Introdução
A deficiência intelectual comporta um grande impacto na saúde daqueles que dela padecem e apresentam um desafio para as famílias e para os cuidados de saúde.1
Estima-se que afete entre 1%-3% da população, com maior prevalência nos indivíduos do sexo masculino.1,2
Mutações ao nível do cromossoma X são uma importante causa de atraso mental, representando cerca de 10% de todos os casos.1,3-5 Este relato apresenta a situação de uma menina portadora de uma deleção 19,4kb na região Xq24 do genoma, envolvendo parcialmente o gene CUL4B. Mutações neste gene são responsáveis pelo desenvolvimento da síndrome de Cabezas (OMIM #300354; ORPHA:85293) nos homens, a qual cursa com deficiência intelectual, dismorfia, alterações endócrinas e geniturinárias.6,7
Esta síndrome é um tipo de atraso mental ligado ao cromossoma X, por isso é compreensível que se manifeste mais frequentemente nos indivíduos masculinos, sendo as mulheres, tendencialmente, portadoras assintomáticas.5,8,9 O CUL4B desempenha um papel importante em alguns processos celulares, nomeadamente na ubiquitinação das histonas e no controlo do ciclo celular.2,5 Nos casos de atraso mental ligado ao X, as mutações no CUL4B são frequentes, podendo estes doentes apresentar obesidade centrípeta, tremor, hipogonadismo, macrocefalia relativa, baixa estatura, macroglossia, braquidactilia e puberdade tardia.10
Este relato reporta um caso de alteração genética e fenótipo sugestivo de síndrome de Cabezas, numa menina. A complexidade da situação clínica exige acompanhamento em diversas especialidades médicas, envolvendo ainda várias áreas terapêuticas e de reabilitação na comunidade.
Caso clínico
Menina de 12 anos de idade, caucasiana, filha de pais não consanguíneos. Vive inserida numa família do tipo nuclear (filha única), em estádio IV do ciclo familiar de Duvall.
Clinicamente, apresenta atraso do desenvolvimento psicomotor, ataxia, epilepsia, estrabismo (corrigido cirurgicamente), excesso de peso, esteatose hepática, macrocefalia, dismorfia facial, astigmatismo e hipermetropia (óculos de correção), bruxismo, escoliose, hiperlaxidez articular (hipermobilidade das rótulas), manchas cutâneas hiperpigmentadas (tipo café au lait) no abdómen e na coxa direita, híper pigmentação axilar e abdução do hálux bilateralmente.
Os progenitores não possuem antecedentes médicos pertinentes, tendo sido ambos submetidos a estudo genético (sem alterações). Sem antecedentes familiares relevantes.
Objetivamente, estatura de 150 cm (percentil 3-15), 52,7 kg de peso e índice de massa corporal de 23,4 kg/m2 (percentil 85-97). Macrocefalia relativa e face alongada com estreitamento bitemporal e fronte longa, olhos profundos, boca grande, pavilhões auriculares com implantação baixa e endentações no lóbulo da orelha, nariz com ponta de aspeto adunco. Ausência de linguagem expressiva (é apenas capaz de dizer cerca de 8-10 palavras). Marcha atáxica e movimentos estereotipados com as mãos na linha média. Três manchas cutâneas hiperpigmentadas do tipo café au lait, a maior com cerca de 1 cm de diâmetro, na metade direita do abdómen e algumas na coxa direita. Híper pigmentação cutânea axilar. Hipermobilidade das rótulas e abdução do hálux de ambos os pés. Sem outras alterações à examinação.
A gestação foi vigiada adequadamente, e não se identificaram alterações aos rastreios bioquímicos e ecográficos; sem história de uso de fármacos/substâncias de abuso, tendo cumprido a suplementação indicada.
Gestação com intercorrências por anemia ligeira e descolamento da placenta em repouso aos 5 meses.
