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População e Sociedade

versão impressa ISSN 0873-1861versão On-line ISSN 2184-5263

População e Sociedade  no.32 Porto dez. 2019  Epub 01-Jul-2022

 

Dossier Temático

História, discurso político e liderança em Portugal: um diálogo entre presente e passado à luz do Diário do Governo

History, political discourse and leadership in Portugal: a dialogue between present and past considering the Government Gazette

Pedro Emanuel Mendes1  2 

1IPRI-Nova - Instituto Português de Relações Internacionais, Universidade Nova, Lisboa, Portugal

2Universidade Lusíada do Porto, Porto, Portugal


Resumo

Este artigo realiza uma interpretação do discurso de D. Manuel II no contexto da crise final da monarquia constitucional portuguesa. Esta interpretação tem por base uma teorização que interliga três problemas: a História como ponte entre o passado e o presente, a capacidade de os líderes políticos gerirem o paradoxo da verdade nos seus discursos e a importância das lideranças carismáticas. Com base nesta teorização, o artigo pretende responder a duas questões: o primeiro discurso de D. Manuel II no Parlamento foi emocionalmente empático e demostrativo de um movimento inovador? Conseguiu o seu discurso criar uma boa ilusão política face à grave crise da monarquia portuguesa?

Palavras-chave: D. Manuel II; comunicação política; liderança carismática; História e Política; Monarquia Constitucional

Abstract

This article interprets the discourse of King Manuel II in the context of the final crisis of the Portuguese constitutional monarchy. This interpretation is based on a theorization that interconnects three problems: History as a bridge between the past and the present, the ability of political leaders to manage the paradox of truth in their discourses, and the importance of charismatic leadership. Based on this theorization, the article intends to answer two questions: was King Manuel II's first speech in the parliament emotionally empathetic and demonstrative of an innovative movement? Did the speech get to create a good political illusion in the face of the severe crisis of the Portuguese monarchy?

Keywords: King Manuel II; political communication; charismatic leadership; History and Politics; Constitutional Monarchy

Introdução

Este artigo apresenta uma teorização exploratória sobre a importância de estudarmos o passado à luz de problemáticas do presente. Sob o pretexto da participação no projeto de tornar presente o passado do jornal oficial do Estado Português (DIGIGOV - Diário do Governo Digital, 1820-1910), este artigo desenvolve uma leitura atual do primeiro discurso de D. Manuel II perante os representantes políticos de Portugal na cerimónia de abertura das Cortes Gerais no dia 29 de abril de 1908 e publicado no Diário de Governo no dia 30 de abril.

O seu principal objetivo é o de demonstrar a importância do conhecimento histórico e de problematizar os modos possíveis de a análise histórica se relacionar com o presente e poder ser interpretada à luz de conceitos e categorias analíticas diferenciadas dos contextos originais. Neste quadro, desenvolvemos uma análise do contexto político do discurso do rei, bem como das suas características na ótica da comunicação política. A nossa análise foi desenvolvida com base nas leituras possibilitadas pela consulta da plataforma DIGIGOV. Isto significa que, com base na investigação histórica, tentamos desenvolver um exercício de imaginação sociológica sobre o seu discurso político e capacidade de liderança e apresentar uma análise politológica inovadora, mas com profundidade e raiz histórica1.

O artigo está organizado em três partes. Na primeira, apresentamos de forma breve e exploratória os três problemas teóricos que guiam a nossa leitura do discurso de D. Manuel II: a História como ponte entre o passado e o presente, a capacidade de gerir o paradoxo da verdade no discurso político e a importância da liderança carismática. É com base na construção de uma teorização que interliga estes três problemas que tentamos uma interpretação inovadora do discurso de D. Manuel II.

Na segunda parte, realizamos uma contextualização histórica básica sobre o ambiente político do discurso de D. Manuel II. Finalmente, na terceira parte apresentamos uma análise política ao discurso de D. Manuel II na sessão de abertura do Parlamento em 1908. Esta análise recorre a uma interpretação atual dos eternos problemas que todos os novos líderes políticos têm quando tentam comunicar e justificar a sua legitimidade política. Deste modo, por um lado, fazemos uma análise ao seu discurso na ótica da eficácia comunicativa. Por outro lado, realizamos uma análise comparativa e hipotética face à existência de uma relativa continuidade histórica dos temas de governação do Portugal contemporâneo. Mais do que uma análise acabada, o que aqui apresentamos é um exercício imaginativo e exploratório sobre este tema.

O artigo defende dois argumentos principais, que atravessam todo o artigo. Primeiro, é fundamental reconhecer a importância do conhecimento histórico - dos seus contextos, processos e continuidades - e a necessidade de construção de pontes analíticas entre passado e presente para uma melhor compreensão dos desafios e encruzilhadas da atualidade. Segundo, é essencial perceber a especial importância do papel da liderança e da sua capacidade discursiva e de comunicação em momentos críticos e de transição histórico-políticos. Neste quadro, as questões que colocamos face ao discurso do Rei são as seguintes:

- O primeiro discurso de D. Manuel II no Parlamento foi emocionalmente empático e demostrativo de um movimento inovador?

- Conseguiu o seu discurso criar uma boa ilusão política face à grave crise da monarquia portuguesa?

1. Contextualização teórica: três problemas que guiam a nossa leitura

1.1. A História como ponte entre o passado e presente

O primeiro problema que colocamos resulta da famosa questão: O que é a História? (CARR,1961). Ou, por outras palavras, porque é que é importante estudarmos e conhecermos a História?

Ao contrário do que alguns pensam, a História não é, exatamente, apenas sobre o passado. A História é também, e sobretudo, sobre o presente. Todos os historiadores estudam o passado com as suas lentes conceptuais do presente.2A História é sempre uma interpretação do passado em inter-relação com o presente. De certo modo, o estudo da História é como um espelho que reflete o passado, mas quem está a olhar para o espelho está sempre no presente.

Fazer e estudar a História é inevitavelmente uma relação, um diálogo entre o passado e presente. Na verdade, talvez a melhor forma de captar a essência da investigação histórica e da sua função cultural seja a de a compreendermos como uma ponte que liga o passado e o presente. A História é uma ponte através da qual é possível estabelecer uma comunicação entre o passado e o presente, entre o que aconteceu e o que está a acontecer. Através deste exercício de comunicação e travessia podemos pensar de forma crítica sobre os caminhos do passado e realizar análises comparadas e avaliativas com os caminhos do presente. No fundo é o que estamos aqui a fazer, a dialogar com o passado e a relacioná-lo e compará-lo com o nosso presente.

Por outro lado, a História é um saber prático importante para os líderes políticos e decisores. Apesar das ambições de previsão de várias ciências sociais, o conhecimento útil tradicional para o líder político e decisor não pode deixar de ser o seu conhecimento histórico (MENDES, 2012, p. 55).

Embora também sejam conhecidos os efeitos nefastos das más analogias históricas nas decisões políticas, o conhecimento histórico é, por definição, o conhecimento mais seguro que um decisor pode ter nas suas ponderações e opções políticas.3 Esta ideia reflete-se no tradicional adágio: «conhece bem o passado para não repetires os seus erros». Isto, por exemplo, deve levar-nos a refletir sobre a inexperiência e consequente ausência de conhecimento histórico de políticos e decisores muito jovens e, portanto, impreparados para a governação, como aconteceu, aliás, com D. Manuel II.

Na realidade, não devemos esquecer que o que os decisores políticos fazem no presente é, em grande parte, definido por aquilo que compreendem e utilizam do passado. É o passado que cria um mapa histórico de onde viemos, por onde passamos, onde estivemos, e para onde vamos ou queremos ir. Por isso é possível observar que em várias e importantes decisões os líderes políticos são prisioneiros do seu passado (MENDES, 2019a).

1.2. O paradoxo da verdade, pós-verdade e verdades arredondadas no discurso político

O segundo problema que gostaríamos de colocar aqui é relativo ao que designamos de paradoxo da verdade na comunicação política. Ou seja, e de forma simples, na permanente necessidade de o líder político ter um discurso político simbólico que, acima de tudo, seja motivador e apelativo. Esta permanente necessidade de empatia motivadora dos discursos dos líderes políticos traduz-se, invariavelmente, numa difícil relação com a verdade factual.

Com efeito, todos querem um político que fale a verdade, mas ninguém gosta de ouvir os incómodos da verdade... Esta verdade shakespeariana é a base de um importante princípio político prático que gostamos de sublinhar: a capacidade, ou incapacidade, do líder gerir politicamente o paradoxo da verdade. Esta capacidade é uma arte que se relaciona com a virtude carismática do líder, ou se tem ou dificilmente se consegue adquirir, embora o treino de uma carreira política longa normalmente ajude. A capacidade de gerir politicamente o paradoxo da verdade conduz-nos aos famosos princípios da ilusão política e da «mentira razoável» (MOREIRA, 1993, p. 126) no discurso e comunicação dos líderes políticos.

Isto significa que nos seus discursos, os líderes políticos têm de conseguir um difícil equilíbrio entre a verdade e a ilusão. No limite, como muitas vezes acontece, quando o político está coibido de dizer toda a verdade ao povo, ele vai tentar, não mentindo ostensivamente, produzir uma verdade arredondada, de forma a que as arestas da verdade não firam suscetibilidades e, sobretudo, causem danos na sua imagem pública e aceitação popular.

