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Revista Portuguesa Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço

versão On-line ISSN 2184-6499

Rev Port ORL vol.61 no.1 Lisboa mar. 2023  Epub 31-Mar-2023

https://doi.org/10.34631/sporl.1079 

Dossier COVID-19

Evolução da Otite Média Crónica com Derrame na população pediátrica do Hospital Beatriz Ângelo durante o confinamento por COVID-19

Evolution of Otitis Media with Effusion in the paediatric population of Hospital Beatriz Ângelo during COVID lockdown

1 Hospital Beatriz Ângelo, Loures, Portugal


Resumo

Objetivo:

Descrição da evolução duma população pediátrica com indicação cirúrgica por Otite Média Crónica com Derrame (OMD) durante o período de confinamento por SARS-CoV-2.

Desenho do estudo:

Estudo retrospetivo observacional.

Material e Métodos:

Durante o isolamento social, em Março de 2021, reavaliou-se 21 crianças com propostas cirúrgicas realizadas no período pré-confinamento para miringotomia com colocação de tubos transtimpânicos e adenoidectomia. Reavaliou-se os sintomas, otoscopia e timpanometria, comparando com os resultados que levaram à indicação cirúrgica previamente.

Resultados:

76% apresentou melhoria da otoscopia e apenas 4,7% (n=1) apresentou agravamento da otoscopia. No timpanograma, houve uma diminuição de 62% para 5% dos doentes com tipo B e um aumento do tipo A de 0% para 81%. Nenhum doente apresentou Otite Média Aguda nos 6 meses prévios.

Conclusões:

O confinamento social levou a melhoria dos doentes com OMD, aumentando a possibilidade de cura sem necessidade de cirurgia.

Palavras-chave: Otite Média Crónica com Derrame; COVID-19; Confinamento; Pandemia

Abstract

Objective:

Description of the evolution of a paediatric population with surgical indication for Otitis Media with Effusion (OME) during the SARS-CoV-2 lockdown.

Study design:

Observational retrospective study.

Material and Methods:

During the pandemic period, in March 2021, we reassessed 21 children proposed for bilateral transtympanic tube placement and adenoidectomy in the last quarters of 2019 and 2020. We evaluated the symptoms, otoscopy and tympanometry, comparing with the results that led to the surgical indication previously.

Results:

76% showed improvement in otoscopy and only 4.7% (n=1) showed worsening in otoscopy. Regarding the tympanogram, there was a decrease from 62% to 5% of patients with type B and an increase of type A from 0% to 81%. No patient observed had Acute Otitis Media in the previous 6 months.

Conclusions:

Social confinement led to an improvement in the patients with OME, increasing the possibility of cure without the need for surgery.

Keywords: Otitis Media with Effusion; COVID-19; Lockdown; Pandemic

Introdução

A Otite média crónica com derrame (OMD) é uma doença inflamatória com acumulação persistente (duração superior a 12 semanas) de muco no ouvido médio. É uma das patologias mais prevalentes nas crianças, sendo a principal causa de hipoacusia de condução nesta faixa etária, com consequente atraso no desenvolvimento da fala, perturbações do comportamento e mau desempenho escolar.1 Os fatores de risco para o desenvolvimento desta patologia são a idade pela horizontalidade da trompa de Eustáquio e hipertrofia do tecido linfoide, prematuridade, baixo peso ao nascer, Síndrome de Down, Fenda palatina ou outras alterações craniofaciais, predisposição genética (19q e 10q, 17q12, polimorfismo FBXO11), a frequência do infantário e uso de chupeta. Considera-se a amamentação como fator de proteção. 2

As consequências desta entidade não se limitam apenas a nível clínico e terapêutico, mas envolvem também o impacto na qualidade de vida, no desenvolvimento e na aprendizagem da criança e os custos económicos associados. 3

O diagnóstico assenta num Timpanograma tipo B e evidência otoscópica de patologia. 2 O tratamento mais consensual é a miringotomia com inserção de tubos transtimpânicos, sendo o procedimento cirúrgico mais realizado em Otorrinolaringologia. Este procedimento tem como objetivo a drenagem do fluído mucoso e a oxigenação do ouvido médio. 1

As orientações da prática clínica da American Academy of Otolaryngology - Head and Neck Surgery para a colocação de tubos transtimpânicos foram atualizadas em 2022. Esta publicação é uma referência para a prática clínica relativamente à OMD nas crianças.2 No entanto, estas guidelines não atendem a especificidades como o isolamento e afastamento escolar. 2,4

Em 2020, devido à pandemia COVID-19, foi iniciado um primeiro confinamento de Março a Maio de 2020 e um segundo ente Janeiro e Março de 2021 em Portugal pelo novo aumento da casos.