Parto eutócico, sem intercorrências, às 38 semanas. Ao nascimento com índice de Apgar 10/10/10, peso 2,935 g (percentil 15-50); comprimento 47,5 cm (percentil 15-50) e perímetro cefálico 35 cm (percentil 50-85). Apresentava abdução do hálux de ambos os pés ao nascimento, sem outras dismorfias.
Relativamente ao desenvolvimento psicomotor, adquiriu controlo cervical aos 9 meses de idade, aos 12 meses foi capaz de emitir sons sem intenção e de se sentar sem apoios aos 15 meses. Começou a gatinhar após os 24 meses de idade, com recurso a fisioterapia, ortostatismo conseguido pelos 27 meses (com recurso a fisioterapia diária). Adquiriu a capacidade de andar (apoiada) aos 36 meses, mas só o fez de forma autónoma aos 5 anos. Aos 3 anos de idade adquiriu controlo de esfíncteres. Disse as primeiras palavras intencionais e inteligíveis aos 10 anos. No contexto da ocorrência de convulsões a partir dos 12 meses de idade, e até cerca dos 3 anos cumpriu terapêutica com carbamazepina.
Pela ocorrência de mioclonias que motivaram internamento em 2014, procedeu-se a ajuste terapêutico, iniciando valproato de sódio 100 mg duas vezes ao dia e descontinuando carbamazepina. Em 2017 foi diagnosticada com esteatose hepática e elevação das transaminases no contexto de toxicidade hepática induzida por valproato de sódio, pelo que esta terapêutica foi alterado para levetiracetam 500 mg duas vezes ao dia, cuja dose foi progressivamente titulada até 1000 mg duas vezes ao dia, não se registando crises epiléticas desde 2020.
Realizou ressonância magnética cerebral (2011 e 2014 - sem lesões progressivas entre estas): ambas apresentaram alterações de híper sinal da substância branca peritrigonal, periventricular posterior e parietal bilateral, também com envolvimento menos expressivo frontal, ligeiro adelgaçamento da porção interparietal do corpo caloso, mega cisterna magna e inexistência de malformações cavernosas. O eletroencefalograma mais recente (2021) foi normal.
Foi realizado um extenso estudo diagnóstico da situação. Não se reportaram alterações de relevo no estudo analítico (nomeadamente apresentava função tiroideia normal). O estudo genómico realizado ao 1 ano de idade, revelou cariótipo 46 XX. Realizou hibridação genómica comparativa em DNA array (CGHa), aproximadamente aos 3 anos de idade, que demonstrou deleção 2,9 kb em 7p13 envolvendo o gene CCM2 (associado a malformações cavernosas cerebrais) e deleção 19,4 kb em Xq24 envolvendo parcialmente o gene CUL4B (associado a síndrome de Cabezas). Ambos os progenitores não apresentaram alterações no CGHa.
Aos 3 anos de idade foi pesquisada a existência da síndrome de deleção 22q11.2 (através de fluorescence in situ hybridization) que não demonstrou alterações. Pelos 7 anos de idade, realizou sequenciação do exoma, não tendo sido identificadas alterações. Aos 9 anos de idade, a hipótese de síndrome de Angelman foi descartada pela realização de methylation-specific multiplex ligation-dependent probe amplification, tendo ainda realizado, nessa altura, estudo do padrão de inativação do cromossoma X que foi inconclusivo.
