Introdução
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde sexual como um estado psicológico, emocional, mental e social de bem-estar relativamente à sexualidade, que engloba aspetos relacionados com a saúde reprodutiva, como a possibilidade do controlo da fertilidade através do acesso à contraceção ou ao aborto, a proteção contra infeções sexualmente transmissíveis (IST), a disfunção sexual (DS), sequelas relacionadas com a violência sexual ou mutilação genital feminina, e a possibilidade de ter experiências sexuais seguras e prazerosas, sem coerção, discriminação e violência.1
Assim, a saúde sexual é uma esfera essencial e basilar na qualidade de vida de qualquer indivíduo e estima-se que a DS seja uma patologia bastante prevalente. Apesar de,2,3 até à data, os estudos realizados serem escassos e os dados observados serem bastante heterogéneos, uma vez que, são usados diferentes modelos de classificação, estima-se que a disfunção sexual feminina (DSF) em Portugal se situe entre os 40% e os 70% e a nível mundial entre os 25% e os 63%.2 Nos EUA, estudos concluíram que a DS tem incidências diferentes entre os sexos: 10% a 52% entre os homens e 25% a 63% entre as mulheres.3
O modelo de resposta sexual feminina aceite atualmente, proposto por Rosemary Basson em 2000, tem em conta fatores biopsicossociais aliados às fases de desejo, excitação, plateau e orgasmo.4 A definição de DS, segundo a classificação do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM -V) da Associação Americana de Psiquiatria, remete a uma perturbação em qualquer uma destas fases de resposta sexual ou à presença de dor associada à relação sexual.2
Segundo a DSM-V, a DSF pode ainda ser classificada em três categorias nomeadamente: Disfunção do interesse sexual ou excitação, que inclui a redução do interesse ou da excitação na atividade sexual ou em reposta a qualquer estímulo erótico; redução de pensamentos ou fantasias sexuais e reduzida ou nenhuma iniciativa para o início da atividade sexual; disfunção do orgasmo e disfunção da dor génito-pélvica durante o coito ou tentativas de penetração ou medo intenso e ansiedade por antecipação da penetração vaginal.4,5
A DSM-V classifica também a DSF em primária, secundária ou persistente; generalizada ou circunstancial; ligeira, moderada ou severa. E subdivide, ainda, os fatores que contribuem para a DSF em fisiológicos ou combinados.4,5
Para o diagnóstico destas disfunções é necessária a persistência dos sintomas por mais de seis meses. Para além disso, os sintomas têm de causar sofrimento e perturbação na vida da mulher e não podem ser explicados por perturbação mental, efeito do consumo de substâncias, causa física ou stress significativo da relação ou de qualquer origem.3,5,6
Na maioria dos casos, a causa da disfunção sexual é multifatorial, representando uma interação complexa entre os diversos fatores implicados, como a idade; nível educacional da mulher; fatores relacionados com o/os parceiros ou com a relação; fatores médicos (como depressão, ansiedade, doenças endócrinas, doenças neurológicas e oncológicas ou abuso de substâncias); o uso de medicação (antidepressivos, antipsicóticos, etc.); alterações hormonais fisiológicas como a menopausa e a amamentação; fatores físicos (como o desejo e lubrificação); fatores culturais ou religiosos ou outros.2-4,6-8
O efeito dos contracetivos hormonais (CH) na sexualidade feminina há muito que tem vindo a ser matéria de discussão e a literatura existente é díspar nas conclusões.9 Os benefícios da CH são bem conhecidos, como a regulação do ciclo menstrual com hemorragias previsíveis, diminuição do fluxo menstrual e diminuição da prevalência de anemia. Promovem a resolução de disfunções ginecológicas como dismenorreia, endometriose ou síndrome do ovário poliquístico e são importantes na redução de preocupações com a imagem corporal, influenciando positivamente a autoestima em mulheres com hiperandrogenismo (acne ou hirsutismo).6 Contudo, os seus efeitos sistémicos podem apresentar um impacto negativo na saúde da mulher, como o aumento do risco cardiovascular e risco protrombótico (especialmente associado aos CH combinados com estrogénios), e a sua eventual associação a efeitos negativos a nível da função sexual feminina.10,11
Desta forma, o objetivo deste estudo será rever a literatura publicada sobre este tema nos últimos 10 anos e compreender se existe relação causal entre o uso de CH e a disfunção sexual feminina. Com esta revisão, pretendemos melhorar o aconselhamento e acompanhamento da mulher nas consultas de planeamento familiar. É sabido que as experiências negativas relativamente ao uso de contracetivos hormonais são as principais causas de descontinuação ou alteração do método em estudos observacionais, havendo, por isso, uma necessidade de entender os efeitos secundários na saúde mental e física das mulheres, de forma a otimizar o uso de contraceção.9 O controlo sobre a reprodução é fulcral para a liberdade sexual da mulher.
