Introdução
A Otite média crónica com derrame (OMD) é uma doença inflamatória com acumulação persistente (duração superior a 12 semanas) de muco no ouvido médio. É uma das patologias mais prevalentes nas crianças, sendo a principal causa de hipoacusia de condução nesta faixa etária, com consequente atraso no desenvolvimento da fala, perturbações do comportamento e mau desempenho escolar.1 Os fatores de risco para o desenvolvimento desta patologia são a idade pela horizontalidade da trompa de Eustáquio e hipertrofia do tecido linfoide, prematuridade, baixo peso ao nascer, Síndrome de Down, Fenda palatina ou outras alterações craniofaciais, predisposição genética (19q e 10q, 17q12, polimorfismo FBXO11), a frequência do infantário e uso de chupeta. Considera-se a amamentação como fator de proteção. 2
As consequências desta entidade não se limitam apenas a nível clínico e terapêutico, mas envolvem também o impacto na qualidade de vida, no desenvolvimento e na aprendizagem da criança e os custos económicos associados. 3
O diagnóstico assenta num Timpanograma tipo B e evidência otoscópica de patologia. 2 O tratamento mais consensual é a miringotomia com inserção de tubos transtimpânicos, sendo o procedimento cirúrgico mais realizado em Otorrinolaringologia. Este procedimento tem como objetivo a drenagem do fluído mucoso e a oxigenação do ouvido médio. 1
As orientações da prática clínica da American Academy of Otolaryngology - Head and Neck Surgery para a colocação de tubos transtimpânicos foram atualizadas em 2022. Esta publicação é uma referência para a prática clínica relativamente à OMD nas crianças.2 No entanto, estas guidelines não atendem a especificidades como o isolamento e afastamento escolar. 2,4
Em 2020, devido à pandemia COVID-19, foi iniciado um primeiro confinamento de Março a Maio de 2020 e um segundo ente Janeiro e Março de 2021 em Portugal pelo novo aumento da casos.
O objetivo deste estudo é avaliar o papel do isolamento social imposto pela pandemia COVID-19 na história natural da OMD em doentes pediátricos em lista de espera para cirurgia do Hospital Beatriz Ângelo - miringotomia com colocação de tubos transtimpânicos e adenoidectomia.
Material e métodos
Através dum estudo retrospetivo observacional consultou-se a lista de espera para cirurgia do Serviço de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Beatriz Ângelo. Convocou-se para reavaliação os doentes pediátricos com propostas cirúrgicas (realizadas por diferentes médicos) para miringotomia com colocação de tubos transtimpânicos bilateralmente e adenoidectomia por OMD, realizadas entre Setembro a Dezembro de 2019 e de Setembro a Dezembro de 2020 (N=52). Reavaliou-se estes doentes durante o 2º confinamento decretado em Portugal, em Março de 2021. Assim, o último intervalo foi escolhido por ser imediatamente anterior a esse período, altura em que as crianças não estavam em confinamento. O último quadrimestre de 2019 foi escolhido por ser prévio ao surgimento da panedemia COVID-19 e corresponder à mesma altura do ano que o intervalo anterior. Os doentes de ambos os períodos tiveram o diagnóstico e propostas cirúrgicas realizadas na mesma altura do ano e foram re-avaliados quando estavam todos em confinamento.
Dos 52 doentes convocados, compareceram 30 doentes à consulta e destes, 7 crianças já tinham sido operadas através de vale cirúrgico ao abrigo do programa Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC).
Consideraram-se como critérios de exclusão: idade superior a 18 anos, prematuridade, baixo peso ao nascer, síndrome de Down, fenda do palato e outras alterações craniofaciais, e crianças que continuavam a ir à escola. Desta forma, foram excluídas 2 crianças por serem filhas de profissionais de saúde e continuarem a frequentar a escola.
Dos restantes 21 doentes, foram colhidos os dados em consulta de reavaliação através de colheita completa da história clínica, execução de exame objetivo completo com otoscopia bilateral, timpanometria e consulta do processo clínico eletrónico.
Os doentes foram avaliados em relação às variáveis: questionamos os pais se consideravam que os sintomas tinham melhorado, agravado ou estagnado (atraso da fala, hipoacusia, otalgia, otorreia, obstrução nasal) e a frequência de Otites Médias Agudas (OMA) ; otoscopia - considerar-se-ia OMD se se observasse retração, opacidade ou perfuração da membrana timpânica, níveis hidroaéreos, horizontalização ou hipervascularização do cabo do martelo; tímpano azul, hipervascularização do annulus timpânico); e timpanometria (tipo A, B ou C), comparando com os resultados que levaram à indicação cirúrgica previamente. Toda a avaliação foi realizada e descrita por um só investigador. Os critérios para a consideração de melhoria da OMD assentaram em três variantes: perceção dos pais - se estes referiam melhoria das queixas nasais, otológicas ou da fala inicialmente referidas, aquando da proposta cirúrgica; otoscopia - observação de otoscopia normal; timpanograma - se houve uma melhoria da curva timpanométrica.
