Introdução
A COVID-19 é uma doença infeciosa causada pelo vírus SARS-CoV-2 que surgiu em dezembro de 2019 em Wuhan, uma cidade chinesa, mas que rapidamente se espalhou por todo o mundo provocando uma verdadeira crise de saúde pública. Em Portugal, o primeiro caso foi reportado a 2 de março de 2020, dias prévios à Organização Mundial Saúde (OMS) declarar a doença como Pandemia.1
As principais manifestações desta infeção são respiratórias, podendo a doença evoluir para pneumonia ou mesmo síndrome de dificuldade respiratória aguda (ARDS). No entanto, também foram identificadas complicações cardiovasculares associadas ao SARS-CoV-2, tais como bradicardia, hipotensão, arritmias e lesão miocárdica, sob a forma de enfarte agudo do miocárdio ou miocardite.2,3
Caso clínico
Relata-se o caso de um homem de 48 anos, com história de angina instável há 1 ano com ecocardiograma transtorácico (ETT) sem alterações e coronariografia com dominância direita, sem doença angiográfica significativa.
Recorreu ao serviço de urgência (SU) por quadro dor torácica de características pleuríticas, dispneia para pequenos esforços, febre e tosse com expetoração hemoptoica em pequena quantidade. Referia também síndrome gripal nas 3 semanas prévias. Ao exame físico, o doente encontrava-se subfebril, taquicárdico, com frequência cardíaca na ordem dos ~120 bpm, e polipneico, com crepitações nos dois terços inferiores do hemitórax direito à auscultação pulmonar e edemas bimaleolares ligeiros. A eletrocardiograma (ECG) realizado no SU evidenciou taquicardia sinusal sem alterações do segmento ST-T. A gasimetria arterial apresentava alcalose respiratória. Analiticamente foi possível constatar aumento dos parâmetros inflamatórios (proteína C reativa 156 mg/dL e leucocitose 14 800 u/L com 87% de neutrófilos), d- Dímeros 1700 ng/mL, sem outras alterações de relevo. Realizou radiografia torácica que revelou apagamento dos ângulos costo-frénicos bilateralmente e na base pulmonar direita apresentava imagem compatível com enfarte pulmonar - sinal de Hampton (Fig. 1).
Posteriormente, pela clínica e achados analíticos, realizou angio tomografia computadorizada (TC) que evidenciou aumento do calibre do segmento interlobar da artéria pulmonar direita e dos seus ramos segmentares, traduzindo tromboembolismo pulmonar (TEP), associado a área de enfarte pulmonar. Concomitante apresentava áreas de densificação em vidro despolido do parênquima pulmonar, em relação com processo infecioso no lobo inferior e lobo médio direito (Fig. 2).
A pesquisa de SARS-CoV-2 por polimerase chain reaction (PCR) foi sempre negativa (após 4 repetições espaçadas no tempo), assim como a pesquisa de vírus respiratórios e antigenúria para Pneumococcus. Também o exame microbiológico da expetoração e as hemoculturas não permitiram isolar agentes etiológicos. Assim, iniciou cobertura antibiótica empírica com amoxicilina-clavulanato e claritromicina.
Ao décimo segundo dia de internamento, o doente desenvolveu quadro de dor torácica pré-cordial em repouso, sem irradiação ou posição antálgica, tendo realizado ECG, que revelou ligeiro supradesnivelamento do segmento ST com concavidade superior nas derivações laterais e infradesnivelamento do intervalo PR (Fig. 3).
Os marcadores de necrose miocárdica revelaram-se aumentados, apresentando curva ascendente, atingindo um valor máximo de troponina I de 3,220 ng/mL.
Neste contexto, o doente foi observado pela Cardiologia, que realizou ETT que não evidenciou alterações da cinética segmentar. Realizada ressonância magnética (RM) cardíaca com evidência de pequeno foco de realce tardio de padrão subendocárdico no segmento médio da parede inferior e fina lâmina de derrame pericárdico.