Métodos
Foi realizada a pesquisa da literatura, entre os dias 4 e o dia 8 de Abril de 2022, nas principais bases de dados de medicina baseada na evidência: PubMed; Science-Direct; Cochrane Library; British Medical Journal (BMJ); Canadian Medical Association Practice Guidelines Info-Base; National Guideline Clearinghouse and National Institute for Health and Care Excellence (NICE); Agency for Healthcare Research and Quality (AHRQ); Clinical Practice Guidelines Infobase e Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar.
Foram utilizados os termos: “female sexual dysfunction”; “oral contraceptives”; “hormonal contraceptives”. Os critérios de inclusão foram: artigos publicados em língua Portuguesa ou Inglesa, datados de janeiro de 2012 a março de 2022 que visassem a população do sexo feminino, com idade igual ou superior a 18 anos e igual ou inferior a 51 anos, sob terapêutica contracetiva.
Foram excluídos artigos que não cumprissem os critérios de inclusão ou duplicados.
A seleção dos artigos por título e resumo foi dividida entre todos os autores, bem como a sua leitura na íntegra para a decisão de inclusão.
Assim, da pesquisa efetuada obtiveram-se 159 artigos. Após aplicação do filtro temporal (últimos 10 anos), estes resumiram-se a 71 artigos. Destes, 2 foram excluídos por estarem escritos em Francês. Após leitura do título e do abstract de cada um dos artigos e verificação do cumprimento dos critérios de inclusão, obtiveram-se 17 artigos que se enquadravam nos objetivos do estudo.
Foram consultados os seguintes livros: Consenso sobre contraceção datado de 2020; Protocolos de Ginecologia no âmbito dos Cuidados de Saúde Primários (2019) e o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5.ª edição (DSM -V - 2013). Foi, ainda, consultado o site da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica na data de 8 Abril de 2022.
Resultados
De modo a facilitar a interpretação dos resultados, as
autoras do trabalho optaram por estruturar a informação
científica encontrada na literatura em três questões
essenciais e respetiva resposta.
1. Quais os mecanismos fisiopatológicos envolvidos na contraceção hormonal?
A CH inclui métodos reversíveis de curta duração nomeadamente contracetivos orais combinados (COC), adesivo transdérmico e anel vaginal; métodos reversíveis de longa duração, como o sistema intra-uterino (SIU) de levonorgestrel, o implante subcutâneo de etonogestrel e o Injetável.12,13 Cada um destes métodos tem um mecanismo de ação diferente no organismo da mulher, levando a que o seu efeito na função sexual seja também distinto. Existem, ainda, métodos contracetivos não hormonais como o dispositivo intra-uterino (DIU) de cobre e o preservativo feminino e masculino e os métodos naturais.13
Na CH estão envolvidos três grupos de hormonas esteroides sexuais (estrogénios, progesterona e androgénios) que são conhecidos pela sua influência na função sexual feminina, via diferentes efeitos no tecido vaginal e no sistema nervoso central.14 Em termos fisiológicos, a CH é responsável por uma diminuição dos níveis circulantes destes três esteroides sexuais.15 O principal mecanismo fisiopatológico é a supressão da ovulação através da inibição da produção e da secreção de hormona folículo estimulante (FSH) e hormona luteinizante (LH) pela hipófise. A inibição de FSH e LH também bloqueia a normal produção de hormona libertadora de gonadotrofinas (GnRH) pelo hipotálamo, reduzindo os níveis de FSH e LH circulante.15,16 Desta forma, não há desenvolvimento folicular nem ovulação ou formação do corpo amarelo, por ausência de pico de LH. Consequentemente, há uma redução da secreção ovárica de estradiol e ausência de produção de progesterona.15 Sabe-se que, na mulher saudável que não faz qualquer tipo de contraceção, o desejo sexual ao longo do ciclo menstrual varia, sendo este maior na fase folicular e peri-ovulatória do que na fase luteínica, pelo que se poderia deduzir que a contraceção hormonal ao impedir as flutuações hormonais cíclicas, provocaria uma diminuição do desejo sexual das suas utilizadoras.15 Por outro lado, a dopamina é o neurotransmissor central do desejo e a testosterona o principal androgénio a influenciá-la. Esta última parece estar envolvida na iniciação da atividade sexual.10
