível dos conhecimentos e dos meios da época e enaltecer o merecimento na arte e no esforço de bem ensinar do seu autor.15 Alguns dos procedimentos ou tratamentos descritos pelo nosso protagonista noutras áreas mantêm-se atuais,16 naturalmente com aperfeiçoamentos e outros meios. Não podemos deixar de frisar nunca ser demais, na nossa óptica, recordarmos o passado…

Basta pensar num cenário hipotético: muitas práticas médicas da 1ª Guerra Mundial não poderão ter que ser reutilizadas ou reabilitadas em situações de conflito armado (veja-se o caso recente da Ucrânia), de pandemias (como a causada pelo SARS-CoV-2) ou de grandes catástrofes naturais, com as expectáveis ruptura das cadeias logísticas (próteses, material de osteossíntese, etc.) e destruição de unidades hospitalares (falência das centrais de esterilização e de preservação do adequado ambiente dos blocos operatórios, entre outros aspectos)?17

Referências

1. Em regime de aprendizato. [ Links ]

2. Ainda assim, nesta situação, carecendo de exame específico, segundo as directivas da Junta do Protomedicato, de 1800. [ Links ]

3. As intervenções eram realizadas por António Martins e, principalmente, Amândio Pinto, sob sua supervisão, até que Pedro de Almeida Lima se diferenciou em Neurocirurgia, com Hugh Cairns. [ Links ]

4. Segundo Silva Carvalho teria nascido em 1729 ou 1730. De acordo com os registos do Regimento de Cavalaria de Chaves, teria nascido em 1746 (quando assentou praça, em 1786, teria 40 anos). Ver Manuel Gião, “As Aulas de Anatomia e Cirurgia dos Hospitais Militares”, Lisboa: Separata da Imprensa Médica, (Ano XI: 267, 280, 326, 344,368 e Ano XII: 13): 28. [ Links ]

5. Veio a ser Cirurgião da Armada Real, Lente da Aula de Anatomia e Cirurgia do Rio de Janeiro e da Régia Escola de Cirurgia de Lisboa. [ Links ]

6. Em termos de instalações, material (duas das solicitações foram: “Os instrumentos de trepanação com tudo o que pertence a esta operação” e cadáveres, para demonstração), resistência do Administrador do Hospital (da Ordem de S. João de Deus) e desinteresse da maioria dos Coronéis dos Regimentos da Província. Op. Cit. 32. [ Links ]

7. Disponível na Biblioteca Nacional de Portugal, Reservados, cotas Res.6281P. a Res.6285P, em consulta local. Exemplares digitalizados disponíveis no Google Books, como é o caso do referido Tomo. [ Links ]

8. Facultativo era uma designação, comum no século XIX, para os médicos e cirurgiões ou, em sentido lato, para quem exercia/praticava legalmente a medicina. [ Links ]

9. De designação completa O Jornal Encyclopédico Dedicado á Rainha N. Senhora, e Destinado a Instrucção Geral com a Noticia dos Novos Descobrimentos em Todas as Sciência, e Artes, disponível na Hemeroteca de Lisboa, cota J.26FH, ou na Biblioteca Nacional de Portugal, cotas J.3B., J.3205P., pt/33878). [ Links ]

10. Carlos Vieira Reis, História da Medicina Militar Portuguesa, Vol I, (Lisboa: Edição do EME, de 2004), 202-203, e Rui Pires de Carvalho, “A Neurocirurgia nos Hospitais Militares do Exército”, Revista Militar nº 2596 (Maio de 2018): 411-454. [ Links ]

11. Que advogavam que tal se devia a lesões de contra-golpe. [ Links ]

12. Manuel Gião, “As Aulas de Anatomia e Cirurgia dos Hospitais Militares”, Lisboa: Separata da Imprensa Médica (Ano XI: 267, 280, 326, 344,368 e Ano XII: 13): 35. À sua viúva foi atribuída uma tença. [ Links ]

13. Do seu título completo: Cirurgia Militar ou Tratado Cirurgico das Enfermidades do Exercito: no qual se trata de seu Curativo, assim nas Guarniçois, no Tempo de Paz, como nos Hospitaes Ambulantes, e Geraes no Tempo de Guerra, destinado não só para a Instrucção dos Cirurgeões Maiores dos Exercitos, dos Regimentos, e seus Ajudantes; mas também para os Off[iciai]s dos Exercitos, dos Regimentos, e seus Ajudantes; mas também para os Off[iciai]s e Soldados, da Tropa e Marinha que quizerem ser instruídos no Modo de Curar estas Enfermidades e Conservar a sua Saude, Biblioteca Nacional de Portugal, Reservados, Cod. 5101. [ Links ]

14. Plural de cristel ou clister. As mulheres que limpavam esses dispositivos eram denominadas «cristaleiras». (N. dos A.) [ Links ]

15. Como denota a introdução da descrição do caso clínico referido no número de Outubro de 1789 d`O Jornal Encyclopédico (…). [ Links ]

16. Exemplos das esquirolectomias, da redução das fracturas afundadas da calote craniana e da aplicação de mel em feridas ou úlceras cutâneas, prática recentemente reabilitada, em particular em casos crónicos. [ Links ]

17. Os autores sugerem a leitura da obra de Egas Moniz, a Neurologia na Guerra. [ Links ]

Declaração de contribuição/Contributorship statement

RC: Conceção do artigo e escrita

CR: Revisão da literatura e revisão final

2Os autores aprovaram a versão final a ser publicada

RC: Article design and writing

CR: Literature review and final review

6Authors approved the final version to be published

Responsabilidades éticas

Conflitos de interesse: Os autores declaram não possuir conflitos de interesse.

Suporte financeiro: O presente trabalho não foi suportado por nenhum subsidio o bolsa ou bolsa.

Proveniência e revisão por pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

Ethical disclosures

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financial support: This work has not received any contribution grant or scholarship.

Provenance and peer review: Not commissioned; externally peer reviewed.

Recebido: 12 de Novembro de 2023; Aceito: 04 de Março de 2024; : 20 de Junho de 2024; Publicado: 26 de Junho de 2024

Autor Correspondente/Corresponding Author: Rui Pires de Carvalho [rui.carvalho@cuf.pt] ORCID iD: 0009-0002-6640-4262

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