Introdução
A tiroide lingual constitui uma anomalia rara do desenvolvimento.1-4 Ocorre pela falha na migração embrionária da glândula tiroide para a sua normal localização cervical, a partir do local de origem na base da língua.1-3
Embora a patogénese desta entidade permaneça incerta, acredita-se que imunoglobulinas antitiroideias maternas impeçam a migração da glândula, predispondo posteriormente a hipotiroidismo.1,2,4
A incidência clínica varia entre 1:3000 e 1:100 000, sendo a tiroide lingual o único tecido tiroideu funcionante em 70% a 100% dos casos.2,3,5 É três a sete vezes mais frequente no sexo feminino, com evidência clínica de hipotiroidismo em 30% a 70% dos casos.1,3
Embora frequentemente assintomática, pode manifestar-se por disfagia, disfonia, obstrução das vias aéreas superiores ou hemorragia, em qualquer fase da vida.1-3
A tiroide lingual não envolve habitualmente as paratiroides, já que estas têm uma origem embrionária distinta.2
A incidência de malignidade com origem na tiroide lingual é rara, com menos de 30 casos descritos na literatura.2,4,5
O estudo imagiológico é essencial para confirmação do diagnóstico, sendo a localização da tiroide ectópica identificada através de cintigrafia.1,3
O presente artigo tem como objetivo descrever um caso de tiroide ectópica lingual, com enfâse para a necessidade de elevada suspeição clínica por parte do médico de família para o seu diagnóstico.
Caso clínico
Utente do sexo feminino, 48 anos de idade, transferida recentemente de outra unidade de saúde, apresenta-se na sua primeira consulta programada.
Quando questionada acerca de antecedentes familiares de relevo, menciona que a mãe e sobrinha apresentam patologia tiroideia, realçando, no entanto, desconsiderar tratar-se da sua situação, já que no início da sua adolescência, após realização de ecografia à tiroide, terá sido informada de que “nasceu sem tiroide” (sic), razão pela qual se encontra medicada com levotiroxina 0,175 mg, um comprimido por dia, desde então.
Como antecedentes pessoais, apresenta diagnóstico de enxaqueca, medicada com topiramato 50 mg duas vezes por dia e cirurgia de reparação de hérnia discal lombar em 2010.
À data da consulta, negava queixas de qualquer sistema. À observação, a utente apresentava-se com bom estado geral, corada e hidratada. A palpação cervical não apresentava tecido tiroideu na sua normal localização pré-traqueal e não se palpavam massas e/ou adenomegalias.
Para estudo complementar, o médico assistente solicitou uma ecografia da tiroide e estudo analítico com avaliação da função tiroideia.
A ecografia da tiroide realizada revelou: “Ausência de tiroide na sua topografia habitual (doente refere agenesia da tiroide). Em situação supra-hióidea, na linha média, observa-se alteração nodular bem delimitada ovalada e heterogénea, com áreas quísticas e calcificações internas, medindo cerca de 25 mm de maior eixo, sendo sugestivo de quisto do canal tireoglosso.”
Analiticamente, apresentava valores de hormona estimulante da tiroide (TSH), triiodotironina livre (T3 livre), tiroxina livre (T4 livre) e paratormona (PTH) dentro dos limites da normalidade.
Após pesquisa bibliográfica e discussão do caso clínico com vários colegas, o médico assistente considerou necessária a realização de cintigrafia da tiroide. A cintigrafia da tiroide (Fig. 1) revelou: “Não se observam imagens da tiroide em sua topografia habitual, referindo-se, contudo, um foco de captação do radiofármaco na topografia do pavimento da boca sobre a linha média compatível com tecido tiroideu funcionante em localização ectópica. A captação de radiofármaco pelo referido foco foi estimada em 0,1%”.
A utente foi referenciada a consulta de cirurgia geral. Em meio hospitalar, a ecografia realizada previamente foi considerada insatisfatória, uma vez que não existia referência à ecogenicidade do nódulo identificado.
Optou-se pela sua repetição, tendo revelado: “nódulo hipoecoico bem delimitado, ovalado, heterogéneo, com áreas quísticas e macrocalcifcações internas, com 25 mm de maior eixo. EUTIRADS 4”.
Foram realizadas três citologias aspirativas por agulha fina sob controlo ecográfico, tendo todas elas revelado: “expressão de fator de transcrição da tireoide-1 (TTF1), compatível com tecido tiroideu, apesar de material inadequado para diagnóstico citológico (Bethesda 1)”.
A utente foi proposta para cirurgia de ressecção da tiroide ectópica (Fig. 2), a qual decorreu sem intercorrências. A histologia confirmou o diagnóstico de tiroide ectópica e excluiu malignidade. A utente encontra-se atualmente em recuperação, sem queixas de novo (Fig. 3).
Discussão
A tiroide lingual, pela sua raridade e apresentação frequentemente assintomática, é habitualmente diagnosticada casualmente ou no estudo de hipotiroidismo.2,4
O tecido tiroideu ectópico é geralmente capaz de produzir quantidades suficientes de hormonas durante a infância de forma a prevenir o cretinismo. No entanto, com o tempo, perde essa capacidade, sendo comummente insuficiente em situações de aumento das necessidades metabólicas, tais como a puberdade ou a gravidez.2,3
No caso apresentado, os sintomas de hipotiroidismo surgiram na puberdade, altura em que a utente foi medicada. Contudo, ao contrário do que seria expectável, o diagnóstico de tiroide lingual não foi estabelecido no decurso do estudo do hipotiroidismo associado, o que salienta a importância da colheita de uma história clínica detalhada e um elevado índice de suspeição para a sua correta identificação. O exame objetivo deve sempre incluir a palpação cervical para averiguar a presença ou não de tecido tiroideu cervical, o qual estava ausente no caso que expomos. Deve ainda ser solicitado estudo analítico com doseamento das hormonas tiroideias, sendo o estudo imagiológico essencial para o diagnóstico.2,4 O cintigrama com tecnécio é o exame de eleição, ao permitir identificar a localização da tiroide ectópica.2,3 Este exame demonstra habitualmente marcação ao nível da boca e ausência na normal posição cervical, justamente o que foi observado no cintigrama do nosso caso.2
Tal como descrito na literatura, a tiroide lingual da utente constituía o único tecido tiroideu funcionante, ainda que de forma insuficiente.
Quanto ao tratamento, este depende das características ecográficas, presença ou ausência de sintomas e/ou complicações.2,3 Face às características citadas na ecografia e impossibilidade de excluir malignidade através da citologia aspirativa por agulha fina, optou-se neste caso pelo tratamento cirúrgico.
Em suma, com o caso apresentado, pretende-se não só dar a conhecer uma condição clínica rara e subdiagnosticada como reconhecer o papel do médico de família que, ao acompanhar periodicamente o seu utente, privilegia da possibilidade de o estudar e investigar até obtenção do correto diagnóstico com base na melhor evidência disponível.