Claro que, pior do que construir uma verdade arredondada, é o político ser apanhado a mentir de forma descarada. Também por isso, o líder político tem de ter um cuidado redobrado com o que diz e comunica publicamente, pois não deve entrar em contradição com o que defende ou afirma ter feito.

Portanto, nos seus discursos políticos, o líder tem de ter consciência de que as suas palavras devem atingir dois objetivos básicos. Primeiro, conseguir estabelecer uma empatia motivadora com a sua audiência. Segundo, o seu discurso tem de parecer credível. Embora o discurso possa conter ilusões e «mentiras razoáveis», o seu discurso tem de parecer credivelmente autêntico. Isto é, um bom discurso político deve convencer quem o ouve de que é um discurso politicamente verdadeiro, o que não é sinónimo de ser factual ou cientificamente verdadeiro.

Este é outro ponto essencial. A função do discurso político não é a de apresentar verdades factuais ou científicas. Em geral, um político não discursa para apresentar a verdade, embora em certas circunstâncias possa e deva fazê-lo. O discurso político é, sobretudo, o meio utilizado pelo político para comunicar eficazmente as suas ideias e convencer a sua audiência de que as suas ideias são as melhores para o bem comum e que ele é a pessoa ideal para as concretizar.

Na ótica da Comunicação Política, para além das qualidades básicas da ambição, resiliência e espírito de liderança coletiva, a maior qualidade que um líder político deve desenvolver e que, em última análise, pode definir o seu sucesso e torná-lo um grande líder político, reside na sua capacidade de encenação e de ilusão de movimentos e de cenários face ao eleitorado e à opinião pública. Neste sentido, um grande político é aquele que consegue montar um cenário de mudança quando existe estagnação e montar um cenário de estabilidade quando existe instabilidade. O líder político carismático é aquele que consegue demonstrar e transmitir uma enorme confiança no futuro quando existe desesperança e demonstrar e transmitir calma e capacidade de controlo quando existe uma crise e um ambiente de grande tensão.

Estes objetivos e funções básicas do discurso político são ainda mais relevantes quando são proferidas por um ator recém-chegado à liderança. Na verdade, para além de ter de cumprir com os tradicionais objetivos da comunicação política, o novo líder enfrenta sempre o desafio relativo à necessidade de afirmar e legitimar rapidamente a sua liderança política. Neste contexto, a comunicação política de um novo líder encerra sempre um desafio principal, aquilo que podemos designar como a construção de um movimento inovador no discurso político. Este movimento centra-se na criação de uma perceção de mudança política positiva. Isto é fundamental, e também está presente no discurso do novo Rei, D. Manuel II.

O que é curioso é que é possível novamente interligar o passado com o presente relativamente a ideia que propomos de analisar o contexto e conteúdo do discurso do Rei face ao paradoxo da verdade da comunicação política e à consequente necessidade de produzir verdades arredondadas. Neste sentido, atualmente, começou a ser comum referirmo-nos à «pós-verdade»4 dos discursos políticos.

Embora o conceito de pós-verdade contenha aspetos relativos a fenómenos do século XXI não aplicáveis no contexto do início do século XX, a sua essência política relaciona-se com o paradoxo da verdade. Na sua origem política, a pós-verdade é um fenómeno que tem características populistas e emocionais relativamente trans-históricas. O seu surgimento e aplicação crescente foi acelerado pela revolução das redes digitais globais do século XXI e pela intensidade e instantaneidade da produção de factos e notícias e respetiva politização excessiva.

Deste modo, a pós-verdade é típica do atual momento histórico. Contudo, é possível tentar aplicar o conceito da pós-verdade avant la lettre. Na realidade, o conceito de pós-verdade não deixa de poder ser visto como um desenvolvimento aberrante do eterno paradoxo da verdade. Portanto, quando aqui falamos de pós-verdade no início do século XX, estamos a referir-nos à eterna qualidade emocional e simbólica do discurso político, onde mais do que a verdade factual, importa ter a capacidade de comunicar empaticamente e convencer, sobretudo emocionalmente, os públicos e audiências através da construção de verdades arredondadas.

1.3. A importância da liderança carismática e as suas implicações

Para além de uma boa capacidade de produzir discursos e comunicar empaticamente, é decisivo o líder ter carisma. O carisma é um conceito bíblico que na sua origem significa que uma determinada pessoa possui qualidades excecionais; até de fazer acontecer ‘milagres’ e ter seguidores fiéis, como foi o caso do importante líder carismático Jesus de Nazaré que discursou na Galileia na primeira metade do século I, mais conhecido como Jesus Cristo, figura central e originária do Cristianismo.

A abordagem moderna do carisma e a sua relação com a liderança política foi trabalhada por vários académicos (JOOSSE, 2014). O que originalmente se destacou no estudo da liderança carismática, na sua matriz política, foi Max Weber (1968; 2015a;2015b)5. Ao estudar o fenómeno da autoridade e da dominação, designadamente da autoridade legítima que é necessária para que se estabeleça uma relação de reconhecimento da autoridade do povo face aos governantes e ao Estado, Weber trabalhou a ideia da liderança carismática (WEBER, 2014).

Seguindo Weber, é possível descortinar a existência de aspetos igualmente negativos na liderança carismática, nomeadamente o surgimento de líderes populistas e autoritários, ou ainda das lideranças carismáticas poderem proporcionar entraves ao fortalecimento de regimes demoliberais parlamentares (WEBER, 2014). Contudo, existe um aspeto indiscutível: um líder político que busque o sucesso deve ter carisma e qualidades excecionais, nomeadamente de comunicação política para com as pessoas que quer liderar.

Nos sistemas políticos contemporâneos, as lideranças políticas e as suas características pessoais desempenharam um papel crescente ao longo do século XX (GREENSTEIN, 1969; BLONDEL, 1987). Apesar da atual preocupante vaga de retrocesso democrático, nos sistemas demoliberais ocidentais, a importância dos líderes tem-se tornado, para o bem e para o mal, ainda mais decisiva. Para além das tradicionais características carismáticas pessoais do líder, hoje destaca-se a capacidade dos líderes ao nível da emocionalidade, isto é, da sua empatia social no estabelecimento de uma relação emocional com os seus seguidores/eleitores.

Neste quadro, no século XXI, a liderança carismática está intimamente ligada à crescente personalização dos partidos políticos e à tentativa de humanizar a comunicação política. Embora não exista unanimidade nas suas abordagens e conclusões, vários estudos demonstram que a atual crescente personalização da vida política veio para ficar (POGUNTKE & WEBB, 2005; BLONDEL, 2008; BITTNER, 2011; KARVONEN, 2010; AARTS; BLAIS & SCHMIDTT, 2011).

Atualmente, o líder assume um papel comparativamente mais importante do que no passado, quer por razões institucionais e internacionais, quer por razões comunicacionais e emocionais. Deste modo, é óbvia a crescente individualização dos partidos políticos e dos executivos governamentais. Por isso, as campanhas, os discursos e os debates políticos são cada vez mais centradas nos candidatos-líderes (KRIESI, 2012; GARZIA, 2011).

É sobretudo através dos líderes que se comunica politicamente e, deste modo, se tenta diminuir a distância entre as elites decisoras e o povo, e se aposta na construção de uma relação político-emocional entre quem governa e quem é governado. Neste contexto, o líder carismático cumpre a importante função de intermediar e humanizar a relação entre as entidades abstratas do Estado, da administração pública, do partido, da doutrina, da ideologia, e as pessoas individuais. Estas entidades abstratas, embora importantes, são cada vez mais percecionadas de forma distanciada pela opinião pública e pelas pessoas eleitoras.

Mais do que entidades ou ideias abstratas, as pessoas estabelecem relações de empatia com personalidades políticas identificáveis, isto é, com pessoas reais que conseguem despertar uma adesão emocional às suas ideias e programas políticos. Isto significa que, muitas vezes, acima das ideias e programas políticos que defendem, o que vai ser decisivo na capacidade de o líder ter seguidores e eleitores vai ser a sua personalidade e as suas características idiossincráticas de liderança.

Neste quadro, as qualidades pessoais do líder funcionam como um elemento humanizante e humanizador das relações entre o seu partido/programa político e as pessoas que vão votar. É através das qualidades pessoais de liderança carismática que se constrói uma relação de empatia emocional entre líder e seguidores. São estas qualidades pessoais que tornam mais fácil a criação de sentimentos de legitimidade para com o líder e, simultaneamente, fazem com que as pessoas e os eleitores transfiram os seus sentimentos de apoio ao líder carismático.

Existem vários tipos de liderança carismática, mas importa sublinhar que em todas as lideranças carismáticas é necessário construir uma relação de reconhecimento. Ser um líder carismático implica que a opinião pública e os eleitores o reconheçam como tal. Muitas vezes, líderes com qualidades pessoais e intelectuais extraordinárias não conseguem construir essa relação de reconhecimento carismático. Ao contrário, por vezes, indivíduos relativamente normais e com qualidades intelectuais medianas conseguem construir rapidamente uma relação de reconhecimento carismático. Isto acontece porque o reconhecimento carismático não depende exclusivamente das qualidades do líder. Existem fatores históricos e contextuais que influenciam a criação de momentuns políticos que propiciam a construção de rápidas relações de reconhecimento carismático. Por vezes, a forma como os líderes reagem a episódios políticos imprevistos e a situações de crise grave, mostrando uma especial coragem e determinação, concorre decisivamente para a capacidade de o líder adquirir o estatuto carismático. Inversamente, líderes com estatuto carismático podem sofrer danos irreparáveis na sua imagem política ao não conseguirem lidar ou resolver episódios imprevistos ou situações de crise.