A administração oral de estrogénios, particularmente de etinilestradiol (EE), o estrogénio sintético mais comum nos COC, também está relacionada com o aumento dos níveis hepáticos de hormona ligadora de globulina sexual (SHBG), uma proteína transportadora de hormonas sexuais. Este efeito pode ser potenciado ou diminuído pela coadministração de progesterona, dependendo das propriedades androgénicas ou antiandrogénicas destas hormonas sintéticas.15 Os CH com progestativos com atividade androgénica induzem um menor aumento da SHBG, e os CH com progestativos com atividade antiandrogénica levam a maiores aumentos da SHBG.15 Uma elevada concentração de SHBG leva à diminuição dos níveis de testosterona livre, uma vez que a testosterona tem uma elevada afinidade pela SHBG.15 Por exemplo, um estudo demonstrou que a toma de COCs de segunda geração resultou no menor aumento de SHBG, enquanto a toma de COCs de terceira e quarta geração resultou no maior aumento da mesma.15 Ao realizarem uma análise de subgrupo combinando a dose de estrogénio com o tipo de progestógeno, foi encontrada uma diferença significativa (p < 0,001), ou seja, os COCs com progestativos de segunda geração (norgestrel e levonorgestrel) e contendo a dose mais baixa de 20-25 ug de etinilestradiol causaram o menor aumento de SHBG.11 Por outro lado, é sabido que os dispositivos intrauterinos têm efeito contracetivo ao provocarem o espessamento do muco e a atrofia glandular e que o SIU provoca, também, a inibição parcial do desenvolvimento folicular e ovulação e a inibição da fecundação por aumento da produção de glicodelina.6,9,11
Assim, o ambiente androgénico é alterado com todos os tipos de CHC (contracetivos hormonais combinados). Por outro lado, os CHC suprimem a produção de androgénios pelo ovário. Ao haver interferência no nível de androgénios, é provável que haja um impacto negativo na função sexual feminina. Um exemplo é o facto de os androgénios terem um papel determinante na síntese de glicoproteínas para a formação de muco.6
2. Qual a relação entre a dsf e a contraceção?
De modo a tornar intuitiva a interpretação da influência da contraceção na sexualidade feminina, as autoras subdividiram a informação segundo a classificação de DSF proposta pela DSM-V.
Disfunção do interesse sexual ou excitação
A insuficiência androgénica causada pela CH pode contribuir para a DSF, no entanto, desconhece-se em que medida uma vez que existem muitos outros fatores de etiologia não hormonal que afetam este desejo.11,16
O papel das hormonas no desejo sexual feminino tem sido alvo de especial interesse, não se tendo, no entanto, verificado uma correlação direta entre os níveis séricos de hormonas endógenas e o desejo sexual em mulheres saudáveis, uma vez que a perceção de desejo sexual é subjetivo, impossibilitando o doseamento hormonal.10 Hipotetiza-se que os possíveis efeitos negativos da CH incluem diminuição do desejo, lubrificação e excitação devido aos efeitos centrais em diferentes regiões do cérebro, incluindo o hipotálamo mediobasal e núcleo arqueado, onde os esteróides sexuais alteram a complexidade de interação entre os neurotransmissores e neuropeptídeos.10 Um estudo descreve que o parâmetro chave que pode afetar a libido nas mulheres com COC está relacionado com a diminuição dos níveis de testosterona e aumento dos níveis de SHBG.13
Quando os autores comparam o anel vaginal com os contracetivos orais concluem que o etonogestrel e o nível baixo de EE no anel vaginal tem um menor impacto no score de FSFI (Female Sexual Function Index), pela menor interferência na produção de SHBG.13 O FSFI é uma escala de avaliação da função sexual feminina que consiste em 19 itens e avalia os domínios-chave do funcionamento sexual feminino, tais como: desejo, a excitação, a lubrificação, o orgasmo, a satisfação e a dor, nas 4 semanas prévias à realização do questionário.2,17 A escala permite pontuar a sintomatologia entre 2 a 36 (sendo que uma classificação inferior a 26,55 é sinal de DS.2 Segundo os autores, o menor impacto do anel vaginal é explicado pela menor interferência na produção de SHBG quando comparado com os COC.
