Introdução
Os cirurgiões portugueses no século XVIII tinham um percurso formativo diverso: desde uma formação mais completa na Escola do Hospital de Todos os Santos (posteriormente, no Hospital de S. José), na Escola da Misericórdia do Porto (Hospital de D. Lopo e, depois, Hospital de S. António) ou outras Misericórdias (exemplos de Évora e Setúbal), a uma formação prática,1 mais ou menos duvidosa, muitas vezes não se submetendo ao devido exame pelo Cirurgião Mor do Reino, ou, durante a sua vigência, pela Junta do Protomedicato, ou respectivos Delegados.
Para garantir o ingresso, no Exército, de cirurgiões melhor preparados, no fim do século XVIII, foram fundadas Aulas de Anatomia e Cirurgia dos Hospitais Militares em Almeida (1773), Elvas (1783), Tavira (1786) e Chaves (1789), esta última precisamente pela ação de Manuel José Leitão.
Recorda-se que um cirurgião não era autónomo, excepto em caso de manifesta urgência ou em localidades em que não havia médico.2 Caso contrário, o seu diagnóstico e proposta de tratamento deveriam ser confirmados por um médico (ou “Físico”, formado em Coimbra). Esta diferença de estatutos, apesar da criação das Régias Escolas de Cirurgia e das Escolas Médico - Cirúrgicas de Lisboa e Porto, durou até 1866.
Até às primeiras décadas do século XIX as intervenções sobre o Sistema Nervoso Central e Periférico e estruturas esqueléticas envolventes (crânio e coluna) foram sendo praticadas por cirurgiões, em regra com supervisão por médico (“físico”), e posteriormente, mesmo ainda nas primeiras décadas do século XX, continuaram a serem realizadas, em regra, por cirurgiões gerais, com supervisão ou orientação de neurologistas. Foi o que sucedeu, por exemplo, nos Centros de Tratamento Neurológico, em França, na Primeira Guerra Mundial, e, em Portugal, mesmo com Egas Moniz.3
I. Manuel José Leitão: vida e obra
Natural de Ribeira de Pena,4 frequentou a Escola de Cirurgia do Hospital de S. José, sendo discípulo de Constâncio, e foi Cirurgião da Corte, tendo acompanhado a Rainha-Mãe, D. Bárbara, na sua viagem à Corte de Espanha. Apercebendo-se das graves limitações em número e qualidade dos cirurgiões militares da província de Trás-os-Montes, solicitou a sua transferência para Chaves. Propôs e organizou a Aula de Cirurgia e Anatomia de Chaves, cuja frequência estava aberta a civis, além dos soldados-alunos (um dos discípulos mais conhecidos será Joaquim da Rocha Mazarém5).
Para atrair interessados conseguiu que aos seus alunos, uma vez completado o curso com aproveitamento, fosse dada a primazia na ocupação de vagas nos Corpos Militares daquela província. Lutou contra diversas adversidades,6 sendo inicialmente apenas nomeado como Cirurgião Mor do Regimento de Cavalaria de Chaves, embora encarregado de estabelecer a Aula de Anatomia e Cirurgia do Hospital Militar de Chaves, e só depois Cirurgião Mor do mesmo (em Janeiro de 1789, mantendo o serviço regimental).
Paralelamente, em 1788, este interessado cirurgião publicou um Tratado em 5 Volumes (Fig. 1) intitulado Tratado Completo de Anatomia e Cirurgia com hum resumo da História da Anatomia, e Cirurgias, seus progressos, e estado della em Portugal, oferecidos a Real Junta do Proto-Medicato,7 de onde extrairemos o Estado da Arte relativamente ao tratamento das fracturas vertebrais, adiante transcrito.
Regista-se que na época era relativamente frequente a troca de relatos e experiências dos facultativos,8 bem como discussão das possíveis etiopatogenias de casos clínicos que acompanhavam, em jornais respeitáveis como O Jornal Encyclopédico (…) ou, mais tarde, em 1812, o Jornal de Coimbra. Leitão, imbuído deste espírito de partilha, descreveu, n` O Jornal Encyclopédico, nos números de Outubro e Novembro de 17899 (Fig. 2), o caso do paciente António Vieira, de Chaves, vítima de agressão, com traumatismo craniano e fractura afundada, ao qual teve que “aplicar o trépano” e proceder a esquirolectomias, em diversas intervenções, num processo demorado mas coroado de sucesso, contra a resistência e cepticismo de colegas e familiares. Este caso, já descrito em monografias e artigos anteriores,10 é particularmente relevante na História da Medicina nacional, já que Leitão defendeu, na sua discussão, que os défices sensitivos e motores eram contralaterais à área de lesão atendendo que:
“(…) a causa disto era porque os nervos que se distribuem do lado direito, têm a sua origem no lado esquerdo da medulla oblongada e cérebro, e os que se distribuem no lado esquerdo do corpo tinham o seu nascimento no lado direito da base da mesma medulla oblongata e cérebro (…)”
Esta convicção contrariava a opinião do 1º Médico do Hospital Militar de Chaves e do preconizado pelos conceituados Haller e Van Swieten11… Mas Leitão fundamentava devidamente a sua opinião, evocando diversos tratados de Anatomia e de Fisiologia (de Verdier, Heister, de Fieu, entre outros), antecipando-se aos conhecimentos de anatomia topográfica, funcional e de fisiologia do Sistema Nervoso Central consolidados várias décadas depois, com as observações e estudos de Burdach, Goll, Broca, Wernicke, Broadmann, etc.