Atualmente, existe uma consolidação dos estudos sobre as lideranças que permite que se possa falar de teorias da liderança6. Neste quadro, sem pretensão de exaustão, importa sublinhar que existem quatro estilos principais de liderança: Autocratic Leadership Style; Participative Leadership Style; Delegative Leadership Style; Situational Leadership Style (HALAYCHIK, 2016b).

Numa lógica mais aplicada à gestão das organizações, Zenger e Folkman (2009) desenvolvem a ideia de que existem diferentes abordagens de liderança. Mais, a ideia do carisma como uma competência inata não é totalmente verdadeira. As lideranças modernas vão muito para além do carisma excecional tradicional e da teoria do grande homem/mulher excecional. Na sua ótica, a capacidade de inspirar e motivar os outros é uma competência que qualquer um pode desenvolver7, desde que consciente que a liderança não é uma questão pessoal. A liderança é uma ação coletiva e não individual. Lideramos com e para os outros, não para nós próprios.

Os vários estudos sobre a liderança nas organizações comprovam que os líderes excecionais são aqueles que conseguem atingir o «quinto nível» na pirâmide da liderança (COLLINS, 2001; 2019).

Fonte: COLLINS, 2001;2019

Fig. n.º 1 A pirâmide evolutiva dos cinco níveis de liderança nas organizações 

De acordo com Collins, todos os líderes têm características de grande ambição e afirmação pessoal, resiliência e vontade de vencer. Todavia, o líder excecional é aquele que, mais do que a sua própria ambição e carreira individual, luta por uma ideia coletiva e ambiciona o sucesso do grupo que quer liderar numa lógica de bem comum.

Para conseguir evoluir do patamar de líder competente para o patamar de líder excecional e atingir o nível 5 da liderança, além das características tradicionais, incluindo as carismáticas, o líder tem de ter a humildade de sacrificar a sua ambição pessoal em favor de um projeto coletivo. O maior exemplo desta humildade de liderança excecional foi dado por Nelson Mandela, quando, abdicando de ambições particulares, suas e do seu partido (ANC), teve a humildade de perdoar os seus adversários políticos, que o prenderam durante 27 anos, para conseguir a reconciliação nacional e fundar uma nova África do Sul8.

Com base em vários estudos sobre a liderança nas organizações, é possível, seguindo e adaptando as ideias de Zenger e Folkman (2009), apontar seis tipos de liderança carismática:

  1. Visionário: Líder que proporciona boas, claras e motivadoras imagens do futuro e é capaz de as transferir para os seus seguidores (equipa de trabalho).

  2. Conector: Líder que constrói relações pessoais positivas, a nível individual e grupal, graças à sua escuta ativa e inteligência emocional.

  3. Condutor: Líder que apresenta uma alta orientação para a obtenção de objetivos, impulsionando para isso o desempenho dos seus colaboradores e das equipas.

  4. Ético: Líder que proporciona um poderoso modelo de ação relativamente à aplicação dos melhores princípios e práticas sobre como fazer as coisas da maneira mais correta e justa.

  5. Entusiasta: Líder que instila paixão e energia sobre a organização (instituição/empresa/governo), os seus objetivos e o trabalho em si mesmo.

  6. Especialista: Líder que oferece à equipa uma sólida direção técnica que resulta de uma grande experiência e conhecimentos científicos.

Para além desta tipologia com base nas características de personalidade e de gestão de equipas dos líderes na ótica das organizações, importa, sobretudo, discutir uma tipologia das lideranças públicas (HART & TUMMERS, 2014). É aqui que faz mais sentido aplicar e discutir as lideranças carismáticas, nomeadamente em relação à Comunicação Política e aos respetivos discursos que os líderes políticos têm de construir.

Deste modo, com base na adaptação das ideias de vários estudos (BURNS, 1978; BLONDEL, 1987; SORENSON; GOETHALS & BURNS, 2004; GOETHALS & SORENSON, 2007; BRYMAN et. al, 2011; RHODES & HART, 2014; BLOCK, 2016), é possível avançarmos com uma tipologia específica de líderes políticos carismáticos e adaptá-la ao nosso caso.

Assim, podemos dizer que, em primeiro lugar, existe o chamado Líder Heroico, que constrói um discurso altamente simbólico e emocional com base em valores patrióticos e de defesa dos interesses de salvação nacional. Este líder produz um discurso político que apela à coesão e à honra nacional face a situações de crise grave que o Estado atravessa, como uma guerra ou período de transição/crise de regime particularmente difícil9. Exemplos clássicos deste tipo de liderança carismática e discurso político são os casos de De Gaulle e de Churchill.

O Líder Heroico tem uma liderança muito forte e marcante e, por isso, quando é sucedido por outro líder, é comum este não ter as mesmas características carismáticas. Podemos assim dizer que, nestas circunstâncias, existe aquilo que podemos designar como um Líder Brando. A liderança branda é comum nos líderes que chegam ao poder após uma liderança forte. O que, por exemplo, se pode dizer de Pompidou em França e do próprio D. Manuel II.

No Portugal contemporâneo do século XX, também por vezes se interpreta o consulado de Marcelo Caetano como uma liderança branda, por contraponto à liderança de Salazar. Como já sublinhámos, essa interpretação não é inteiramente rigorosa, uma vez que os contextos de afirmação do «triângulo carismático» (PINTO; LARSEN, 2006, pp. 251-257) para Salazar e Caetano foram bastante diferenciados (MENDES, 2013, p. 119). O que é mais rigoroso afirmar é que, em comparação com Oliveira Salazar, Marcelo Caetano não teve um carisma hegemónico10. Ao contrário de Salazar, a sua liderança não foi aceite de forma hegemónica (MENDES, 2012b; 2013).

Outro tipo de liderança política carismática tradicional é o que podemos designar de Líder Patriarcal. O Líder Patriarcal caracteriza a sua liderança através da construção de um discurso político onde o líder se assume como o pai da pátria. Esta liderança está tradicionalmente ligada à fundação de regimes políticos autoritários com mais ou menos características totalitárias, ditatoriais e populistas. Esta liderança caracteriza-se, sobretudo, pela construção de uma imagem mítica do Chefe e consequentes doutrinas, onde o novo regime se solidifica a volta da sua liderança. Exemplos clássicos deste tipo de liderança são os casos de António Oliveira de Salazar, de Franco, de Mussolini ou de Mao Tse Tung.

Contudo, em regimes monárquicos também podemos considerar que os monarcas tendem a adotar igualmente um discurso de Líder Patriarcal. Mesmo em contextos não autoritários, os monarcas assumem nos seus discursos algumas características de Líder Patriarcal. Nos sistemas monárquicos constitucionais contemporâneos - Espanha, Suécia, Dinamarca, Reino Unido -, o discurso de Líder Patriarcal assume um carácter mais benigno do que nos regimes autoritários. Deste modo, tradicionalmente, os monarcas e os seus discursos desempenham o papel patriarcal benigno focado na estabilização de possíveis fraturas políticas e identitárias11.

Os Líderes Heroico e Patriarcal estão mais relacionados com situações de crises excecionais ou com processos de transição/construção de regimes políticos. Nas democracias demoliberais consolidadas, embora também seja possível identificar alguns traços circunstanciais deste tipo de liderança e discurso político, a regra é que os líderes tendem a estar mais alinhados com uma liderança de tipo Homem Comum.

Este tipo de liderança resulta da profissionalização da vida política e da necessidade de uma maior identificação dos eleitores com as suas elites. Neste quadro, a liderança do tipo Homem Comum é uma liderança de normalização carismática. Apesar de continuar a ser importante o líder possuir características pessoais que o distingam e preparem para a liderança, já não se assume que o líder-candidato tenha que ter uma qualidade carismática excecional. Isto é muitas vezes percecionado como uma crise de liderança ao nível global, e vários académicos e líderes de opinião vêm afirmando que estamos a viver uma crise de lideranças carismáticas no mundo.

Por exemplo, em França, isto é muito discutido, e argumenta-se que existe um declínio das qualidades carismáticas dos líderes políticos que, desde De Gaulle, com a exceção de François Mitterrand e Giscard d'Estaing, não tem parado de acontecer. Também em Portugal este fenómeno é discutido quando se compara os quatro líderes fundadores dos principais partidos da democracia portuguesa (Mário Soares, Sá Carneiro, Álvaro Cunhal e Freitas do Amaral) com vários dos líderes que os sucederam.

Contudo, mais uma vez, é necessária alguma profundidade histórica nestas análises e compreender que o nosso tempo presente é sempre o eterno tempo das crises, uma vez que é o tempo em que as estamos a viver em direto. O tempo passado, sobretudo dos líderes políticos, é sempre um tempo que tende a ser recordado pelas suas maiores qualidades e não pelos seus maiores defeitos. Ao contrário, o tempo presente, onde bad news are good news, tende a focar-se nos erros e defeitos dos políticos no ativo que, muitas vezes, são posteriormente apagados ou suavizados por uma leitura histórica mais lenta e atenta do que as leituras frenéticas dos media.