Contudo, o estudo baseia-se numa amostra restrita e não randomizada e não foi realizado um doseamento sanguíneo de SHBG, o que torna pouco fiável a extrapolação de resultados.13
Acredita-se que a diminuição do desejo sexual e da libido é o efeito mais reportado pelas mulheres que usam contraceção, nomeadamente nas que tomam COC, com taxas de prevalência que variam de 20% a 30%.11 Dos estudos analisados, um deles avaliou os fatores de descontinuidade do método contracetivo num grupo de 6724 mulheres em idade fértil, e observou que 65,5% da população em estudo, suspendeu o método por um período superior a 1 mês, sendo o principal motivo, os efeitos secundários quer a nível da esfera sexual quer emocional, que ocorreram em 34,8% das inquiridas.18 A análise dos efeitos adversos concluiu que havia dois pontos cruciais para a diminuição da adesão e descontinuação do método escolhido nomeadamente: irregularidades do ciclo menstrual / spotting (cuja incidência variou entre 5,9% e 42%, dependendo da concentração hormonal) e alterações nas relações sexuais por diminuição de líbido (cuja incidência variou entre 23% - 78%).18 Este último efeito adverso foi, também, um dos principais problemas reportados num estudo realizado recentemente (2022), com uma amostra de 536 mulheres em idade reprodutiva que estavam a usar ou já tinham usado qualquer tipo de contraceção.18 Este estudo concluiu que uma das principais queixas relacionadas com a CH foi a diminuição do desejo, e, esta, constituiu também uma das principais razões para que as mulheres optassem por alterar o método anticoncecional para contraceção intrauterina (DIU ou SIU).18 Um outro estudo concluiu que, relativamente à perturbação do desejo, as mulheres utilizadoras de CH, comparativamente às que usavam outro método contracetivo ou nenhum, tinham uma probabilidade 2,6 vezes superior de vir a sofrer de diminuição do desejo sexual (OR = 2,598, IC = 95%; p= 0,003 (Teste de Fisher)).2
Disfunção do orgasmo
Os problemas relacionados com o orgasmo feminino rondam os 20% em todas as faixas etárias.2
Num estudo realizado com 1101 participantes foram incluídas apenas mulheres, com idade inferior a 51 anos (pois a partir desta idade, a disfunção sexual pode ser atribuída à menopausa), com parceiros sexuais masculinos, uma vez que, estas são mais propensas a utilizar métodos contracetivos, e sexualmente ativas nas 4 semanas prévias. De acordo com os resultados obtidos no estudo, as mulheres que utilizavam métodos de CH relataram menor satisfação sexual, nomeadamente diminuição da excitação ou prazer sexual, orgasmos menos frequentes, experimentando importante perceção de redução da lubrificação vaginal, e atividade sexual com parceiro menos frequente.10
Outro estudo piloto, testou vinte e duas mulheres adultas, saudáveis e com menstruações regulares, antes e após 3 meses de terapêutica com um COC (Yasmin®). Os resultados demonstraram que estas mulheres apresentaram menos frequência de orgasmos (p=0,005).15
A avaliação da satisfação do orgasmo é subjetiva. Por esse motivo, os estudos realizados têm vindo a apresentar resultados inconsistentes.11
Disfunção da dor génito-pélvica
Paralelamente à diminuição do desejo sexual, a COC tem sido associada ao aumento da incidência de dor génito-pélvica ou vestibulodinia.9-11
Segundo as conclusões relatadas num estudo recente, as utilizadoras de COC apresentaram maior risco de desenvolvimento de DSF (p= 0,865), especialmente dispareunia (40,9%), dor durante o ato sexual (27,4%) e vaginismo (16,7%), apesar destes resultados não se apresentarem como estatisticamente significativos.2
