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Gazeta Médica

versão impressa ISSN 2183-8135versão On-line ISSN 2184-0628

Gaz Med vol.11 no.2 Queluz jun. 2024  Epub 26-Jun-2024

https://doi.org/10.29315/gm.v11i2.756 

Casos Clínicos

Tiroide Lingual: Apresentação de Caso Clínico

Lingual Thyroid: A Case Report

1. Unidade de Saúde Familiar Covelo, ULS São João, Porto, Portugal.

2. Unidade de Saúde Familiar Monsanto, ULS Santa Maria, Lisboa, Portugal.


Resumo

A patologia tiroideia, designadamente o hipotiroidismo, é uma situação comum e habitualmente gerida em cuidados de saúde primários. No seu estudo inicial é importante considerar a hipótese de tiroide lingual, ainda que se trate de anomalia rara.

Utente do sexo feminino, 48 anos de idade, transferida recentemente de outra unidade de saúde, apresenta-se na sua primeira consulta programada. Refere que no início da sua adolescência, após realização de ecografia à tiroide, terá sido informada de que “nasceu sem tiroide” (sic), pelo que se encontra medicada com levotiroxina 0,175 mg uma vez por dia. Como antecedentes familiares de relevo menciona que a mãe e a sobrinha apresentam patologia tiroideia. Ao exame objetivo não se verificaram outras alterações para além de, à palpação cervical, não apresentar tecido tiroideu na sua normal localização pré-traqueal.

A ecografia da tiroide realizada revelou ausência de tiroide na sua topografia habitual. O estudo analítico da função tiroideia não revelou alterações. Foi então solicitada cintigrafia da tiroide que demonstrou um foco de captação do radiofármaco na topografia do pavimento da boca sobre a linha média, compatível com tecido tiroideu funcionante em localização ectópica. A utente foi referenciada a consulta de cirurgia geral e proposta para cirurgia de ressecção da tiroide ectópica, a qual decorreu sem intercorrências.

O médico de família tem uma posição privilegiada no estudo e orientação dos seus utentes, tendo sido, neste caso, fulcral a investigação desencadeada pela suspeição de uma entidade rara, mesmo anos após o diagnóstico inicial de hipotiroidismo.

Palavras-chave: Hipotiroidismo/diagnóstico; Tiroide Lingual/diagnóstico

Abstract

Hypothyroidism is a common disease, usually managed in primary health care. In its initial study, it is important to consider the hypothesis of lingual thyroid, even though it is a rare anomaly.

Female patient, 48 years old, recently transferred from another health unit, presents for her first doctor appointment. When asked, mentions that in her early adolescence, after a thyroid ultrasound, she was informed that “born without thyroid” (sic), being medicated with levothyroxine 0.175 mg once a day since then. As a relevant family history, mentions that her mother and niece have thyroid pathology. On physical examination, there was no thyroid tissue in its normal pre-tracheal location.

The thyroid ultrasound performed revealed the absence of thyroid in its usual topography. The analytical study of thyroid function revealed no changes. Thyroid scintigraphy was then requested, which demonstrated a focus of radiopharmaceutical uptake in the topography of the mouth, compatible with functioning thyroid tissue in an ectopic location. The patient was referred to a general surgery consultation and proposed for ectopic thyroid resection surgery, which was uneventful.

In this case, the investigation triggered by the suspicion of a rare entity, even years after the initial diagnosis of hypothyroidism was central, showing the privileged position of the family doctor in the study and guidance of their patients.

Keywords: Hypothyroidism/diagnosis; Lingual Thyroid/diagnosis

Introdução

A tiroide lingual constitui uma anomalia rara do desenvolvimento.1-4 Ocorre pela falha na migração embrionária da glândula tiroide para a sua normal localização cervical, a partir do local de origem na base da língua.1-3

Embora a patogénese desta entidade permaneça incerta, acredita-se que imunoglobulinas antitiroideias maternas impeçam a migração da glândula, predispondo posteriormente a hipotiroidismo.1,2,4

A incidência clínica varia entre 1:3000 e 1:100 000, sendo a tiroide lingual o único tecido tiroideu funcionante em 70% a 100% dos casos.2,3,5 É três a sete vezes mais frequente no sexo feminino, com evidência clínica de hipotiroidismo em 30% a 70% dos casos.1,3