Na nossa perspetiva, a tipologia de liderança de Homem Comum está ligada à crescente desmitização das lideranças políticas e à consequente normalização carismática imposta pela crescente democratização dos sistemas políticos. Cada vez mais, as lideranças políticas são menos escolhidas por círculos elitistas fechados e mais por eleições relativamente diretas e democráticas, pelo menos em termos formais, uma vez que não podemos esquecer que, invariavelmente, mesmo antes de se chegar a ser candidato e ir a votos, existe sempre um processo de escolha num círculo restrito, fechado e elitista.

Contudo, é claro que apesar de todas deficiências e limitações, a democratização da escolha das lideranças é positiva12. É esta deliberação e votação democrática e republicana que, em última análise, superioriza o seu tipo de escolha das lideranças face aos regimes autoritários ou monarquias tradicionais. Ao contrário das visões autoritárias e monárquicas tradicionalistas, onde existe uma mitização extraordinária da liderança política, nas democracias demoliberais consolidadas a liderança está ao alcance do homem/mulher comum.

Em regra, e mediante os necessários requisitos legais, todo o cidadão comum pode participar na vida política e candidatar-se a ser um eventual líder. Este princípio, em abstrato, positivo pode, contudo, revelar-se, na prática, problemático. Basta recordarmo-nos que foi este princípio que, na Alemanha de Weimar, levou ao poder líderes totalitários que a primeira coisa que fizeram depois de chegarem ao poder foi eliminar as regras democráticas. Mesmo hoje é preocupante ver líderes que, embora distantes dos contextos e práticas fascistas, não têm uma cultura democrática madura e quando chegam ao poder contribuem para o retrocesso democrático com práticas e ideias que erodem o Estado demoliberal, nomeadamente o desrespeito pela diferença e igualdade de tratamento das minorias e a desproteção dos sistemas democráticos de divisão e equilíbrios de poder13.

Apesar da degradação da qualidade das lideranças não poder ser desligada do empobrecimento democrático, até recentemente, a banal normalização carismática produzia líderes normais e comuns que não representavam um risco para a democracia. Embora muitas vezes se discutisse a qualidade das lideranças, mais ou menos carismáticas, em regra, os líderes comuns mais frágeis acabavam por perder eleições e desaparecer da cena política14.

Atualmente, contudo, existem mais riscos para a qualidade da democracia relacionados com a evolução das lideranças comuns. Nomeadamente, da crescente ascensão dos fenómenos de lideranças neonacionalistas ligados às distorções populistas do tipo de líder comum popular15. Convém recordar que, no quadro das lideranças comuns, tradicionalmente existia alguma variedade específica de tipos de liderança e de discurso político. Podemos considerar a existência de três tipos principais de liderança comum: o Líder Popular; o Líder Tecnocrático; e o Líder de Encanto.

O Líder Popular comum baseia a sua liderança num discurso de identificação com as camadas populares e maioritárias dos eleitores e seus seguidores. Neste contexto, o Líder Popular constrói a sua comunicação política através da capacidade de criar uma especial empatia e mimetismo social com os seus eleitores. O seu discurso assenta na seguinte mensagem: ‘Eu sou como vocês, eu também sou um homem comum, eu entendo-vos, eu quero fazer aquilo que vocês querem ver; penso como vocês, sou aquele que vos posso representar melhor, pois também venho daí, como vocês...’

O Líder Tecnocrático assenta a sua liderança nos seus conhecimentos e experiência científica e técnica. Normalmente, não tem uma carreira inicial dedicada à política e é escolhido para desempenhar a liderança em momentos onde é necessária uma especial demonstração pública, interna e internacional, de conhecimentos e capacidade intelectual técnica. Isto acontece, por exemplo, quando os Estados vivem crises económicas. Aqui a tendência é escolher um economista. Também acontece quando se vivem graves crises políticas que atingem o conflito armado e exigem complexos processo de negociação. Aqui a tendência é escolher um líder ligado às Relações Internacionais ou à Ciência Política e com experiência diplomática internacional.

Finalmente, existe aquilo que podemos designar como o Líder de Encanto, aquele que, em termos relativos, exibe maiores capacidades carismáticas, designadamente de motivação e entusiasmo face aos seus seguidores. O Líder de Encanto tem uma excecional capacidade oratória para produzir discursos empáticos, uma imagem apelativa e uma excelente relação fotogénica e de encenação com as câmaras. Este tipo de liderança consegue construir boas narrativas visionárias e avança com ideias e metáforas simbólicas fortes nos seus discursos. O exemplo clássico deste tipo de liderança é JF Kennedy. Basta recordarmos o seu famoso discurso: «Não perguntem o que a América pode fazer por vós, mas sim o que vocês podem fazer pela América»16. Mais recentemente, podemos enquadrar Barack Obama nesta categoria17. No caso português, Mário Soares é aquele que melhor se ajusta a esta categoria. No momento presente, Marcelo Rebelo de Sousa também se pode enquadrar numa espécie de líder de encanto com traços populares. Para além do discurso e imagem pública, os Líderes de Encanto conseguem estabelecer excelentes relações de empatia emocional ao nível pessoal e ativar rapidamente um sentimento de admiração com a sua mera presença e cumprimentos pessoais.

Em síntese, nos dias de hoje, a compreensão da liderança carismática e das suas implicações torna-se fundamental na comunicação política. Numa altura de crescente profissionalização e personalização da vida política, a lógica tradicional dos partidos de massas e das suas ideologias clássicas vê-se desafiada pela ascensão de lideranças carismáticas com ideologias difusas de pendor populista e nacionalista. Isto revela a extrema importância dos líderes e parece apontar para o retorno das lideranças carismáticas fortes. Contudo, importa igualmente ter em consideração a importância dos contextos onde os líderes surgem. É no aproveitamento de contextos particulares, nomeadamente de crises económicas, sociais e identitárias, que surgem momentuns políticos para os líderes carismáticos se afirmarem.

2. Breve contextualização histórica do período final da monarquia e do discurso de D. Manuel

A transição do século XIX para o século XX em Portugal é marcada por diversas tensões políticas, económicas e sociais que refletem a incapacidade adaptativa da monarquia constitucional portuguesa face aos desafios interligados da modernidade urbana18, da industrialização capitalista e do surgimento de uma masspolitik. A emergência desta masspolitik significou uma alteração na cultura política liberal e elitista da monarquia constitucional e introduziu de forma decisiva o fator radical e revolucionário na política portuguesa (PINTO & ALMEIDA, 2000; BONIFÁCIO, 2010; SARDICA, 2012). A somar a estas características estruturais, que se refletiam numa relativamente atrasada cultura empresarial liberal onde negócios, Estado e política estavam sempre demasiado embrincados, existia o problema das instituições governativas. Isto é, o próprio regime político, monarquia constitucional, dava sinais de uma crescente incapacidade para acomodar e gerir positivamente as tensões existentes na sociedade portuguesa.

Para além das questões estruturais, de longo curso, existiam questões conjunturais ligadas à instabilidade política e à crise de legitimidade do sistema partidário. Convém recordar que, desde a Regeneração, o sistema político-partidário português assistia a um crescente desgaste devido à erosão da legitimidade política originada pela rotatividade dos dois principais partidos no poder: o Progressista e o Regenerador (SOUSA, 2004). Esta crise de legitimidade agravou-se nos primeiros anos do século XX e deu origem à formação de novos partidos. Em 1901, João Franco, apoiado por 25 deputados, abandonou o Partido Regenerador, criando o Partido Regenerador Liberal. Em 1905, surge a Dissidência Progressista, fundada por José Maria de Alpoim, que entrou em rutura com o Partido Progressista (MARQUES, 1994; FERNANDES, 2012)19.

Existia neste período uma intensa rivalidade entre os partidos, muitas vezes agravada por ódios pessoais que refletiam a excessiva promiscuidade entre relações pessoais e políticas da elite decisora em Portugal (VALENTE, 1993). Esta promiscuidade era exponenciada pelo sistema fechado e pouco renovável de circulação de elites na monarquia constitucional (PINTO & ALMEIDA, 2006). A intensa rivalidade era geradora de instabilidade política e foi acelerada pela atitude radical do Partido Republicano. Com o surgimento deste partido, as críticas públicas impiedosas ao sistema político passaram a ser a regra e iniciaram-se ações de índole revolucionária que mobilizavam bases populacionais que não pertenciam à tradicional elite ligada à fundação da monarquia constitucional20.

Portanto, o que aconteceu neste período foi uma crise de adaptação do regime que continuava com um modelo liberal clássico, com base nas elites tradicionais, e não conseguia representar convenientemente as novas aspirações e dinâmicas sociais de base mais popular. Esta crise de adaptação foi acentuada pela difícil situação financeira e social portuguesa e interligou-se com o esboroamento do sistema político-partidário tradicional e consequente emergência de uma masspolitik que se refletiu na crescente ascensão do Partido Republicano, nomeadamente nos principais centros urbanos, Lisboa e Porto.