O diagnóstico foi desafiador pela raridade do caso e pela inexistência de relatos em indivíduos do sexo feminino, tendo sido necessária uma abordagem multidisciplinar com recurso a extensão investigação diagnóstica. As alterações descritas neste quadro foram atribuídas, pela Genética, à deleção parcial do gene CUL4B. Foram consideradas algumas hipóteses de diagnóstico diferencial como síndrome de Börjeson-Forssman-Lehmann, síndrome de Wilson-Turner e síndrome de Smith-Fineman-Myers. Outras hipóteses de diagnóstico foram consideradas e excluídas, como a síndrome de Angelman (atraso mental, dificuldade no desenvolvimento da fala, ataxia, convulsões, hiperatividade, microcefalia e hipotonia muscular com hiperreflexia)11,12; e a síndrome de deleção 22q11.2 (malformações congénitas cardíacas e do palato, dismorfia facial, convulsões e dificuldades na aprendizagem).13
Relativamente ao processo terapêutico, cumpre terapêutica farmacológica com omega 3, canabidiol (2,5 mL, 3 vezes por dia) e levetiracetam 1000 mg (2 vezes por dia), tendo suspendido o valproato de sódio em contexto de hepatotoxicidade pelo mesmo. Foi submetida a correção cirúrgica de estrabismo. Cumpre programas de reabilitação: neurofeedback, fisioterapia, terapia ocupacional e terapia da fala. De destacar o papel fulcral da família em todo o processo terapêutico, sublinhando a enorme dedicação e carinho evidentes.
Mantém seguimento nos cuidados de saúde primários e em consultas hospitalares (Genética Médica, Neurologia, Endocrinologia, Pediatria e Nutrição). Foi incluída em estudo de investigação internacional, o qual se encontra a decorrer.
A utente tolera a intervenção farmacológica em vigor, cumprindo adequadamente o plano terapêutico estabelecido. Apresenta benefícios com os planos de reabilitação em curso, prevendo-se a continuação dos mesmos com vista à manutenção e eventual desenvolvimento das suas capacidades.
Discussão
A partilha deste caso torna-se importante pela raridade e peculiaridade da situação. Como referido, a deficiência intelectual é pouco prevalente, sendo que, em apenas cerca de 5%-10% dos casos, a mesma se deve a mutações do cromossoma X.3,5 Dentro deste grupo, Okamoto et al (2017) refere que, apesar do gene CUL4B ser um dos mais comumente mutados, existe um grande desafio diagnóstico pela variabilidade de mutações no CUL4B capazes de causarem alterações patológicas cujos fenótipos possuem sobreposições entre várias síndromes.
A síndrome de Cabezas é uma síndrome rara, com apenas cerca de 120 casos descritos no mundo, sendo uma forma de deficiência intelectual ligada ao cromossoma X, causada por uma mutação ao nível do CUL4B, cujos indivíduos afetados (tipicamente rapazes) apresentam baixa estatura, hipogonadismo, alterações da marcha, convulsões, tremores, problemas comportamentais, macrocefalia, obesidade, deficiência intelectual e dificuldade marcada da linguagem, várias alterações cutâneas e dedos abductos.4,5,14 O caso aqui retratado apresenta alterações genéticas e fenotípicas que são coincidentes com esta síndrome e, apesar de as mulheres serem tipicamente assintomáticas, em casos raros podem apresentar dificuldade de aprendizagem, transtorno de défice de atenção ou tremor. As alterações encontradas e investigadas neste caso não foram melhor explicadas por outras hipóteses de diagnóstico, as quais, após estudo, foram excluídas.
O relato de uma situação clínica rara e a possibilidade de alertar para os sinais que permitam considerar o seu diagnóstico, é tido como um ponto importante deste trabalho. Após a leitura deste caso, somos ainda sensibilizados para a importância de um serviço de saúde diferenciado e devidamente articulado, incluindo os parceiros de saúde existentes ao nível da comunidade.
Este caso espelha também a importância da Medicina Geral e Familiar, e sobretudo das suas competências e características, destacando os cuidados centrados na pessoa e na família, a abordagem abrangente e holística e a gestão de cuidados de saúde.15 Os autores consideram uma limitação deste relato a necessidade de existirem mais evidências sobre este tipo de condições genéticas, o que ressoa na existência de parca evidência sobre esta temática atendendo ao diminuto número de indivíduos afetados. Por outro lado, as descobertas científicas no campo da genética estão a permitir a identificação de novas doenças raras.
Este caso demonstra a necessidade da inclusão da família e da comunidade na órbita dos cuidados de saúde e na importância da Medicina Geral e Familiar na articulação dos mesmos.