Introdução
O Cancro da Cabeça e Pescoço (CCP) representa cerca de 5,3% do total de cancros a nível mundial 1. Tendo em conta o seu comportamento agressivo e evolução rapidamente progressiva, o atraso no diagnóstico e tratamento destes tumores está associado, na maioria dos casos, a um mau prognóstico a longo prazo 2,3. O intervalo de tempo desde o início de sintomas até à observação médica, à confirmação do diagnóstico e ao início do tratamento é influenciado por inúmeros fatores, nomeadamente, fatores dependentes do doente, das características tumorais e do serviço de saúde 4.
A 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde declarou a Coronavirus disease 2019 (COVID-19) como uma pandemia, o que conduziu, inevitavelmente, à suspensão temporária da atividade hospitalar programada e a alterações na gestão clínica de todos os doentes, incluindo os considerados prioritários, como os doentes oncológicos. Para além das restrições impostas pela pandemia COVID-19 no que ao acesso aos cuidados de saúde diz respeito, também o receio da população, especialmente durante a primeira fase pandémica, levou à diminuição da procura de cuidados médicos 5,6. Assim, levantaram-se preocupações acerca da possibilidade de atraso no diagnóstico e início de tratamento dos doentes com CCP.
Com este estudo pretendeu-se comparar os doentes com CCP tratados no período pré e pós-COVID-19, nomeadamente em relação ao intervalo de tempo de sintomas, tempo até diagnóstico e tratamento, tipo de tratamento instituído e prognóstico. Portanto, compararam-se os doentes que iniciaram tratamento nos 18 meses anteriores ao início da pandemia COVID-19, com os doentes tratados nos 18 meses subsequentes ao início da pandemia.
O objetivo principal foi avaliar o impacto da pandemia COVID-19 no diagnóstico e abordagem dos doentes com CCP.
Material e Métodos
Desenho e população do estudo:
Estudo de coorte retrospetivo unicêntrico realizado com recurso à consulta dos processos clínicos de todos os doentes adultos (>18 anos) com diagnóstico inaugural de CCP no Serviço de Otorrinolaringologia (ORL) do Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho, entre setembro de 2018 e setembro de 2021.
Variáveis estudadas:
Os doentes foram divididos em 2 grupos: Grupo A (pré-COVID-19) - doentes que iniciaram tratamento antes da pandemia COVID-19 (entre 1 de setembro de 2018 e 10 de março de 2020, inclusive); Grupo B (pós-COVID-19) - doentes que iniciaram tratamento após o início da pandemia COVID-19 (entre 11 de março de 2020 e 30 de setembro de 2021, inclusive). As variáveis analisadas incluíram o género, a idade, a capacidade funcional (segundo a escala de Karnofsky e ECOG - Figura 1), o sintoma de apresentação da doença, o local da primeira avaliação médica, a localização do tumor, o tipo histológico, o tratamento primário instituído e a mortalidade 1 ano após o diagnóstico histológico. O estadiamento clínico tumoral foi categorizado de acordo com a 8ª edição da American Joint Committee on Cancer Staging (2017).
Foram, ainda, analisados os seguintes intervalos de tempo (medidos em semanas), conforme representado na Figura 2:
Definiu-se o atraso relacionado com o doente como o intervalo de tempo desde o início dos sintomas até à data da primeira avaliação médica. Enquanto o atraso relacionado com a assistência compreendeu o intervalo de tempo decorrido entre a primeira avaliação médica e o início do tratamento.
Análise estatística:
Foi realizada uma análise descritiva, reportada através da média (M) e desvio padrão (DP) para as variáveis contínuas com distribuição normal e através de mediana e amplitude interquartil (AIQ) para aquelas com distribuição não normal. As variáveis categóricas foram apresentadas como número de casos (n) e percentagens. Para a análise bivariada, as variáveis categóricas foram comparadas através do teste de qui-quadrado ou teste exato de Fisher, e as contínuas através do teste de Mann-Whitney ou teste t de amostras independentes. Foi utilizado o software SPSS ®, versão 25.0, e foi assumido o nível de significância estatística de p<0,05.