Neste quadro de crise e instabilidade, o último governo típico do sistema rotativo bipartidário foi o presidido por Hintze Ribeiro, e durou apenas 57 dias. Neste contexto, o rei D. Carlos achou que seria oportuno formar um governo que significasse alguma renovação que permitisse superar a crise da rotação dos velhos partidos e escolheu João Franco para presidir ao novo ministério. Na sua fase inicial, João Franco prometeu uma agenda reformista e legalista do seu governo. Contudo, vários episódios críticos puseram em xeque o seu governo e nova crise política e de legitimidade se abateu sobre Portugal. Perante um contexto de crescente contestação e crise política, João Franco, com o acordo do rei D. Carlos, dissolveu o Parlamento e passou a governar em ditadura.

Esta cumplicidade política entre a ditadura de João Franco e o rei D. Carlos, minou de forma fatal a legitimidade da monarquia constitucional. Toda a oposição foi crítica da suspensão da normalidade das garantias de direitos e liberdades constitucionais. Por outro lado, e cumulativamente, a crítica à ditadura de João Franco e ao seu apoio por parte D. Carlos foi aproveitada pelos republicanos que viram nesta situação de contestação generalizada à ditadura o ambiente propício para a legitimação das suas ideias revolucionárias e consequente radicalização de vários grupos antimonárquicos. É neste ambiente de crise e crispação política que tem lugar o atentado ao monarca português

O regicídio do dia 1 de fevereiro de 1908 teve consequências decisivas para a história do século XX português. É possível dizer que é a morte do rei D. Carlos que sela o declínio fatal da monarquia e marca o início do processo histórico que conduzirá a três importantes transições políticas em Portugal no século XX: da monarquia constitucional para a república; da república para o Estado Novo e do Estado Novo para a Democracia.

Esta é outra dimensão importante da História. Ou seja, a compreensão da importância da interligação dos processos históricos, das suas causas e efeitos, aquilo que em ciência política é muitas vezes designado de path dependence. Esta ideia é igualmente sublinhada por vários economistas anglo-saxónicos. Muitas vezes, para explicarem fenómenos e escolhas económicas importantes, estes economistas, de forma simples e direta, gostam de afirmar: History matters!

Neste quadro, importa sublinhar que o ataque à carruagem real do dia 1 de fevereiro foi decisivo para o rápido declínio da monarquia, pois para além da morte do rei D. Carlos, também foi morto o seu filho e herdeiro, o príncipe real D. Luís. A partir deste momento, tornou-se muito difícil o desenvolvimento de uma legitimação positiva da Monarquia, e consequente reforma do sistema da Monarquia Constitucional. Com a morte do rei e do seu herdeiro natural, a instituição monárquica ficou muito fragilizada e sem capacidade de justificar e gerir o difícil contexto social, político e económico em Portugal. Por outro lado, passou a ser impossível apaziguar as críticas republicanas e a consequente escalada de contestação e violência na vida pública de Portugal.

Após o regicídio, subiu ao trono D. Manuel II, o filho mais novo de D. Carlos, que tinha apenas 18 anos de idade. D. Manuel II não foi educado para ser rei e não estava preparado para governar. Como se veio a provar, o jovem monarca teve muitas dificuldades em repor a ordem no país e em conter as ondas de choque políticas e sociais provocadas pelos republicanos contra a Monarquia21. Os governos seguintes foram igualmente instáveis e dominados por vários episódios de crise que se foram somando de forma aparentemente independente, mas que iam minando de forma consistente os pilares estruturais do regime.

Num esforço de síntese, podemos dizer que existiram três fatores decisivos para o atentado e a crise final da monarquia. Em primeiro lugar, a crise de legitimidade do sistema político-partidário da monarquia constitucional, que incluía os partidos tradicionais, as suas lideranças e a própria Casa Real. Em segundo lugar, a ascensão da masspolitik, que introduziu uma nova dinâmica de base social popular que inclui grupos radicais antimonárquicos, cujo objetivo fundamental era acabar com a monarquia e instaurar um regime republicano em Portugal.

Em terceiro lugar, a decisão do rei D. Carlos de tentar solucionar os problemas do sistema político-partidário português através do apoio ao Partido Regenerador Liberal de João Franco, sobretudo a sua anuência à opção turca de instaurar uma ditadura. Ao apoiar o estabelecimento da ditadura, o rei português colaborou na suspensão da Carta Constitucional, em 1907, o que deteriorou de forma irreversível o ambiente político. A partir daqui, quebrou-se a relação de legitimidade do governo de João Franco e do próprio regime monárquico português.

Mesmo com novas eleições marcadas, e no quadro de um previsível resultado favorável ao partido do poder, como era habitual, o Partido Republicano e a Dissidência Progressista, com o apoio indireto de membros de organizações secretas oposicionistas, consolidaram a perceção de que só pela via da força seria possível transformar Portugal. Uma primeira tentativa de golpe de Estado fracassa e a 28 de janeiro de 1908 são presos vários líderes republicanos, naquele que ficou conhecido como o «Golpe do Elevador da Biblioteca». Contudo, passados quatro dias, a 1 de fevereiro, dá-se o regicídio. No final desse mês, dia 29 de fevereiro, o novo rei, D. Manuel II, faz o discurso de abertura do Parlamento, onde tenta a legitimação do novo reinado e do novo governo.

3. Análise do discurso do rei D. Manuel II

De acordo com a nossa argumentação teórica, é possível fazer uma leitura do discurso do rei com base em três dimensões. A primeira é relativa à construção do discurso do rei e da sua eficácia comunicativa, designadamente da qualidade emocional e motivadora do discurso. A segunda é relativa à sua capacidade de gerir politicamente o paradoxo da verdade e apresentar pós-verdades ou, como sublinhámos, verdades arredondadas. A terceira é relativa à identificação dos problemas de governação do Reino e da sua aptidão para introduzir o que designamos por movimento inovador da sua liderança.

Não obstante, importa, em primeiro lugar, sublinhar o papel do Diário de Governo como meio privilegiado de comunicação política da época. Neste quadro, a publicação do primeiro discurso do rei no Diário de Governo revela uma preocupação do regime vigente em tornar pública uma mensagem de relativa tranquilidade e estabilidade da monarquia constitucional. Isto comprova a importância decisiva do jornal oficial, Diário de Governo, que cumpria o duplo papel de principal veículo de propaganda e legitimação política em Portugal.

Em segundo lugar, devemos compreender a importância simbólica do primeiro discurso público do novo rei. Como sublinhado, D. Manuel vai tentar afirmar a sua liderança e a sua legitimidade como líder-rei. Ao tentar fazê-lo, está igualmente a procurar ultrapassar a crise através da obtenção de uma renovada legitimidade para o regime político da monarquia constitucional portuguesa num momento particularmente crítico.

Como veremos, o novo rei22 vai anunciar reformas e novas medidas governativas com o intuito de ativar o princípio da perceção da mudança em política, aquilo que designamos como o movimento inovador. Neste contexto, e em consequência do eterno paradoxo da verdade no discurso político, identificaremos alguns exemplos da ativação do movimento inovador e da sua interligação com a ideia relativa à necessidade de o líder arredondar a verdade.

O discurso de D. Manuel II inicia-se com a referência ao trauma da morte da família real, tentando criar, logo num primeiro momento, um sentimento de empatia emocional face ao infortúnio do regicídio. As suas primeiras palavras vão no sentido de sublinhar a existência de um geral «sentimento humano e cívico» que a todos une de «dôr que revive do transito crudelissimo de meu Pae e Irmão, do nosso Rei e Príncipe» (D. MANUEL II, 1908, p. 1261).

Num segundo e imediato parágrafo, o rei invoca esse momento de «tremendo martyrio» como uma justificação de superação da crise nacional que junte os decisores do país («Coroa e Parlamento») na renovação de uma «aliança» que «empenhe a todos na paz e no progresso da nacionalidade» (D. MANUEL II, 1908, p. 1261).

No parágrafo seguinte, o rei português sublinha que em todo Mundo existiu um choque face ao sucedido e que os chefes de Estado internacionais, as «corporações» e a «imprensa de todo o mundo civilizado» convergiu num «brado uníssono de humanidade e justiça» (D. MANUEL II, 1908, p. 1261).

Continuando com o seu apelo emocional de solidariedade trágica para com o regicídio, D. Manuel II insiste que, apesar do «coração maguado», o país demonstrou o seu apoio ao «lealismo e devoção á Familia Real e ás Instituições» e refirmou «as tradições antigas da união do Povo e do Rei» (D. MANUEL II, 1908, p. 1261).

Duas ideias fortes podem ser sublinhas na abertura do seu discurso. A primeira é a tentativa de humanizar a sua mensagem política e de o aproximar do povo. A segunda é a da reprovação do ato terrível que foi o regicídio e da necessidade de ultrapassar este trauma através de uma renovada união nacional, quer no que diz respeito ao governo, Parlamento e rei, quer na união e reforço da legitimidade entre a coroa e o povo. Estas duas ideias, como referido, baseiam-se num forte apelo emocional de solidariedade trágica para com a sua família e, consequentemente, para com a Monarquia e a sua liderança.