Os androgénios são fundamentais no processo de síntese das glicoproteínas necessárias à formação de muco. A diminuição dos seus níveis está, por isso, associada à diminuição da lubrificação vaginal. Apesar de ainda não existirem estudos que o comprovem, esta poderia ser uma explicação plausível para o desenvolvimento de vestibulodinia associada ao uso de COC.18
Um estudo randomizado, avaliou 3 grupos de mulheres: um grupo com COC de baixa dose de EE; um grupo com COC de alta dose EE e um grupo com utilizadoras de anel vaginal. Concluíram que os grupos sob utilização de COC reportaram maior secura vaginal, comparativamente às utilizadoras de anel vaginal (aproximadamente 30% e 2% de mulheres, respetivamente), colocando-se a hipótese de que a diminuição do risco de secura vaginal com o anel se deve ao nível constante de hormonas e à libertação local de estrogénio.13
Sintomas sexuais em mulheres portadores de SIU de levonorgestrel foram similares aos de mulheres portadoras de DIU de cobre, sugerindo a sua segurança relativa no perfil sexual.13
Em suma, em mulheres que usam COC, uma deficiência de androgénios pode contribuir para a secura vaginal e vulvar associada à diminuição da excitação, prazer sexual e dor sexual.5,7,16
3. Quais as principais diferenças entre os vários métodos contracetivos, relativamente ao impacto na função sexual feminina?
Os métodos de contraceção não orais parecem ser uma boa alternativa para mulheres que experienciam DSF sob toma de COC.19
Um estudo multicêntrico que envolveu 845 mulheres, utilizadoras de contraceção intrauterina, mostrou que, apenas 1/3 das utilizadoras de SIU-levonorgestrel (33%) relataram disfunção sexual. Destas, 20% relataram aumento do desejo sexual, 25% diminuição do desejo sexual, 5% problemas de excitação e 8% problemas de orgasmo.8 Quando comparadas com as mulheres utilizadoras de DIU de cobre, não houve diferença estatisticamente significativa na qualidade do relacionamento com o parceiro (p= 0,74), tendo os autores inferido que no geral, a influência no funcionamento sexual não diferiu muito entre as utilizadoras de DIU de cobre e as utilizadoras de SIU-LNG.8
O estudo Gracia et al, que incluiu 250 mulheres que usaram adesivo transdérmico e 249 mulheres que usaram anel vaginal, demonstrou uma maior proporção de mulheres com disfunção sexual no grupo do anel vaginal em comparação com o grupo do adesivo (37,9% vs 28,7%, respetivamente; p = 0,03).20
Relativamente à contraceção não hormonal, a esterilização tem efeitos positivos na esfera sexual atuando a nível psicológico através do alívio e conforto em saber que a atividade sexual não irá gerar uma gravidez. Por outro lado, poderá causar arrependimento associado à irreversibilidade e impossibilidade de uma gestação futura.6
Um estudo recente (2022) abrangendo 2612 mulheres, aplicou o score FSFI para determinar se diferentes dosagens de progestativos e de EE em COC poderiam influenciar a função sexual, assim como o tipo de progestativo da formulação (androgénico ou antiandrogénico).
As dosagens analisadas de EE foram <20 ug; 20-30 ug; mais de 30 ug. A mediana do FSFI foi significativamente menor em não usuárias (24,4) versus usuárias (28,7) de contracetivos, sendo esta diferença estatisticamente significativa (p< 0,001). A análise estratificada mostrou que 57,4% das entrevistadas que não usavam contracetivos, 36,7% utilizadoras que usavam contraceção hormonal oral, 31,3% das utilizadoras que usavam contracetivos hormonais não orais e 27,4% das mulheres com contracetivos não hormonais estavam em risco de desenvolver disfunção sexual feminina (pontuação total do FSFI <26,55) As pontuações do FSFI para as três categorias de dosagem de EE e componentes de progestativo não diferiram significativamente.