Resultados
Caracterização da amostra
Foram analisados 177 doentes - 153 do género masculino (86,4%) e 24 do género feminino (13,6%), com idades ao diagnóstico entre 28 e 98 anos (idade M ± DP 62,7 ± 13,0 anos). Do total da amostra, 77 doentes iniciaram tratamento antes da pandemia COVID-19 - Grupo A (43,5%) e 100 doentes após o início da pandemia COVID-19 - Grupo B (56,5%). Verificou-se um maior grau de capacidade funcional (medida pelo índice de Karnofsky) nos doentes do grupo B em relação aos doentes do grupo A (A=8; B=9) (p=0,035). Não se registaram diferenças estatisticamente significativas nos restantes parâmetros analisados entre os dois grupos (Tabela 1).
Característica | Grupo A (Pré-COVID-19) n = 77 (43,5%) | Grupo B (Pós-COVID-19) n = 100 (56,5%) | p valor |
---|---|---|---|
Género, n (%) | 0,280 | ||
Feminino | 8 (10,4) | 16 (16,0) | |
Masculino | 69 (89,6) | 84 (84,0) | |
Idade (anos), M (DP) | 61,16 (13,6) | 63,39 (13,1) | 0,157 |
Capacidade funcional, mediana (AIQ) | |||
ECOG | 1 (0) | 1 (0) | 0,126 |
Karnovsky | 8 (1) | 9 (1) | 0,035 |
Teste qui-quadrado, Teste de Fisher, Teste de Mann-Whitney e Teste t de amostras independentes; Legenda: n - número de casos; M - média; DP - desvio padrão; AIQ - amplitude interquartil
Apresentação clínica e tipo de tumor
O sintoma de apresentação mais frequente no Grupo A foi a odinofagia (24,7%) e no Grupo B a disfonia (33,0%). O Serviço de Urgência foi o local da primeira avaliação de mais de metade dos doentes de ambos os grupos (A=50,6%; B=54,0%). Não se verificou diferença entre o local da primeira avaliação médica e o período pré/pós pandemia COVID-19 (p=0,905). A localização tumoral mais frequentemente observada foi a laringe (A=28,5%; B=32,0%), sendo o carcinoma epidermoide o tipo histológico mais prevalente (A=84,4%; B=86,0%).
Característica | Grupo A (Pré-COVID-19) n = 77 | Grupo B (Pós-COVID-19) n = 100 | p valor* |
---|---|---|---|
Sinal/Sintoma de apresentação, n (%) | 0,254 | ||
Disfonia | 16 (20,8) | 33 (33,0) | |
Odinofagia | 19 (24,7) | 25 (25,0) | |
Massa cervical | 14 (18,2) | 14 (14,0) | |
Lesão oral | 9 (11,7) | 5 (5,0) | |
Outra | 19 (24,7) | 23 (23,0) | |
Local da primeira avaliação, n (%) | 0,905 | ||
Serviço de Urgência | 39 (50,6) | 54 (54,0) | |
Cuidados de saúde primários | 27 (35,1) | 33 (33,0) | |
Cuidados de saúde secundários | 11 (14,3) | 13 (13,0) | |
Localização do tumor, n (%) | 0,532 | ||
Laringe | 22 (28,5) | 32 (32,0) | |
Orofaringe | 20 (26,0) | 30 (30,0) | |
Cavidade oral | 11 (14,3) | 6 (6,0) | |
Hipofaringe | 6 (7,8) | 13 (13,0) | |
Nasofaringe | 5 (6,5) | 6 (6,0) | |
Cavidade nasal e SPN | 6 (7,8) | 6 (6,0) | |
Outra | 7 (9,1) | 7 (7,0) | |
Tipo histológico, n (%) | 0,768 | ||
Carcinoma epidermoide | 65 (84,4) | 86 (86,0) | |
Outro | 12 (15,6) | 14 (14,0) |
* Teste qui-quadrado
Estadiamento clínico tumoral
Em relação ao estadiamento clínico tumoral, a maioria dos doentes apresentou tumor localmente avançado em estadio tardio ou tumor metastático (estadio III ou IV): grupo A=76% e grupo B=85,2%. No grupo pós-COVID-19 verificou-se uma maior proporção de doentes em estadio III (A=8,0%; B=18,9%) (p=0,04) e estadio IVB (A=8,0%; B=24,2%) (p=0,005).
No grupo pós-COVID-19, a proporção de doentes com extensão tumoral avançada (T3 ou T4) foi significativamente superior (A=60,3%; B=75,8%) (p=0,031) bem como a proporção de doentes com envolvimento ganglionar regional avançado (N3) (A=9,3%; B=24,5%) (p=0,009), comparativamente aos resultados do grupo pré-COVID-19. Por outro lado, não se verificaram diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos em relação à proporção de doentes com metástases à distância (p=0,09).