Para finalizar a primeira parte do seu discurso, D. Manuel II enfatiza a sua legitimidade de «dever dynastico nacional» e a sua «fé em Deus e em vós representantes da nação» que cumprirá a missão de monarca do Estado português com sucesso e que contará com o apoio do Parlamento para conseguir «a felicidade do reino». Acaba esta ideia-mensagem com a afirmação de que cumprirá a sua liderança «como manda a lei» (D. MANUEL II, 1908, p. 1261).

Esta é a primeira parte do discurso do rei, que é caracterizada pela afirmação do momento trágico e pela sua ligação emocional, bem como pela justificação da sua legitimidade como rei e da continuidade da monarquia na devoção ao povo e à tradição antiga de união entre o rei e o povo.

A segunda parte do discurso é destinada a tentar construir um movimento inovador, elencando medidas governativas e política que é necessário desenvolver. Todavia, mesmo antes de D. Manuel II se centrar na construção de um movimento inovador, faz uma primeira análise sobre a política externa de Portugal e o seu posicionamento internacional. Este é igualmente um ponto interessante de análise e reflete a tradicional importância da política externa para Portugal e para as suas elites decisoras.

Ao fazer esta primeira incursão pelas medidas governativas, D. Manuel II não deixa de ativar o princípio do paradoxo da verdade e da construção de verdades arredondadas. Isto é evidente quando enuncia uma visão otimista da política externa portuguesa e da sua inserção internacional, designadamente das suas repercussões económicas e comerciais. Na sua ótica, Portugal vive «na paz e amizade das Potencias» (D. MANUEL II, 1908, p. 1261) e tem relações estáveis e de amizade com os seus principais aliados e vizinhos: a Inglaterra, a Espanha e o Brasil. Assim, D. Manuel sublinha: «Tudo nos permitte affirmar que é segura a situação de Portugal na política externa», e no que respeita ao comércio internacional, existe uma «base segura da nossa política commercial externa» (D. MANUEL II, 1908, p. 1261).

Na verdade, esta visão otimista do cenário internacional, da política externa portuguesa e das suas relações comerciais externas que se pode ler nas palavras do discurso do monarca português não era muito fiel à realidade. Portanto, nota-se aqui a primeira verdade arredondada introduzida no discurso do novo rei português23.

Após a referência à política externa, D. Manuel II inicia a construção do movimento inovador da sua liderança. Assim, começa por referir uma ideia clássica que é o de virar de página da crise. Esta ideia é consubstanciada na mensagem de que com o seu governo serão tomadas as medidas legislativas necessárias para «transpor» e «liquidar» a crise política. Deste modo, D. Manuel II comunica que o seu governo entendeu «sem demora» restabelecer «a normalidade dos direitos individuais» (D. MANUEL II, 1908, p. 1261). Este é um ponto importante, se nos recordarmos que a crise política e institucional monárquica se acelerou com a instauração da ditadura de João Franco24.

Outro exemplo importante do movimento da mudança política e de lançamento de reformas é expresso através da sua declaração relativa à necessidade de revisão da Carta Constitucional. De acordo com D. Manuel II:

O codigo orgânico de uma nacionalidade tem de passar por estes estadios de correcção, graus successivos de adaptação ás necessidades e aspirações do país. Julga o Meu Governo traduzir um sentimento imperioso no animo dos cidadãos portugueses proclamando a opportunidade de introduzir modificações convenientes nas normas que regulam o exercício do poder, e determinando-se a forma mais adequada ao funccionamento estável e harmónico da vida publica (D. MANUEL II, 1908, p. 1261).

Outra medida importante que se insere neste movimento de mudança e reforma do sistema político é relativa à necessidade de uma nova lei eleitoral. A lei eleitoral vigente da monarquia constitucional era bastante criticada, devido à criação de distorções políticas, nomeadamente de favorecimento da representação parlamentar dos partidos maiores e tradicionais. Assim, é objetivo de D. Manuel II que o Parlamento trabalhe na discussão de nova lei eleitoral para que se defina «qual o systema distributivo do suffragio que o Parlamento prefere para a expressão fiel e integral da representação collectiva da nação» (D. MANUEL II, 1908, p. 1261).

Aqui também é curioso constatar a histórica perceção jurídica-formal dos problemas de Portugal e da sua governação. Ainda atualmente não é raro os governos e os parlamentares pensarem que os problemas do país se resolvem com novas leis. Todavia, é hoje claro que esta cultura jurídico-formal, que é histórica e teve o seu auge no Estado Novo, não é solução substancial para os problemas estruturais do desenvolvimento português. Podemos até dizer que é o contrário, pois em vez de se discutir a essência dos problemas, a tradição jurídica-formal e os seus excessivos rituais temporais e burocrático-administrativos funcionam como um verdadeiro entrave à sua discussão e solução. Por outro lado, importa sublinhar igualmente a eterna discussão das reformas do sistema político, discussão que ainda hoje tem ecos importantes.

Depois de enunciar as reformas do sistema político, o discurso de D. Manuel II lança uma frase, em modelo slogan, que representa uma tentativa de fechar este primeiro capítulo do seu movimento inovador com uma mensagem apelativa de afirmação visionária da sua liderança. Assim, D. Manuel II afirma: «Eis os pontos cardiaes do trabalho parlamentar que poderão condensar-se neste objectivo: lançar com segurança e éxito as bases políticas do novo reinado» (D. MANUEL II, 1908, p. 1261).

Neste ponto, importa sublinhar as ideias sucessivas e interligadas de segurança, êxito e novo reinado, que verdadeiramente se aproximam de um sound bite da Comunicação Política contemporânea.

Depois da política externa e das reformas do sistema política, o discurso do rei centra-se no terceiro, e eterno, problema português que é o das Finanças ou, nas palavras do início do século XX, as questões do «Thesousro» e da «Fazenda Nacional». Neste quadro, D. Manuel II sublinha a existência de algumas dificuldades relativas a situação da «Fazenda Nacional» e dos recursos disponíveis no «Thesouro» «para ocorrer aos encargos dos serviços públicos». Novamente se constata a construção de uma verdade arredondada relativamente à situação económica e financeira de Portugal neste período. Na sua ótica, estas dificuldades são conjunturais e poderão brevemente ser ultrapassadas. Assim, de acordo com o seu discurso:

Nos últimos tempos uma certa perturbação se produziu no movimento commercial e económico do país, notando-se ao mesmo tempo depressão na cotação de fundos públicos e de títulos de algumas sociedades de credito, de par com o aggravamento do agio do ouro. Cessará por certo em breve esse periodo de desconfiança, pelo reconhecimento dos elevados recursos do país e pontualidade com que satisfaz a seus compromissos (D. MANUEL II, 1908, p. 1261).

Apesar destas dificuldades financeiras, o novo Rei português sublinha a vontade do seu governo em investir no desenvolvimento material e económico da «Nação». Para que tal aconteça «sem novos gravames para o contribuinte», o rei e o seu governo propõem «differentes providencias tendentes a melhorar as condições do Thesouro» (D. MANUEL II, 1908, p. 1261).

Em primeiro lugar, o novo governo propõe-se «a simplificar os serviços de lançamento e arrecadação dos impostos, de que deverá resultar diminuição de despesa». Isto é, já em 1908 se pensava na reorganização da eficácia do sistema fiscal e na necessidade de um Simplex avant la lettre para a administração fiscal.

Em segundo lugar, o novo governo propõe-se a pôr em prática um conjunto de medidas relativas à dívida pública e à racionalização dos créditos do Estado. Tal significa que o novo governo apresentaria «as bases de um novo contrato com o Banco de Portugal, que permittirá reduzir os gastos do Estado», bem como, sublinha D. Manuel, «o meio de converter a nossa antiga divida fundada interna, a cargo da Junta do Credito Publico, por forma a reduzir a grande desproporção entre o nominal e o seu valor effectivo» (D. MANUEL II, 1908, p. 1261). Isto, no fundo, significa gerir e reestruturar a dívida portuguesa. Portanto, um tema perene na governação do Portugal contemporâneo: a gestão e reestruturação da dívida pública portuguesa.

Segue-se um conjunto variado de medidas que prometem mudanças e reformas que se inserem na construção do movimento inovador da nova liderança em Portugal. Podemos destacar algumas que se enquadram na nossa análise sobre a relativa continuidade histórica de várias questões governativas no Portugal contemporâneo. Por exemplo, a questão dos estrangeiros a viver e a investir em Portugal. Tal como no presente, em 1908, o novo governo de Portugal defende «a vinda e a permanencia no país de estrangeiros» (D. MANUEL II, 1908, p. 1261). E o novo rei anuncia que novas medidas irão ser desenvolvidas para facilitar a vida dos estrangeiros em Portugal e a consequente captação de capital estrangeiro. Portanto, estamos em presença de uma espécie de Vistos Gold de 1908.

Outras medidas importantes são as relativas ao setor do comércio e indústria nacional. Na ótica de D. Manuel II, «Tanto o commercio como as industrias nacionaes são interessadas em que se realize em curto prazo tão necessária reforma, urgentemente reclamada por todos os motivos» (D. MANUEL II, 1908, p. 1261). Também «a lei de contabilidade publica» carecia de novas reformas, bem como outras medidas oportunamente ‘lembradas’ com o intuito de «melhorar a nossa situação económica, e assegurar o equilíbrio das despesas com as receitas publicas» (D. MANUEL II, 1908, p. 1261).