Globalmente, o artigo conclui que todos os métodos contracetivos hormonais estudados apresentam um score FSFI mais baixo quando comparado com métodos contracetivos não hormonais (p< 0,001).
Nem o tipo de progestativo nem as doses de EE das pílulas mostraram efeito significativo na função sexual desta população, no entanto, ressalva-se que se trata de uma amostra pouco representativa da população feminina o que limita a extrapolação destes resultados.13
4. Como podemos avaliar a dsf na consulta de planeamento familiar?
A Organização Mundial da Saúde desenvolveu, em 2015, a ferramenta Brief Sexuality Related Communication (BSRC), para facilitar e guiar a abordagem da temática da sexualidade em consulta. Esta ferramenta baseia-se na sequência: abordar (através da utilização de perguntas-tipo para introduzir o tema), responder (usando perguntas abertas acerca da satisfação com a vida sexual), personalizar (identificação de problemas da mulher) e aconselhar (discussão sobre o plano terapêutico).1
Outra das ferramentas utilizadas é o PLISSIT que consiste no pedido de permissão (P) para abordar o tema, seguido da informação limitada (LI) onde se pretende a colheita de história clínica, sugestões específicas (SS), que visam fornecer sugestões específicas que se adequam ao problema da mulher ou casal, e por último, terapia intensiva (T) que estabelece a abordagem terapêutica individualizada.17,21
Finalmente, podemos ainda adaptar o conhecido modelo dos 5 As (abordar, aconselhar, avaliar, apoiar e acompanhar) à temática da sexualidade, e ainda utilizar o modelo dos 6 P’s (problemas, parceiros, práticas, prevenção de gravidez - métodos contracetivos, passado - história de IST, e proteção) para melhor caracterizar a história clínica da mulher.17 De modo a uniformizar a abordagem desta temática foi estruturada uma escala padrão para o diagnóstico de disfunção sexual em mulheres, denominada Female Sexual Function Index (FSFI).3 Tal como referido acima, este questionário é constituído por 19 questões. Dada a sua dimensão, por vezes, a sua aplicação é difícil e morosa.
Por este motivo, foi estruturado o FSFI - 6, baseando o nome na seleção de apenas 6 itens da escala total, um por cada domínio. Este questionário é rápido e a sua aplicação demora entre 1 a 5 minutos. Os estudos realizados até ao momento demonstraram que o FSFI-6 é uma ferramenta curta, válida e fiável para avaliação da DSF.17 Os itens relativos ao desejo e à satisfação variam entre 1 a 5 pontos, enquanto que os itens relativos à excitação, lubrificação, orgasmo e dor variam entre os 0 e 5 pontos. De salientar que o item relativo à dor está formulado utilizando uma escala de sentido inverso aos restantes itens, de forma a que os valores mais elevados indicam ausência ou quase ausência de desconforto durante o coito. O resultado total da escala, obtido pela soma dos itens, pode variar entre 2 e 30, com os valores mais altos a indicarem melhor funcionamento sexual Existe, ainda, o Massachusetts General Hospital - Sexual Functioning Questionnaire, validado para a língua portuguesa desde 2017.4
Existem outras escalas de avaliação de DSF, não validadas para a língua portuguesa e menos frequentemente usadas.4
Qual a importância do médico de família na abordagem da dsf?
O Médico de Família assume um papel decisivo na abordagem das DSF, uma vez que é a quem a mulher recorre num primeiro contacto, e pode fazer uso da consulta de Planeamento Familiar para abordar a temática da sexualidade.