Tratamento primário instituído
A maioria dos doentes de ambos os grupos realizou tratamento com intenção curativa (A=82%; B=83%). Verificou-se uma diferença estatisticamente significativa entre a proporção de doentes submetidos a tratamento com intenção paliativa no grupo pré e pós-COVID-19 (A=14%; B=4%) (p=0,016). Por outro lado, uma maior proporção de doentes do grupo pós-COVID-19 não apresentou condições para o tratamento, tendo sido propostos apenas cuidados de suporte (B=11%; A=3%) (p=0,036).
Tratamento com intenção curativa
Analisando apenas os doentes propostos para tratamento com intenção curativa, verificou-se que a proporção de doentes submetidos a cirurgia foi significativamente superior no grupo pré-COVID-19 (A=52,4%; B=31,3%) (p=0,009), enquanto no grupo pós-COVID-19 uma maior proporção de doentes realizou tratamento não cirúrgico (B=67,5%; A=42,9%) (p=0,003).
Intervalos de tempo
Relativamente aos intervalos de tempo analisados e descritos na Figura 6, verificou-se que a mediana de duração de sintomas no grupo pós-COVID-19 (B=12,9) foi superior à do grupo pré-COVID-19 (A=8,6), sendo esta diferença estatisticamente significativa (p=0,009). Em relação ao tempo de referenciação e ao intervalo de tempo entre a observação ORL e o diagnóstico histológico, não houve diferenças entre os dois grupos. Por outro lado, o intervalo de tempo entre o diagnóstico e o início do tratamento foi significativamente inferior no grupo pós-COVID-19 (B=6) em comparação com o pré-COVID-19 (A=8) (p=0,008). Quando analisado o atraso relacionado com a assistência (tempo decorrido desde a primeira avaliação médica até ao início do tratamento), não houve diferenças entre os dois grupos (A=13,5; B=13) (p=0,523).
No global, a mediana de tempo desde o início dos sintomas até ao início do tratamento foi de 20,6 semanas no grupo pré-COVID-19 e de 24,1 semanas no grupo pós-COVID-19, contudo, esta diferença não foi estatisticamente significativa (p=0,141).
Conforme representado na Tabela 3, no subgrupo de doentes submetidos a cirurgia, houve uma redução estatisticamente significativa no número de semanas decorridas desde o diagnóstico histológico até à intervenção no período pós-COVID-19 (A=9; B=5) (p=0,009). Por outro lado, no subgrupo de doentes submetidos a tratamento não cirúrgico, a mediana de intervalo de tempo até tratamento foi semelhante nos dois períodos (A=7,5; B=7) (p=0,317).
Observou-se ainda uma correlação negativa, estatisticamente significativa, entre o estadiamento tumoral e o intervalo de tempo desde a primeira avaliação médica até ao início do tratamento (r=-0,195; p = 0,019).
Tipo de tratamento | Grupo A (Pré-COVID-19) Mediana (AIQ) | Grupo B (Pós-COVID-19) Mediana (AIQ) | p-valor* |
Tratamento cirúrgico | 9 (6) | 5 (4) | 0,009 |
Tratamento não cirúrgico | 7,5 (3) | 7 (6) | 0,317 |
* Teste qui-quadrado
Prognóstico
Foi contabilizado o intervalo de tempo (em meses) entre o diagnóstico histológico e a data de morte de cada doente. Verificou-se que a proporção de doentes com sobrevivência igual ou inferior a 12 meses foi semelhante nos dois grupos (A=28,6%; B=29%) (p=0,95).
Discussão
O célere diagnóstico e tratamento de doentes com Cancro da Cabeça e Pescoço está associado a um melhor prognóstico a longo prazo7. Este diagnóstico requer a realização de biópsia (muitas vezes efetuada no bloco operatório) e ainda o recurso a meios complementares de diagnóstico para auxílio no estadiamento tumoral. Neste complexo processo está envolvida uma equipa Multidisciplinar, fundamental para a gestão clínica do doente oncológico.
Contudo, as restrições causadas pela emergência da pandemia COVID-19 conduziram a uma reestruturação inevitável dos serviços de saúde, traduzindo-se na mobilização de profissionais para áreas dedicadas à COVID-19, na suspensão de consultas e cirurgias programadas, na obrigatoriedade de realização de rastreio SARS-CoV-2 antes de procedimentos cirúrgicos, entre outros. Todas estas limitações levantaram preocupações acerca da possibilidade de atraso no diagnóstico e início de tratamento de doentes com CCP, após o início da pandemia COVID-19.