O objetivo deste estudo é avaliar o papel do isolamento social imposto pela pandemia COVID-19 na história natural da OMD em doentes pediátricos em lista de espera para cirurgia do Hospital Beatriz Ângelo - miringotomia com colocação de tubos transtimpânicos e adenoidectomia.

Material e métodos

Através dum estudo retrospetivo observacional consultou-se a lista de espera para cirurgia do Serviço de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Beatriz Ângelo. Convocou-se para reavaliação os doentes pediátricos com propostas cirúrgicas (realizadas por diferentes médicos) para miringotomia com colocação de tubos transtimpânicos bilateralmente e adenoidectomia por OMD, realizadas entre Setembro a Dezembro de 2019 e de Setembro a Dezembro de 2020 (N=52). Reavaliou-se estes doentes durante o 2º confinamento decretado em Portugal, em Março de 2021. Assim, o último intervalo foi escolhido por ser imediatamente anterior a esse período, altura em que as crianças não estavam em confinamento. O último quadrimestre de 2019 foi escolhido por ser prévio ao surgimento da panedemia COVID-19 e corresponder à mesma altura do ano que o intervalo anterior. Os doentes de ambos os períodos tiveram o diagnóstico e propostas cirúrgicas realizadas na mesma altura do ano e foram re-avaliados quando estavam todos em confinamento.

Dos 52 doentes convocados, compareceram 30 doentes à consulta e destes, 7 crianças já tinham sido operadas através de vale cirúrgico ao abrigo do programa Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC).

Consideraram-se como critérios de exclusão: idade superior a 18 anos, prematuridade, baixo peso ao nascer, síndrome de Down, fenda do palato e outras alterações craniofaciais, e crianças que continuavam a ir à escola. Desta forma, foram excluídas 2 crianças por serem filhas de profissionais de saúde e continuarem a frequentar a escola.

Dos restantes 21 doentes, foram colhidos os dados em consulta de reavaliação através de colheita completa da história clínica, execução de exame objetivo completo com otoscopia bilateral, timpanometria e consulta do processo clínico eletrónico.

Os doentes foram avaliados em relação às variáveis: questionamos os pais se consideravam que os sintomas tinham melhorado, agravado ou estagnado (atraso da fala, hipoacusia, otalgia, otorreia, obstrução nasal) e a frequência de Otites Médias Agudas (OMA) ; otoscopia - considerar-se-ia OMD se se observasse retração, opacidade ou perfuração da membrana timpânica, níveis hidroaéreos, horizontalização ou hipervascularização do cabo do martelo; tímpano azul, hipervascularização do annulus timpânico); e timpanometria (tipo A, B ou C), comparando com os resultados que levaram à indicação cirúrgica previamente. Toda a avaliação foi realizada e descrita por um só investigador. Os critérios para a consideração de melhoria da OMD assentaram em três variantes: perceção dos pais - se estes referiam melhoria das queixas nasais, otológicas ou da fala inicialmente referidas, aquando da proposta cirúrgica; otoscopia - observação de otoscopia normal; timpanograma - se houve uma melhoria da curva timpanométrica.

Figura 1 Diagrama com a seleção dos doentes para o estudo 

Resultados

Dos 21 doentes observados (12 do sexo masculino e 9 do sexo feminino), 76% apresentou melhoria da otoscopia e apenas 4,7% (n=1) apresentou agravamento da otoscopia, com perfuração da membrana timpânica em doente que antes apresentava apenas retração timpânica. Relativamente às queixas de obstrução nasal e atraso do desenvolvimento da fala, meramente subjetivas por parte dos pais, houve uma melhoria em 54.5% e 50% respetivamente e agravamento em 0% das crianças. Em relação aos sintomas, nenhum doente observado apresentou OMA nos 6 meses prévios.