Embora frequentemente assintomática, pode manifestar-se por disfagia, disfonia, obstrução das vias aéreas superiores ou hemorragia, em qualquer fase da vida.1-3

A tiroide lingual não envolve habitualmente as paratiroides, já que estas têm uma origem embrionária distinta.2

A incidência de malignidade com origem na tiroide lingual é rara, com menos de 30 casos descritos na literatura.2,4,5

O estudo imagiológico é essencial para confirmação do diagnóstico, sendo a localização da tiroide ectópica identificada através de cintigrafia.1,3

O presente artigo tem como objetivo descrever um caso de tiroide ectópica lingual, com enfâse para a necessidade de elevada suspeição clínica por parte do médico de família para o seu diagnóstico.

Caso clínico

Utente do sexo feminino, 48 anos de idade, transferida recentemente de outra unidade de saúde, apresenta-se na sua primeira consulta programada.

Quando questionada acerca de antecedentes familiares de relevo, menciona que a mãe e sobrinha apresentam patologia tiroideia, realçando, no entanto, desconsiderar tratar-se da sua situação, já que no início da sua adolescência, após realização de ecografia à tiroide, terá sido informada de que “nasceu sem tiroide” (sic), razão pela qual se encontra medicada com levotiroxina 0,175 mg, um comprimido por dia, desde então.

Como antecedentes pessoais, apresenta diagnóstico de enxaqueca, medicada com topiramato 50 mg duas vezes por dia e cirurgia de reparação de hérnia discal lombar em 2010.

À data da consulta, negava queixas de qualquer sistema. À observação, a utente apresentava-se com bom estado geral, corada e hidratada. A palpação cervical não apresentava tecido tiroideu na sua normal localização pré-traqueal e não se palpavam massas e/ou adenomegalias.

Para estudo complementar, o médico assistente solicitou uma ecografia da tiroide e estudo analítico com avaliação da função tiroideia.

A ecografia da tiroide realizada revelou: “Ausência de tiroide na sua topografia habitual (doente refere agenesia da tiroide). Em situação supra-hióidea, na linha média, observa-se alteração nodular bem delimitada ovalada e heterogénea, com áreas quísticas e calcificações internas, medindo cerca de 25 mm de maior eixo, sendo sugestivo de quisto do canal tireoglosso.”

Analiticamente, apresentava valores de hormona estimulante da tiroide (TSH), triiodotironina livre (T3 livre), tiroxina livre (T4 livre) e paratormona (PTH) dentro dos limites da normalidade.

Após pesquisa bibliográfica e discussão do caso clínico com vários colegas, o médico assistente considerou necessária a realização de cintigrafia da tiroide. A cintigrafia da tiroide (Fig. 1) revelou: “Não se observam imagens da tiroide em sua topografia habitual, referindo-se, contudo, um foco de captação do radiofármaco na topografia do pavimento da boca sobre a linha média compatível com tecido tiroideu funcionante em localização ectópica. A captação de radiofármaco pelo referido foco foi estimada em 0,1%”.

Figura 1: Cintigrafia da tiroide a exibir atividade a nível da boca e ausência de atividade cervical. 

A utente foi referenciada a consulta de cirurgia geral. Em meio hospitalar, a ecografia realizada previamente foi considerada insatisfatória, uma vez que não existia referência à ecogenicidade do nódulo identificado.

Optou-se pela sua repetição, tendo revelado: “nódulo hipoecoico bem delimitado, ovalado, heterogéneo, com áreas quísticas e macrocalcifcações internas, com 25 mm de maior eixo. EUTIRADS 4”.

Foram realizadas três citologias aspirativas por agulha fina sob controlo ecográfico, tendo todas elas revelado: “expressão de fator de transcrição da tireoide-1 (TTF1), compatível com tecido tiroideu, apesar de material inadequado para diagnóstico citológico (Bethesda 1)”.

A utente foi proposta para cirurgia de ressecção da tiroide ectópica (Fig. 2), a qual decorreu sem intercorrências. A histologia confirmou o diagnóstico de tiroide ectópica e excluiu malignidade. A utente encontra-se atualmente em recuperação, sem queixas de novo (Fig. 3).

Figura 2: Peça operatória. 

Figura 3: Cicatriz de incisão cervical transversa a nível do osso hioide. 