No momento do aconselhamento sobre qual o melhor método anticoncecional a adotar é importante apresentar à paciente os seus benefícios e efeitos adversos, nomeadamente ao nível da esfera sexual. Quando existe a suspeita de DSF associada ao uso de CH, está recomendada a descontinuação da mesma e a troca por um método alternativo.10 No entanto, é fundamental que na escolha do método a mulher esteja bem informada, pois alguns estudos têm demonstrado que as mulheres que descontinuam o método inicial, nomeadamente a COC, geralmente escolhem um método menos eficaz ou optam por não utilizar nenhum método de contraceção, o que aumenta o risco de uma gravidez indesejada.16
O anel vaginal pode ser uma alternativa para mulheres que preferem CHC para controlo de ciclo mas que experienciaram DSF com COC.7
É de salientar, no entanto, que, devido à subjetividade da DSF, pode ser necessária uma abordagem terapêutica multidisciplinar. Consultar um terapeuta sexual pode ser útil para mulheres com dor sexual, reduzido desejo sexual ou problemas na relação amorosa. Se a mulher tem dificuldade em relaxar o pavimento pélvico, o fisioterapeuta especializado em reabilitação pélvica pode ser particularmente útil.6 Para o tratamento de secura vaginal está indicado o uso de lubrificantes vaginais e/ou hidratantes, ou terapêutica com estrogénio tópico.7
Discussão
A presente revisão narrativa teve como objetivo descrever os efeitos da CH na função sexual feminina.
Apesar da difícil avaliação da DSF e da disparidade de definições existentes, este é um problema real e que pode afetar significativamente a qualidade de vida das mulheres e dos seus parceiros.3 A nível biológico está demonstrado que esta condição é afetada pela interação de neurotransmissores e hormonas sexuais, embora os mecanismos exatos ainda não estejam bem compreendidos. O papel das hormonas no desejo sexual feminino tem sido alvo de especial interesse, não se tendo, no entanto, provado a existência de uma correlação direta entre os níveis séricos de hormonas endógenas e o desejo sexual em mulheres saudáveis.
Conclui-se com esta revisão narrativa que os métodos contracetivos poderão apresentar efeitos negativos sobre a sexualidade feminina, nomeadamente na diminuição do desejo sexual e líbido. Contudo, os estudos comparativos entre os vários tipos de contracetivos são maioritariamente inconclusivos e por vezes contraditórios.
É fundamental abordar este tema adequadamente em cada consulta de planeamento familiar e apresentar à mulher todas as opções disponíveis detalhadamente.
Neste sentido, o médico de família, como primeira linha de contacto, tem o papel preponderante de fornecer informação acerca de cada método contracetivo e aconselhar a utente adequadamente. Portanto, deve abordar os possíveis efeitos que os contracetivos hormonais podem ter no desempenho e na satisfação sexual feminina e, assim, permitir à mulher uma escolha informada e ajustada às expectativas, de forma a aumentar a adesão ao método e a satisfação da mesma.11,16,18
Após introdução de um método hormonal de novo é importante que haja uma consulta de reavaliação a curto prazo para questionar a adaptação ao método e averiguar possíveis efeitos adversos. Salienta-se, no entanto, que, perante a existência de algum sintoma relacionado com a DSF é imperativo colher uma história clínica completa, abrangendo o contexto relacional, cultural, social e psicológico, antes da prescrição farmacológica ou alteração do método anticoncecional, pois muitas vezes o tratamento destas disfunções exige uma abordagem holística e multidisciplinar.3,21
Apesar de tudo, a bibliografia relativa a este tema ainda é controversa, uma vez que avaliação da disfunção sexual feminina é baseada em escalas qualitativas e, por isso, depende da perceção de cada mulher, estando esta subjacente à experiência e ao contexto social onde está inserida.11,16 Para além disso, os estudos existentes utilizam amostras pequenas, não representativas da população feminina, com períodos de follow-up curtos. Outro viés às conclusões é o facto de muitas mulheres terem iniciado a contraceção durante a adolescência, um período de tempo pautado por flutuações emocionais e hormonais e a perceção de alterações na função sexual é difícil de gerir devido à imaturidade e inexistência de um meio de comparação com a sua própria função sexual. Assim, é no período pré-concecional e gravidez que as mulheres se apercebem do impacto hormonal da ausência de contraceção e podem manifestar o desejo de abandonar a CH.9
Dentro da CH é difícil retirar conclusões sobre qual o melhor método anticoncecional, no entanto, há vários estudos que sustentam que os dispositivos intrauterinos apresentam menor impacto na sexualidade feminina.7,15
As autoras concluem que será necessária investigação adicional com população mais abrangente que permita uma quantificação hormonal para concluir sobre uma correlação entre a CH e a função sexual.