Resultados
Dos 21 doentes observados (12 do sexo masculino e 9 do sexo feminino), 76% apresentou melhoria da otoscopia e apenas 4,7% (n=1) apresentou agravamento da otoscopia, com perfuração da membrana timpânica em doente que antes apresentava apenas retração timpânica. Relativamente às queixas de obstrução nasal e atraso do desenvolvimento da fala, meramente subjetivas por parte dos pais, houve uma melhoria em 54.5% e 50% respetivamente e agravamento em 0% das crianças. Em relação aos sintomas, nenhum doente observado apresentou OMA nos 6 meses prévios.
Relativamente aos timpanogramas feitos previamente ao confinamento, 62% da população estudada apresentava tipo B e 38% apresentava tipo C. Nenhuma criança apresentava tipo A. No entanto, na nossa re-avaliação durante o confinamento, 81% dos casos apresentaram tipo A, 14% apresentaram tipo C e 5% apresentaram tipo B. Ainda é de acrescentar que 86% dos doentes teve melhoria e os três doentes que não tiveram melhoria do timpanograma, mantiveram-se iguais, sem agravamento.
Assim, tendo por base um timpanograma tipo B ou um timpanograma tipo C com queixas dos pais ou otoscopia compatível com OMD, 90,5% dos doentes deixaram de ter indicação cirúrgica para miringotomia bilateral com colocação de tubos transimpânicos, ficando apenas 9,5% (N=2) com indicação para cirurgia.
Discussão
Em 2020, a pandemia COVID-19 foi declarada como emergência de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Desta forma, grande parte dos países adotaram medidas restritivas com o objetivo de conter esta pandemia, como utilização de máscara e distanciamento social. 5 Em Portugal, houve dois períodos de confinamento com encerramento das escolas, de Março a Maio de 2020 e outro de Janeiro a Março de 2021.
O nosso trabalho é pioneiro no estudo da OMD durante o confinamento social em Portugal. Constatou-se de fato que houve uma grande alteração no padrão timpanométrico, corroborando a melhoria das queixas referida pelos pais e da otoscopia feita na nossa consulta de reavaliação. Assim, houve uma melhoria clínica destes doentes, com diminuição das OMAs, da prevalência da OMD e diminuição das indicações cirúrgicas.
Verificamos que com o isolamento social e as medidas de higiene (distanciamento social mínimo de 2 metros, utilização de máscara facial e o reforço de desinfeção das mãos) houve uma melhoria dos sintomas associados à OMD. Poderá atribuir-se como possível causa ao encerramento das escolas, que levou à diminuição de infeções das vias aéreas superiores (adenoidites) e consequente melhoria da ventilação do Ouvido Médio, como já demonstrado no estudo austríaco de Monika Redlberger-Fritz et al. 6 A máscara nesta faixa etária acaba por ter um papel menos importante, pelo seu incumprimento. Neste sentido, excluíram-se do estudo as crianças que mantinham o ensino presencial.
Já há estudos feitos a nível europeu relativamente à evolução da OMD durante o confinamento pela pandemia COVID-19. Toretta, S. et al também mostrou que o confinamento teve um impacto positivo na terapêutica e prevenção da OMD.7-9 No entanto, a maior parte dos artigos publicados são estudos retrospetivos, com amostras pequenas e sem grupos de controlo, pelo fato de terem sido realizados durante o confinamento. 1,7,10 Para além dessas limitações, no nosso artigo não foram realizados questionários validados para português na investigação da evolução dos sintomas e a avaliação dos doentes no período pré-COVID-19 foi realizada por vários médicos. Assim é difícil tirar conclusões generalizadas sobre a relação direta do confinamento no controlo da OMD, no entanto, achamos importante comunicar os resultados deste estudo observacional que realizamos, em condições específicas de confinamento.
Conclusão
Na nossa população, registou-se uma melhoria global das crianças com OMD durante o confinamento social. Cerca de 90% destas crianças apresentava-se curada, não necessitando de tratamento cirúrgico. Esta experiência corrobora com a literatura já publicada, levando-nos a refletir sobre fatores determinantes, como o controlo ambiental (afastamento escolar por um período específico) na resolução não cirúrgica da Otite Média Crónica com Derrame na criança. No entanto, devem ser realizados estudos prospetivos e com grupos de controlo para obtermos conclusões mais fidedignas.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.