INTRODUÇÃO
A doença Coronavírus 2019 (COVID-19) é a expressão clínica da infeção pelo vírus zoonótico SARS-CoV-2. Esta doença apresenta-se na maioria dos casos (80%), em formas ligeiras a moderadas, contudo 6,1% terão doença crítica com necessidade de internamento numa Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) (1.
Os motivos mais comuns para a admissão em UCI são a insuficiência respiratória hipoxémica e hipotensão que requerem ventilação mecânica invasiva (VMI) e tratamento vasopressor respetivamente. A maioria dos doentes admitidos em UCI apresenta falência multiorgânica, incluindo síndrome de dificuldade respiratória aguda (SDRA). Para doentes com SDRA, os internamentos prolongados em UCI têm um impacto significativo na redução da função pulmonar e na atividade muscular 2.
Ensaios clínicos em rede demonstraram que uma estratégia de ventilação mecânica protetora, baseada em volumes correntes baixos, foi capaz de reduzir a mortalidade por SDRA. Se os níveis de oxigenação permanecerem baixos com altos níveis de pressão positiva no final da expiração (PEEP), outros procedimentos avançados podem ser realizados: posição prono (PP) e a oxigenação extra-corpórea por membrana veno-venoso (ECMO- VV)3.
A ECMO-VV é um tratamento que atua essencialmente substituindo os pulmões por um oxigenador artificial externo para executar as trocas gasosas. Apesar de eficaz, a ECMO-VV não está isenta de riscos, nomeadamente devido à colocação percutânea de cânulas de grande calibre, necessidade de anticoagulação sistémica, acarretando risco de eventos hemorrágicos-trombóticos 3. Durante a intervenção do Enfermeiro Especialista de Enfermagem de Reabilitação (EEER) é importante a vigilância de hemorragias nos locais de inserção dos acessos vasculares, do reflexo pupilar e das características das secreções, entre outras.
As intervenções do EEER em contexto de doença crítica, em UCI, visam a redução da incidência de fraqueza muscular adquirida e melhoria da qualidade de vida e prognóstico vital dos doentes. No entanto, não existe prática descrita nem evidência em contexto COVID-19, o que acarreta que as intervenções de reabilitação devam ser avaliadas individualmente e de forma dinâmica, adaptando-se às mudanças rápidas que caraterizam a progressão da doença 1.
Após a vivência de uma situação que exigiu da equipa de saúde, designadamente dos EEER, uma série de decisões difíceis, considerou-se útil partilhar as mesmas. Assim foram definidos como objetivos: descrever as intervenções em termos de Cinesiterapia Respiratória (CR) na pessoa com COVID-19 em ECMO-VV, analisando a resposta em termos de parâmetros gasométricos e ventilatórios.
METODOLOGIA
Seguiu-se a metodologia de estudo de caso, de acordo com as indicações de Budgell4.
Os cuidados de Enfermagem de Reabilitação na CR foram efetuados diariamente e em alguns dias foram bi-diários. Decorreram entre os meses de abril e maio, numa UCI de um Centro Hospitalar da Administração Regional de Saúde do Centro.
A colheita de dados foi realizada mediante anamnese e consulta do processo clínico, referente ao período em que o doente esteve em VMI (entre o D2 e D38), tendo sido realizada de forma completamente anonimizada, garantindo a irreversibilidade da mesma. Foi igualmente obtido o consentimento informado do familiar da doente.
Considerou-se como outcomes de eficácia: os valores gasométricos (FiO2, PaO2, PaCO2 e SO2) avaliados por gasómetro RAPIDPoint® 500; os parâmetros ventilatórios (volume inspiratório, volume expiratório, compliance estática) avaliados no ventilador Servo I e a evolução radiológica (Radiografia no leito, anterior). Na análise dos dados determinou-se a diferença após-antes CR, em termos de valores gasométricos e ventilatórios.
Evolução do estado clínico do doente
Doente de 63 anos, sexo feminino, raça caucasiana, e nacionalidade portuguesa. Profissão comerciante e reside com o marido, previamente autónoma nas atividades de vida diária. Apresenta como antecedentes pessoais: obesidade e hipertensão arterial.
A doente iniciou sintomas de febre (38,0-38,5ºC), mialgias, tosse seca e diarreia, vindo a agravar a situação, recorreu ao serviço de urgência com 7 dias de evolução. A radiografia (RX) tórax evidenciava infiltrados bilaterais e a tomografia axial computorizada torácica revelou “infiltrados parenquimatosos bilaterais com densidade vidro despolido de distribuição predominantemente periférica a toda a altura dos campos pulmonares, compatível com infeção vírica por COVID-19”. Por agravamento das trocas gasosas e radiológico e com necessidade crescente de FiO2, foi realizada entubação endotraqueal e a doente foi transferida para UCI para VMI e submetida a PP.