Terá falecido em 3 de Setembro de 1799, segundo Manuel Gião,12 sem ver publicada a obra Cirurgia Militar ou Tratádo Cirurgico das Emfermidades do Exército (…), datada de 1794, cujo manuscrito está conservado na Biblioteca Nacional de Portugal.13 Solicitou licença para publicação a D. Maria I, merecendo despacho inicial para apreciação pela Mesa, mas tal desiderato não chegou a concretizar-se. A obra aborda a medicina e cirurgia em tempo de paz (condições dos Hospitais, cuidados com os fardamentos, higiene, alimentação, escolha dos recrutas, etc) e de guerra. Relata casos clínicos muito interessantes, como fracturas de crânio ou traumatismo lombar, pelo registo pormenorizado da observação e procedimentos.
II. Manuel José Leitão e o diagnóstico e tratamento das “fracturas das vertebras, sacro, e coccyx”
No Tratado já referido, digno de leitura pelo descritivo muito razoável da anatomia, nomeadamente osteologia e sistema nervoso central, no seu IVº Tomo, página 211 e seguintes, Leitão descreve:
“Quando depois de huma queda, ou pancada violenta, se sente uma dor fixa na região das vertebras, e quando se comprimem com os dedos se sente nella huma crepitação, ou hum vacilamento em algumas partes osseas das vertebras, póde-se julgar que há nellas fractura (…)”
Não deixava de referir, no entanto, que era muito difícil perceber a existência de fracturas das apófises espinhosas por estarem muito profundas “em razão de estarem mui cobertas de musculos, e pelle, á excepção de quando o sujeito he mui magro, e descarnado”.
Não tendo as fracturas das apófises espinhosas grandes consequências, “(…) ellas se reporão com os dedos, e se porão duas compressas molhadas em agoa ardente canforado, ou simples, pôr-se-há uma de cada lado da fractura, e por cima della outra que comprima as duas compressas precedentes, depois huma folha de papelão que compreenda todas as compressas, e ultimamente a ligadura escapularia.”
Relativamente às fracturas dos corpos vertebrais, Leitão vaticinava, desde logo, um prognóstico reservado, que hoje, felizmente, com os meios diagnósticos e terapêuticos disponíveis, na grande maioria dos casos não se verifica. Na sua opinião:
“É impossível que os corpos das vertebras sejam fracturados sem que seja a espinhal medula comprimida, e o doente morra indispensavelmente (…)”
Mas para que, subentenda-se, não transparecesse que nada se fazia:
“(…) para que a Arte não pareça sem defeito em semelhantes circunstancias, molhar-se-ão algumas compressas em agua ardente canforada, ou espirito de vinho, e se susterá este apósito com huma ligadura de espartilho, ou escapular, até que o enfermo seja decidido da sua sorte”.
Já relativamente às fracturas do sacro, o nosso facultativo mostrava-se mais interventivo, defendendo que o cirurgião, assim que verificasse a sua existência, procedesse do seguinte modo:
“(…) se reduzirão as pessas fracturadas, se a fractura he na parte inferior se introduzirá o dedo index untado de algum óleo para por meio delle reduzir a fractura, impelindo para fora as extremidades da fractura para se conformar pela parte de fóra com a outra mão, por sima se lhe porá hum emplastro confortativo, ou as compressas molhadas em vinho quente, ou agoa ardente, a sua atadura em cruz, ou quadriplicada”.
No que diz respeito às fracturas do cóccix, não referindo ou sugerindo tratamentos ou abordagens específicas, Manuel José não as subestimava e afirmou: “(…) podem ser timiveis por causa dos terríveis acidentes que podem produzir as partes circunvizinhas”.
E terminou este capítulo, pronunciando-se relativamente ao prognóstico das lesões destes dois segmentos, dizendo depender
“(…) dos acidentes que as acompanha, se o doente vomitar sangue, ou o lançar pelo anus, serão de consequências funestas, prescrever-se-lhes-há hum regime exacto, o ventre livre por meio dos cristeis,14 e as sangrias proporcionadas ás forças, temperamento, e accidentes.”
Epílogo
Seguramente que estas observações e orientações suscitam condescendentes sorrisos ao prezado leitor.
É, contudo, necessário contextualizá-las ao nível dos conhecimentos e dos meios da época e enaltecer o merecimento na arte e no esforço de bem ensinar do seu autor.15 Alguns dos procedimentos ou tratamentos descritos pelo nosso protagonista noutras áreas mantêm-se atuais,16 naturalmente com aperfeiçoamentos e outros meios. Não podemos deixar de frisar nunca ser demais, na nossa óptica, recordarmos o passado…
Basta pensar num cenário hipotético: muitas práticas médicas da 1ª Guerra Mundial não poderão ter que ser reutilizadas ou reabilitadas em situações de conflito armado (veja-se o caso recente da Ucrânia), de pandemias (como a causada pelo SARS-CoV-2) ou de grandes catástrofes naturais, com as expectáveis ruptura das cadeias logísticas (próteses, material de osteossíntese, etc.) e destruição de unidades hospitalares (falência das centrais de esterilização e de preservação do adequado ambiente dos blocos operatórios, entre outros aspectos)?17