Relativamente aos timpanogramas feitos previamente ao confinamento, 62% da população estudada apresentava tipo B e 38% apresentava tipo C. Nenhuma criança apresentava tipo A. No entanto, na nossa re-avaliação durante o confinamento, 81% dos casos apresentaram tipo A, 14% apresentaram tipo C e 5% apresentaram tipo B. Ainda é de acrescentar que 86% dos doentes teve melhoria e os três doentes que não tiveram melhoria do timpanograma, mantiveram-se iguais, sem agravamento.

Assim, tendo por base um timpanograma tipo B ou um timpanograma tipo C com queixas dos pais ou otoscopia compatível com OMD, 90,5% dos doentes deixaram de ter indicação cirúrgica para miringotomia bilateral com colocação de tubos transimpânicos, ficando apenas 9,5% (N=2) com indicação para cirurgia.

Gráfico 1 Distribuição dos timpanogramas da população estudada previamente ao confinamento 

Gráfico 2 Distribuição dos timpanogramas da população estudada durante o confinamento 

Discussão

Em 2020, a pandemia COVID-19 foi declarada como emergência de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Desta forma, grande parte dos países adotaram medidas restritivas com o objetivo de conter esta pandemia, como utilização de máscara e distanciamento social. 5 Em Portugal, houve dois períodos de confinamento com encerramento das escolas, de Março a Maio de 2020 e outro de Janeiro a Março de 2021.

O nosso trabalho é pioneiro no estudo da OMD durante o confinamento social em Portugal. Constatou-se de fato que houve uma grande alteração no padrão timpanométrico, corroborando a melhoria das queixas referida pelos pais e da otoscopia feita na nossa consulta de reavaliação. Assim, houve uma melhoria clínica destes doentes, com diminuição das OMAs, da prevalência da OMD e diminuição das indicações cirúrgicas.

Verificamos que com o isolamento social e as medidas de higiene (distanciamento social mínimo de 2 metros, utilização de máscara facial e o reforço de desinfeção das mãos) houve uma melhoria dos sintomas associados à OMD. Poderá atribuir-se como possível causa ao encerramento das escolas, que levou à diminuição de infeções das vias aéreas superiores (adenoidites) e consequente melhoria da ventilação do Ouvido Médio, como já demonstrado no estudo austríaco de Monika Redlberger-Fritz et al. 6 A máscara nesta faixa etária acaba por ter um papel menos importante, pelo seu incumprimento. Neste sentido, excluíram-se do estudo as crianças que mantinham o ensino presencial.

Já há estudos feitos a nível europeu relativamente à evolução da OMD durante o confinamento pela pandemia COVID-19. Toretta, S. et al também mostrou que o confinamento teve um impacto positivo na terapêutica e prevenção da OMD.7-9 No entanto, a maior parte dos artigos publicados são estudos retrospetivos, com amostras pequenas e sem grupos de controlo, pelo fato de terem sido realizados durante o confinamento. 1,7,10 Para além dessas limitações, no nosso artigo não foram realizados questionários validados para português na investigação da evolução dos sintomas e a avaliação dos doentes no período pré-COVID-19 foi realizada por vários médicos. Assim é difícil tirar conclusões generalizadas sobre a relação direta do confinamento no controlo da OMD, no entanto, achamos importante comunicar os resultados deste estudo observacional que realizamos, em condições específicas de confinamento.

Conclusão

Na nossa população, registou-se uma melhoria global das crianças com OMD durante o confinamento social. Cerca de 90% destas crianças apresentava-se curada, não necessitando de tratamento cirúrgico. Esta experiência corrobora com a literatura já publicada, levando-nos a refletir sobre fatores determinantes, como o controlo ambiental (afastamento escolar por um período específico) na resolução não cirúrgica da Otite Média Crónica com Derrame na criança. No entanto, devem ser realizados estudos prospetivos e com grupos de controlo para obtermos conclusões mais fidedignas.

Conflito de Interesses

Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.

Confidencialidade dos dados

Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.

Proteção de pessoas e animais

Os autores declaram que os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.

Financiamento

Este trabalho não recebeu qualquer contribuição, financiamento ou bolsa de estudos.

Disponibilidade dos Dados científicos

Não existem conjuntos de dados disponíveis publicamente relacionados com este trabalho.

Bibliografia

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Recebido: 27 de Julho de 2022; Aceito: 27 de Novembro de 2022

Contacto principal para correspondência: andreialopes10@gmail.com

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