Apesar dos antecedentes pessoais do doente - angina instável - poderem explicar os achados na RM, a hipótese de miopericardite permaneceu como a mais provável, face a toda a apresentação clínica, pelo que o doente iniciou acetilsalicilato de lisina com melhoria clínica, acompanhado de perfil descente de troponina I. O estudo imunológico com pesquisa de anti-N-DS-DNA, anticorpos antinucleares e anticorpos anti-citoplasma de neutrófilo foram negativos, assim como as serologias víricas para a hepatite B, hepatite C, vírus da imunodeficiência humana e sífilis.
Dada a forte suspeita de infeção por SARS-CoV-2, não só pelo contexto pandémicol, mas também pela evolução temporal da sintomatologia apresentada e do atingimento multiorgânico - cardíaco, vascular e pulmonar - foram realizadas serologias para SARS-CoV-2 que evidenciaram positividade para IgG com um valor > 100 u/mL (cut-off de 10 u/mL). Desta forma, foi assumida uma provável infeção a SARS-CoV-2 como causa para o tromboembolismo pulmonar, a miopericardite e a sobreinfeção bacteriana.
Após três meses, o doente foi observado em consulta externa, encontrando-se assintomático e com reversão dos achados do ECG.
Discussão
A COVID-19 é uma doença infeciosa causada pelo vírus SARS-CoV-2 com rápida progressão mundial com mais de 200 milhões de pessoas infetadas desde o início pandémico.
A apresentação clínica pela COVID-19 é muito variada, desde infeção assintomática até falência respiratória, choque sético e falência multiorgânica.3
As manifestações cardiovasculares estão associadas a pior prognóstico e incluem lesão cardíaca aguda, tais como miocardite ou insuficiência cardíaca, eventos tromboembolicos e derrame pericárdico ou pericardite.
Os mecanismos subjacentes a estas manifestações continuam incertos, no entanto, dado à dimensão desta infeção, várias propostas foram levantadas ao longo dos meses que incluem as seguintes: lesão direta dos cardiomiócitos pelo vírus, inflamação sistémica, tempestade de citocinas, hipoxemia, vasopasmo coronário e lesão vascular e endotelial direta e estado protrombótico.2,4
Os primeiros dados de Wuhan evidenciaram uma prevalência de lesão cardíaca de cerca de 27,8% dos doentes com COVID-19.4 Durante o ano de 2021, Mostafavi A et al realizaram um estudo sobre a incidência de miopericardite por SARS-CoV-2 num centro hospitalar do Irão, reportando uma prevalência de miocardite, derrame pleural e tamponamento cardíaco de cerca de 1,2%. Estas complicações, apesar de raras, apresentam elevada morbimortalidade, pelo que qualquer sintomatologia deve deixar o médico em alerta.2
No caso relatado, a sintomatologia apresentada pelo doente foi sobretudo secundária a manifestações cardiovasculares, tromboembolismo pulmonar e miopericardite, com a agravante dos vários testes PCR serem negativos o que dificultou e tornou um desafio o diagnóstico desta patologia. Este caso mostra, ainda, que as complicações extrapulmonares podem surgir em fases mais tardias da doença, já relatado previamente por Li Wu et al,5 sendo mais frequentes em doentes com antecedentes de doenças cardiovasculares,4 ressalvando assim a necessidade de follow-up dos doentes mesmo após a fase aguda da doença.
O diagnóstico de infeção por SARS-CoV-2 requer a identificação de componentes do vírus, sendo os testes de biologia molecular considerados de referência.
A evidência atual mostra que o RNA do vírus pode ser encontrado até ao 12º dia e, em raras exceções, até ao 28º dia. Por sua vez, os testes serológicos detetam a presença de anticorpos IgM e IgG, os primeiros podem surgir nos primeiros 5 dias de infeção ocorrendo a seroconversão para IgG entre a terceira e quarta semana depois do início da infeção, podendo persistir elevados para além de sete semanas.6 Estes dados temporais permitem explicar os achados laboratoriais obtidos neste caso clínico que nos permitem afirmar que estávamos perante uma provável infeção recente por SARS-CoV-2.
Conclusão
Este caso surgiu previamente às novas armas terapêuticas e preventivas disponíveis contra o SARS-CoV-2.
Numa altura em que o conhecimento desta patologia era escasso, tornou-se fundamental a identificação e associação deste vírus à clínica apresentada, corroborando, assim, a sua versatilidade, não só provocando quadros infeciosos graves, mas também múltiplas e importantes complicações cardiovasculares.