Outros temas que merecem destaque no seu discurso são as medidas que vão ao encontro de interesses corporativos, com realce para os militares. D. Manuel II comunica que o «Supremo Conselho de Defesa Nacional está estudando um projecto de reorganização geral; e, alem dessa, outras providencias, que teem em vista melhorar as cóndições da defesa do país» (D. MANUEL II, 1908, p. 1261).

Para além da defesa, também o império e os seus interesses e políticas merecem destaque no discurso do novo rei. O império fazia parte da identidade política de Portugal e era considerado um bem essencial para o Estado. Nas palavras de D. Manuel II, o império colonial era «padrão das nossas glorias, fonte de riquezas, e penhor da nossa independencia» (D. MANUEL II, 1908, p. 1262). Neste quadro, o novo governo não esquece de enunciar novas medidas de fomento para as colónias, nomeadamente relativos ao «fomento agrícola, industrial e ferroviário», à regulação do trabalho indígena e à emigração de trabalhadores.

Também na metrópole seriam realizados novos investimentos e reformas, nomeadamente em obras públicas, com destaque para o desenvolvimento das redes das estradas e para os trabalhos da sua conservação. Para concluir a divulgação dos objetivos e principais medidas do seu programa de governo, D. Manuel II promete uma remodelação e reorganização dos «serviços da agricultura e da industria, fontes principalíssimas da riqueza» (D. MANUEL II, 1908, p. 1262).

Após a construção do movimento inovador da sua liderança, baseado na apresentação de novas medidas governamentais, D. Manuel II reserva a última parte do seu discurso para desenvolver argumentos e ideias de natureza política, dirigindo-se diretamente à função do Parlamento e à sua responsabilidade nos desígnios da defesa do interesse nacional. Deste modo, como mandam as regras comunicativas, D. Manuel II começa por enaltecer o Parlamento e a discussão plural de opiniões, enfatizando que esta natural e positiva pluralidade de opiniões não deve descurar o fundamental: a «promoção das resoluções mais acertadas ao beneficio da vida nacional» (D. MANUEL II, 1908, p. 1262).

Por último, D. Manuel II termina o discurso com um apelo emocional e patriótico, onde sublinha o otimismo no futuro e a aliança entre o rei e o povo. Nas suas palavras: «Que no nosso coração de Patriotas se avive, mais que nunca, a fé no futuro de Portugal! Nesse alevantado sentimento se estreitam o Rei e o Povo Português» (D. MANUEL II, 1908, p. 1262).

Conclusão

Tendo em conta os argumentos da nossa problemática, podemos retirar várias conclusões deste artigo. Em primeiro lugar, importa sublinhar que o novo rei, D. Manuel II, foi um líder acidental, sem capacidade de liderança carismática forte. No quadro da nossa argumentação, e comparativamente com D. Carlos, podemos dizer que foi um Líder Brando, sem capacidade de liderança carismática hegemónica.

Todavia, o seu primeiro discurso governativo demonstrou qualidades de construção discursiva e de comunicação política. O seu discurso foi eficaz de um ponto de vista da Comunicação Política e conseguiu equilibrar virtuosamente elementos emocionais, elementos governativos, políticos e visionários. É igualmente possível observar uma razoável capacidade de gerir o paradoxo da verdade e apresentar importantes verdades arredondadas, nomeadamente face à situação financeira, social e internacional de Portugal.

O discurso está bem construído. Inicia-se com o elemento emocional, depois passa aos elementos governativos e à construção de um movimento inovador para, na última parte, se focar nos elementos políticos e visionários. Finalmente, o discurso termina com uma frase forte e exclamativa intensificando o apelo emocional e patriótico. Neste quadro, podemos dizer que, apesar do difícil contexto, o primeiro discurso de D. Manuel II no Parlamento foi emocionalmente empático e conseguiu ativar o princípio do movimento inovador.

Outra conclusão é relativa à possibilidade de identificar aquilo que designamos por eternos debates nas ideias e práticas da governação do Portugal Contemporâneo. Isto significa que - utilizando a metáfora da ponte na análise histórica - é possível realizar uma análise comparada entre o passado e o presente e tentar encontrar uma relativa continuidade histórica face a alguns problemas na política interna e externa do Portugal Contemporâneo.

Assim, foi possível identificar no discurso de D. Manuel II os seguintes eternos temas/debates: política externa/inserção internacional de Portugal; finanças/problemas económico-orçamentais; políticas de fomento imperial e metropolitano ligados às infraestruturas e obras públicas; reformas do sistema político e constitucional; reformas do sistema fiscal; reformas ligadas aos setores do comércio, indústria e agricultura.

Finalmente, importa considerar a última questão que colocámos: conseguiu o seu discurso criar uma boa ilusão política face à grave crise da monarquia portuguesa?

Aqui a resposta não é tão óbvia. Por um lado, como vimos, o discurso está bem construído e revela uma razoável capacidade de ilusão política. Por outro lado, como se comprovou, o governo de D. Manuel II não conseguiu ultrapassar a crise política e de legitimidade da monarquia constitucional e obstar à queda do regime monárquico.

Isto remete-nos para um outro problema clássico na vida política: não basta fazer bons discursos, é preciso apresentar resultados. Embora o discurso político seja importante, não pode existir uma distância excessiva entre a verdade factual e a verdade arredondada. Ainda que criando cenários otimistas, é necessário que os discursos políticos não estejam desligados da realidade. Em última análise, os líderes políticos devem ter a capacidade de perceber o difícil equilíbrio entre a ilusão política benigna e a prejudicial negação da realidade, tendo sempre presente a velha máxima: é possível iludir alguns por algum tempo, mas não é possível iludir todos infinitamente.

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1Este é o nosso projeto de investigação permanente: o estudo da dialética entre a História e a Teoria Social; entre os factos e as ideias e entre a política e o conhecimento. Numa metáfora a tentativa eclética de fazer História com frutos e Ciência Política com raízes (MENDES, 2007, p. 142). Para uma análise da importância dos contextos históricos na própria construção e definição das disciplinas científicas veja-se Mendes (2014; 2019b; 2019c; 2020a)

2Este argumento é uma tentativa de renovação das ideias pioneiras de Marc Bloch (1997) escritas nos anos 1940, antes de ser fuzilado em 1944 pelos nazis, e publicadas originalmente com a ajuda de Lucien Febvre em 1949, sob o título de Apologia da História ou o Ofício de Historiador.

3Outra questão importante é percebermos de que forma a História, nomeadamente as narrativas e memórias históricas, influenciam a forma de pensar e agir dos políticos. Para uma análise aplicada deste problema veja-se o caso das elites políticas no Estado Novo e da sua influência nas opções de política interna e externa do regime autoritário português (MENDES, 2012a;2013;2018;2019a;2020b). Outros exemplos podem ser observados relativamente à política interna e externa da Indonésia e suas elites e lideranças políticas (MENDES, 2012b; 2016a; 2017).

4Em 2016, a «pós-verdade» foi eleita a palavra do ano pelo dicionário de Oxford. De acordo com este dicionário, a pós-verdade é um adjetivo «que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais factos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e crenças pessoais». Numa tentativa de explicitar melhor o conceito, o dicionário de Oxford sublinha que o composto do prefixo pós não se refere apenas ao tempo seguinte a alguma situação ou evento, como por exemplo acontece na palavra pós-guerra. Aqui, o prefixo pós não significa após, mas antes «um momento em que o conceito específico se tornou irrelevante ou não é mais importante» (Oxford Dictionaries, 2016). Isto significa que o atual momento de disseminação da pós-verdade se refere ao tempo histórico, do século XXI, em que a verdade já não tem a importância que teve outrora. Tendo em conta esta definição, podemos afirmar que o mundo de pós-verdade onde vivemos atualmente é um mundo onde as crenças pessoais, a fé e a vontade de acreditar e de pertencer a algo é mais importante do que os factos científicos e do que a própria verdade factual.

5Atualmente a liderança carismática é alvo de atenção no estudo da gestão e das organizações. Existem numerosos estudos, e até revistas académicas, que se dedicam aos aspetos da liderança nas organizações. Apesar do estudo das lideranças ser um tema clássico dos estudos políticos, é possível apontar o livro do historiador e cientista político norte-americano James MacGregor Burns, Leadership (1978), como um dos marcos fundadores do campo de estudos da Liderança. Foi Burns que introduziu a importante tipologia binária de dois tipos básicos de liderança: a transactional leadership, na qual o foco da liderança se centra na construção de relações entre o líder e os seus seguidores, e a transformational leadership, na qual o foco da liderança se centra nas crenças, necessidades e valores dos seus seguidores.

6Designadamente: Great Man Theory; Trait Theory; Behavioral Theory; Contingency Theory; Transactional Theory; Transformational Theory (HALAY-CHIK, 2016a). Outra teoria importante sobre as lideranças é a designada teoria da Authentic Leadership (GARDNER & CARLSON, 2015). Para uma visão mais aplicada às lideranças políticas e a casos de política internacional, veja-se Rhodes e Paul ‘t Hart (2014).