Parâmetros ventilatórios com Fracção Inspirada de Oxigénio (FiO2) de 100%, PEEP 14cmH20, relação PaO2/FiO2 <100 e com valores de gasometria: PaCO2 53mmHg, PaO2 102mmHg, HCO3 29.7, lactatos 1.6 e Ph 7,34. Foi referenciada para ECMO-VV, sendo realizada canulação veno-venosa e resgatada pela equipa de ECMO desta UCI.
No D2 iniciou CR e apresentava RX com opacidade bilateral (Imagem 1A). Durante o internamento a doente foi submetido a ventilação protetora.
Ao D7 iniciou PP com melhoria das trocas gasosas e discreto aumento do volume corrente e de compliance apresentando drenagem de secreções em abundante quantidade.
Ao D9, foi associado às técnicas de CR a utilização do in-exsuflador mecânico (I-EM).
No D19 a doente foi decanulada do ECMO-VV, permanecendo em VMI (Pressão Controlada, FiO2 50%, PEEP 8cmH2O e Volume Total de 320ml).
Ao D25 realizou o último PP, foi traqueotomizada e suspensa a curarização no dia seguinte. Ao D30 suspendeu sedação.
Iniciou desmame ventilatório ao D31, com o primeiro treino de ventilação espontânea (VE) de 5 horas.
Ao D32 de internamento fez a primeira transferência para cadeirão, enquanto esteve sentada foi realizada a primeira video-chamada com o familiar de referência, que no decorrer do internamento manteve contacto diário. Foram realizadas transferências para o cadeirão sempre que a situação clínica o permitia e a partir do D38 ficou em VE definitiva com Oxigénio a 1L/min.
RESULTADOS
Os resultados mostram que a CR teve início ao D2, onde foram realizadas 47 sessões (22 foram bi-diárias), mantendo as intervenções de CR até ao momento da alta. Ao D9 foi associado às técnicas de CR a utilização do I-EM, sendo este utilizado em 17 sessões.
Em análise ao processo de Enfermagem de Reabilitação identificaram-se dois diagnósticos de enfermagem relacionados com o foco respiração: a limpeza das vias aéreas ineficaz e ventilação comprometida. Relativamente à limpeza das vias aéreas e à ventilação as técnicas aplicadas encontram-se representadas no Gráfico 1.
Relativamente aos resultados dos outcomes dos valores gasométricos, verificou-se que na maioria das intervenções de CR, a PaO2 e a SO2 diminuíram, a PaCO2 aumentou e na relação PaO2/FiO2 houve igual número de tendências positivas e negativas. Por outro lado, na maioria das sessões os volumes inspiratórios e expiratórios, assim como a compliance estática aumentaram após a CR (Gráfico 2).
Analisando agora as sessões de CR em que foi utilizado o I-EM, todos os outcomes apresentaram melhorias globais, salientando-se nomeadamente, o volume inspiratório, a compliance estática, o PaO2 e a relação PaO2/FiO2 com maiores percentagens de melhoria após a sessão (Gráfico 3).
Os resultados, nos dias em que o doente estava submetido a ECMO-VV e na CR foi utilizado I-EM, mostraram que todos os outcomes aumentaram, à exceção da PaCO2 que diminuiu ligeiramente (Gráfico 4).
Da observação do RX tórax, verifica-se que existiu uma melhoria acentuada entre o D9 (Imagem 1B) e o D11 (Imagem 1C). O I-EM foi iniciado no D10, complementando as técnicas de CR.
DISCUSSÃO
A evolução apresentada pela doente em estudo foi lenta e gradual devido à gravidade da doença e às técnicas invasivas a que foi sujeita. O que condicionou um longo período de sedação, curarização e analgesia levando a uma VMI prolongada e consequentemente, um desmame ventilatório difícil.
A intervenção prematura de reabilitação respiratória não é recomendada para doentes graves COVID-19, com critérios clínicos de instabilidade ou de deterioração progressiva por evolução da doença1. Neste caso, os EEER após avaliação diária e criteriosa da doente em parceria com a equipa multidisciplinar, instituíram a CR precocemente (sem eventos adversos). Os resultados evidenciam que os cuidados diários de CR, complementados pelo I-EM, tiveram um impacto positivo na evolução clínica da doente.
O estado da arte tem demonstrado que a implementação de CR precoce na pessoa em situação crítica submetida a VMI, é segura e exequível com inúmeros benefícios: em termos funcionais, psicológicos e ventilatórios 5) (6.
Sendo um estudo num contexto de COVID-19, é pertinente referir as limitações que foram sentidas pelo ER: o uso de equipamento de proteção individual, que toldavam a perceção sensorial (as vozes abafadas, a capacidade auditiva diminuída e a visão dificultada pelo embaciamento dos óculos ou viseira); a impossibilidade de auscultar o doente; o risco de desconexões acidentais do circuito ventilatório; a gravidade do quadro clínico; a execução de determinadas técnicas que potenciassem o risco de propagação de aerossóis e a impossibilidade de estabelecer uma comunicação próxima com o doente.