Discussão

A tiroide lingual, pela sua raridade e apresentação frequentemente assintomática, é habitualmente diagnosticada casualmente ou no estudo de hipotiroidismo.2,4

O tecido tiroideu ectópico é geralmente capaz de produzir quantidades suficientes de hormonas durante a infância de forma a prevenir o cretinismo. No entanto, com o tempo, perde essa capacidade, sendo comummente insuficiente em situações de aumento das necessidades metabólicas, tais como a puberdade ou a gravidez.2,3

No caso apresentado, os sintomas de hipotiroidismo surgiram na puberdade, altura em que a utente foi medicada. Contudo, ao contrário do que seria expectável, o diagnóstico de tiroide lingual não foi estabelecido no decurso do estudo do hipotiroidismo associado, o que salienta a importância da colheita de uma história clínica detalhada e um elevado índice de suspeição para a sua correta identificação. O exame objetivo deve sempre incluir a palpação cervical para averiguar a presença ou não de tecido tiroideu cervical, o qual estava ausente no caso que expomos. Deve ainda ser solicitado estudo analítico com doseamento das hormonas tiroideias, sendo o estudo imagiológico essencial para o diagnóstico.2,4 O cintigrama com tecnécio é o exame de eleição, ao permitir identificar a localização da tiroide ectópica.2,3 Este exame demonstra habitualmente marcação ao nível da boca e ausência na normal posição cervical, justamente o que foi observado no cintigrama do nosso caso.2

Tal como descrito na literatura, a tiroide lingual da utente constituía o único tecido tiroideu funcionante, ainda que de forma insuficiente.

Quanto ao tratamento, este depende das características ecográficas, presença ou ausência de sintomas e/ou complicações.2,3 Face às características citadas na ecografia e impossibilidade de excluir malignidade através da citologia aspirativa por agulha fina, optou-se neste caso pelo tratamento cirúrgico.

Em suma, com o caso apresentado, pretende-se não só dar a conhecer uma condição clínica rara e subdiagnosticada como reconhecer o papel do médico de família que, ao acompanhar periodicamente o seu utente, privilegia da possibilidade de o estudar e investigar até obtenção do correto diagnóstico com base na melhor evidência disponível.

Referências

1. Tincani AJ, Martins AS, Del Negro A, Araujo PP, Barretto G. Lingual thyroid causing dysphonia: evaluation and management. Case report. Sao Paulo Med J. 2004;122:67-9. [ Links ]

2. Ferreira Gapo C, Miguéis J, Amorim AM, Ventura I, Miguéis MC, Paiva A. Tiróide lingual: apresentação de três casos clínicos e revisão da literatura. Rev Port Otorrinolaringol Cir Cabeça Pescoço. 1970;46:163-9. [ Links ]

3. Kumar LK, Kurien NM, Jacob MM, Menon PV, Khalam SA. Lingual thyroid. Ann Maxillofac Surg. 2015;5:104-7. [ Links ]

4. Huang H, Lin YH. Lingual thyroid with severe hypothyroidism: A case report. Medicine. 2021;100:e27612. [ Links ]

5. Thyroglossal duct cysts and ectopic thyroid [Internet]. 2020 [accessed Jan 2022]. Available from: Available from: https://www.uptodate.com/contents/thyroglossal-duct-cysts-and-ectopic-thyroid . [ Links ]

Declaração de contribuição /contributorship statement

PL: Diagnóstico, investigação e escrita do artigo

IS: Investigação e revisão do artigo

TC: Revisão do artigo

CB: Diagnóstico e revisão do artigo

4Todos os autores aprovaram a versão final a ser publicada

PL: Diagnosis, research and article writing

IS: Research and revision of the article

TC: Article review

CB: Diagnosis and article review

9All authors have approved the final version to be published

Responsabilidades éticas

Conflitos de interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Confidencialidade dos dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes.

Consentimento: Consentimento do doente para publicação obtido.

Proveniência e revisão por pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

ETHICAL DISCLOSURES

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financing support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

Confidentiality of data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.

Patient consent: Consent for publication was obtained.

Provenance and peer review: Not commissioned; externally peer reviewed.

Recebido: 30 de Abril de 2023; Aceito: 24 de Janeiro de 2024; : 21 de Fevereiro de 2024; Publicado: 26 de Abril de 2024

Autor Correspondente/Corresponding Author: Patrícia Lopes [patricialourencolopes@gmail.com] ORCID iD: 0000-0002-7178-9542

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