7Esta perspetiva de aprendizagem da liderança é muito influenciada pelo negócio do «ensino da liderança» e, em última análise, não capta a essência da liderança carismática típica das lideranças políticas. Apesar de trazerem insights interessantes, e que aqui também usamos, as teorias da liderança na ótica das organizações - sobretudo as ligadas ao mercado de produção de livros e cursos sobre a liderança - não acentuam, como é importante fazer, a distinção entre a liderança organizacional/privada e a liderança pública/política que, de facto, são coisas diferentes.

8Mandela foi o primeiro presidente da África do Sul Democrática entre 1994 e 1999. Depois de ganhar esmagadoramente as eleições de 1994, Mandela liderou um governo de união nacional e conseguiu uma transição política pacífica pós-apartheid na África do Sul, instituindo uma nova constituição, hino e bandeira nacional. Após a saída de Mandela da presidência da África do Sul, as tensões políticas, económicas e sociais agravaram-se, demonstrando, novamente a importância de uma liderança carismática que, aparentemente, a África do Sul pós-Mandela ainda não conseguiu reencontrar.

9Por exemplo, no caso da transição democrática portuguesa, Mário Soares também utilizou nos seus discursos argumentos que se podem enquadrar nesse papel, sobretudo como primeiro-ministro do primeiro governo constitucional, que definiu a estratégica «opção europeia» e trilhou decisivamente o caminho da democratização (MENDES, 2004).

10Esta nossa teorização conjuga o conceito de carisma de Weber com o conceito de hegemonia de Gramsci (MENDES, 2013).

11Isto aconteceu no caso espanhol com a transição e consolidação democrática. Atualmente, a vontade de autodeterminação da Catalunha está a colocar desafios que não estão a ser alvo da mesma capacidade estabilizadora.

12Mais, estudos empíricos (1848-2004) demonstram que, em comparação com regimes autoritários, as democracias selecionam líderes com mais habilitações educacionais e melhores capacidades técnicas, o que se reflete, em comparação, na maior qualidade e honestidade das lideranças (BESLEY & REYNAL-QUEROL, 2011).

13Já para não falar da alarmante onda de extrema direita populista e xenófoba que tem progredido na Europa e no Mundo.

14Por exemplo, George Bush, François Hollande ou Santana Lopes, embora, no último caso, de uma forma menos rápida.

15Isto é ainda mais grave quando o populismo chega à presidência da potência demoliberal. Após um presidente recipiente de um Prémio Nobel da Paz, atualmente nos EUA existe uma preocupante crise de liderança. Como sublinham vários analistas norte-americanos: «Strategic thinking, moral clarity, accountability, integrity, and courage seem foreign concepts to President Donald Trump and many other current US leaders» (FRIEDMANN, 2019). Para uma análise de algumas das raízes da crise da liderança nos EUA, veja-se Mendes, (2016a).

16Aqui convém sublinhar que normalmente os discursos não são escritos pelos líderes. Existem especialistas que escrevem os discursos, embora os líderes tenham sempre de os aprovar e muitas vezes alterar com emendas ou correções. Todavia, a qualidade dos ‘escritores de discursos’ também reflete a qualidade dos líderes, pois são estes que os escolhem. No caso de Kennedy, o seu principal ‘escritor de discursos’, que escreveu o famoso aqui citado, foi um escritor de origem dinamarquesa.

17Ainda hoje Obama alimenta a sua liderança carismática com frases fortes como estas: «I’m still asking you to believe - not in my ability to bring about change, but in yours. I believe in change because I believe in you» (OBAMA, 2017).

18Em 1910, 85% da população portuguesa é rural, apenas 15% da população vive em núcleos de mais de 10 000 habitantes e só existem dois núcleos com mais de 100 000 habitantes: Lisboa e Porto (MARQUES, 1991, p. 13). Todavia, entre 1878 e 1911, Lisboa aumentou a sua população em mais de 100%, passando de 187 mil habitantes para cerca de 435 mil e o Porto aumentou a sua população em mais de 70%, passando de 105 mil habitantes para cerca de 194 mil (RAMOS, 2006, pp. 71 e 229). Outro ponto importante foi a explosão de jornais e o início de uma opinião pública que se alastrou para fora dos círculos restritos da elite política (SARDICA, 2012).

19O Portugal democrático tem assistido, igualmente, a várias dissidências partidárias, como, por exemplo, as que deram origem ao MES, ASDI, ND ou, mais recentemente, o Livre, a Aliança e o Chega. Depois, temos vários partidos que resultam de fusões ou reconfigurações políticas, cujo exemplo mais representativo é o BE.

20Isto não significa que o liberalismo português do século XIX não tivesse uma relação constante com movimentos revolucionários e contrarrevolucio-nários, até porque a sua própria fundação foi de origem revolucionária (FERNANDES, 2012). O que aqui se argumenta é um novo e republicano-radical tipo de revolucionarismo, mais ligado às massas populares e de classe média do que às tradicionais elites oligárquicas com base aristocrática e da alta burguesia proprietária e capitalista.

21Assumindo a sua inexperiência e falta de preparação, D. Manuel II pediu orientação ao Conselho de Estado. Demonstrando falta de liderança carismática neste particular momento, o novo Rei, em vez de liderar, foi um seguidor das ideias do Conselho de Estado. Este votou a demissão de João Franco e a formação de um governo de coligação, a que se chamou o Governo «de Acalmação», presidido pelo independente contra-almirante Ferreira do Amaral. Todavia, como veremos, apesar da sua tentativa de normalização de direitos e liberdades, isto não conseguiu acalmar a crise que progressivamente se agudizou até 1910.

22Neste ponto, convém recordar duas questões interligadas e importantes para uma compreensão mais rigorosa do contexto do discurso e da sua relação com a nossa interpretação comparativa com o tempo presente. A primeira, a inexperiência e falta de conhecimentos técnicos do novo rei. A segunda, a importância do Conselho de Estado e dos assessores do rei e do governo no seu aconselhamento e, muito provavelmente, na própria realização do seu discurso. Isto significa que o líder deve rodear-se dos melhores especialistas e intelectuais para o aconselharem. O líder não tem de dominar aspetos técnicos especiais, para isso existem os especialistas e académicos. Um líder político não tem de ser um académico nem um intelectual. Aliás, como explicou Weber, a política e a ciência são duas vocações diferentes. Excecionalmente podem existir bons académicos que conseguem ser razoáveis políticos, mas não é possível ser um excelente académico e simultaneamente um excelente líder político. Todavia, é histórico que a origem dos partidos políticos, e consequente elite política portuguesa desde o século XIX, está muito ligada aos notáveis, nomeadamente académicos. Esta tradição foi ainda mais fortalecida com o Estado Novo e a hegemonia governativa do professor Salazar e dos seus colegas de Coimbra, Lisboa e Porto. Isto não significa que não seja positivo existirem académicos nos governos e na elite política. Mas um líder político tem uma vocação que é diferente da vocação académica, desde logo, de arredondar a verdade. Isto não é impeditivo de um académico se tornar um político, mas é impeditivo de um político se tornar um académico. Por outro lado, muitas vezes, os líderes políticos não se rodeiam dos melhores conselheiros, designadamente dos que têm competências para lhes demonstrar que podem estar enganados. Este é outro problema com que se confronta o líder político. A sua capacidade de pensar fora da sua caixa mental e da bolha dos assessores que, não raras vezes, se limitam a concordar com as suas ideias. A capacidade de o líder escutar e apreciar ideias diferentes das suas e, no final, aceitar as melhores ideias é também uma característica dos grandes líderes.

23Outra pós-verdade, ou verdade arredondada, é quando, no seu discurso, D. Manuel, referindo-se às eleições, sublinha o clima de tranquilidade e ordem no país, com a exceção de algumas «assembleias da capital». Nas suas palavras: «na época prefixada, se realizaram as eleições geraes dos Senhores Deputados da Nação, com plena liberdade em todo o país e absoluta ordem, apenas perturbada em algumas assembleias da capital por incidentes cujas dolorosas consequências profundamente lamentamos» (D. MANUEL II, 1908, p. 1261).

24Como referido na nota 21, o novo Governo de «Acalmação», presidido por Ferreira do Amaral, incluía membros dos partidos Regenerador e Progressista, além de independentes, e visava fazer o país voltar à normalidade parlamentar, acabando com as medidas de ditadura. Isto significa que, com D. Manuel II, se abandonou a posição de força seguida por D. Carlos e pelo seu último ministério. De facto, anularam-se as medidas ditatoriais anteriormente publicadas, soltaram-se os presos políticos, amnistiaram-se os marinheiros que se haviam revoltado em 1906, e consentiu-se que se fizessem comícios republicanos. Apesar dos aspetos positivos ao nível dos direitos e liberdades, esta normalização permitiu aos partidos oposicionistas ao regime ganharem força e terem ca-pacidade de se organizarem para derrubar a monarquia. Por outro lado, o regime monárquico não conseguiu gerir da melhor forma a demissão do ministério ditatorial. Pelo contrário, os republicanos aproveitaram-se desse facto e argumentaram que foram eles os únicos responsáveis pelo fim da ditadura. Depois da hesitação inicial, em que se chegou a propor um pacto de colaboração com o regime, o Partido Republicano decidiu no congresso de Setúbal, de 24 a 25 de abril de 1909, o derrube pela força do regime, o que viria a acontecer no dia 5 de outubro de 1910

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