As pessoas com COVID-19 têm alterações fisiopatológicas graves do interstício pulmonar (aumento da permeabilidade da membrana alvéolo-capilar; alteração da perfusão pulmonar decorrente de shunt intrapulmonar), com colapso alveolar (predomínio na região dorsal), redução da compliance pulmonar, entre outras alterações 7,8. A CR nestes doentes ventilados deve ser adaptada ao risco de contaminação e propagação do vírus, de modo a evitar a aerossolização 9.
Nos cuidados de reabilitação, as intervenções mais utilizadas foram: aspiração de secreções em circuito fechado (97%); vibrações (93%); I-EM (36%), drenagem postural modificada (34%); descompressão brusca (87%); aberturas costais seletivas; expiração manual forçada (ambas com 80%) e ventilação dirigida (51%).
Num estudo prevalência pontual (em 47 UCI´s, a 230 doentes com VMI), Mackenzie et al recolheram dados relativos às técnicas de higiene brônquica. A aspiração de secreções foi a mais usada (96%), sendo a aspiração em circuito fechado o método mais frequente (68%). Outras técnicas de higienização brônquica apenas foram aplicadas a 84 doentes, nomeadamente: vibração (40%); hiperinsuflação manual (29%); percussão (24%); drenagem postural / posicionamento (20%) e outras técnicas, como a mobilização (18%) 10.
Neste caso, a persistência do compromisso da função respiratória, com hipoxémia refratária apesar da implementação de estratégias invasivas e terapêuticas adjuvantes como a ventilação protetora, a ECMO- VV e o PP (efetuado 12 vezes com uma duração entre 4 e 23 horas), ditou a decisão da aplicação do I-EM como técnica de limpeza das vias aéreas. Esta decisão foi ponderada pela equipa multidisciplinar, atendendo à gravidade do quadro clínico, risco de propagação de aerossóis, possíveis iatrogenias, sendo necessário 3 profissionais para a implementação de técnica. A programação do equipamento foi realizada pelo EEER, de acordo com os parâmetros ventilatórios do doente (pressões de in-exsuflação simétricas e semelhantes à pressão de plateau; tempos de in-exsuflação igualmente simétricos).
Em nenhuma sessão de CR em que se usou o I-EM foram registados eventos adversos (hemodinâmicos, ventilatório e remoção de dispositivos médicos). Apesar de atualmente não existir fundamentação científica que suporte este facto, é consensual que a I-EM no doente com VMI é uma técnica recente, segura e com aceitação crescente em UCI.
Pela análise dos dados verifica-se que nas intervenções em que foi utilizado o I-EM, houve melhoria de todos os outcomes, com maior impacto no volume inspiratório e compliance. Dados corroborados por Camillis et al11 que mostraram que com a implementação de um protocolo de in-exsuflação mecânica, a quantidade de secreções aspiradas foi superior em comparação com a CR padrão, diminuição da resistência das vias aéreas e o aumento da compliance.
De igual modo, através da análise dos dados é possível denotar que as intervenções de CR, no período em ECMO- VV, em que foi utilizado I-EM houve melhoria de todos os outcomes, à excepção da PaCO2, que diminuiu ligeiramente. Ainda não existe evidência científica do uso do I-EM em doentes ventilados em suporte de ECMO-VV. Contudo, Cork, Barrett & Ntoumenopoulos 12, descrevem a eficácia da técnica de hiperinsuflação mecânica (através do ventilador) na promoção da higiene brônquica na pessoa com ECMO- VV.
Perante o exposto, é essencial que no futuro se desenvolvam estudos no âmbito da CR no doente COVID-19 ventilado mecanicamente, atendendo que não existem protocolos publicados quanto à intensidade, frequência e duração das intervenções. Contudo, há evidência que sugere que intervenções estruturadas e individualizadas podem facilitar a recuperação da pessoa em situação crítica. Assim como, o EEER deve participar sempre na avaliação da condição física dos doentes na alta e no pós-alta 13.
CONCLUSÃO
Com este estudo de caso, descrevemos as intervenções do ER mais utilizadas nas sessões de CR no cuidar do doente crítico com COVID-19 em contexto de VMI, com ECMO e a introdução do I-EM. Verificou-se que a implementação de técnicas de CR é possível, eficaz e contribui significativamente para a melhoria do estado de saúde da doente. Espera-se que este caso contribua para dar visibilidade à importância que a Enfermagem de Reabilitação poderá ter na diminuição das comorbilidades resultantes desta doença.
Este exercício reflexivo permitiu à equipa refletir acerca das possibilidades de melhoria na intervenção do EEER na CR na doente.