Neste estudo, verificou-se que o serviço de urgência foi o local da primeira avaliação clínica de mais de metade dos doentes, tanto no período pré como pós-COVID-19. A odinofagia foi o sintoma de apresentação mais reportado no período pré-COVID-19, enquanto no período pós-COVID-19 foi a disfonia. Tal diferença poderá ser explicada pelo facto de, após a pandemia, muitos dos doentes com odinofagia terem sido triados para Áreas Dedicadas para Doentes Respiratórios e COVID-19 (ADR) e, consequentemente, não terem sido observados por médicos ORL.
Em relação ao estadiamento clínico tumoral, no período pós-COVID-19 verificou-se uma maior extensão tumoral (T3 ou T4), bem como um envolvimento ganglionar regional mais avançado (N3), o que é concordante com outros estudos reportados na literatura 8-10. Efetivamente, segundo o estudo conduzido por KL Kiong et al, no período pré-COVID-19, 39,4% dos tumores foram classificados como T3/4, em comparação com 52% dos tumores no período pós-COVID-19 (p = 0,025) 10. Para além disso, de acordo com MN Stevens et al, no período pós-COVID-19 verificou-se um risco cerca de duas vezes superior de envolvimento ganglionar avançado ao diagnóstico (N3, N3a, N3b), em relação ao período pré-COVID-19 (OR=2,14; p=0,011) 8.
O atraso no diagnóstico e abordagem de doentes com CCP pode ser classicamente atribuído a:
1) fatores relacionados com o paciente: nomeadamente, o receio do diagnóstico, a iliteracia e baixo estrato socioeconómico; 2) fatores relacionados com a natureza da doença: como a duração do período assintomático e a localização tumoral; 3) fatores relacionados com o sistema de saúde11. O surgimento da pandemia COVID-19 obrigou à redução da atividade assistencial programada, constituindo, assim, mais uma barreira ao acesso atempado aos cuidados de saúde. Para além disso, o confinamento obrigatório e o receio de contrair a infeção COVID-19, especialmente numa primeira fase da pandemia, contribuiu para exacerbar esta situação 6.
De facto, tal como descrito por outros autores9,12, no período pós-COVID-19 observou-se um aumento significativo no número de semanas entre o início dos sintomas e a primeira avaliação médica (A=8,6; B=12,9) (p=0,009). Contudo, na nossa amostra, o intervalo de tempo entre o diagnóstico histológico e o início do tratamento foi significativamente inferior no período pós-COVID-19 (A=8; B=6) (p=0,008). Esta diferença foi resultante da diminuição do tempo até à intervenção no subgrupo de doentes propostos para cirurgia (A=9; B=5) (p=0,009). Este resultado poderá ser consequente da suspensão da maioria da atividade cirúrgica programada durante o período pandémico, realizando-se quase exclusivamente intervenções prioritárias, como a cirurgia oncológica. Não obstante, durante este período foi menor a proporção de doentes propostos para cirurgia, o que poderá ser, em parte, explicado pelo facto de no grupo pós-COVID-19 os doentes se apresentarem com doença num estadio mais avançado.
Os nossos resultados vão de encontro aos publicados no estudo de RC Schoonbeek et al, que avaliou um total de 8468 doentes com diagnóstico inaugural de CCP durante o período de 2018, 2019 e 2020. Neste trabalho os autores verificaram que, independentemente do tipo de tratamento realizado, o intervalo de tempo decorrido desde a primeira avaliação médica até ao início do tratamento foi consideravelmente inferior no ano de pandemia COVID-19 (2020), inclusive durante a primeira vaga pandémica (março - junho, 2020) (p<0,001) 13.
O nosso estudo tem como principais limitações a sua natureza retrospetiva e o facto de apresentar uma amostra de pequenas dimensões. Para além disso, é um estudo unicêntrico, pelo que poderá não refletir por inteiro a realidade nacional.
Com este estudo demonstrou-se que, durante a pandemia, se manteve a capacidade de abordagem e tratamento de doentes com diagnóstico de CCP inaugural. Contudo, são necessários mais estudos, multicêntricos e prospetivos, para avaliar o verdadeiro impacto da pandemia COVID-19 no prognóstico dos doentes com CCP a longo prazo.
Conclusão
Durante a pandemia COVID-19 verificou-se um atraso significativo na procura de cuidados médicos por parte dos doentes com CCP. Contudo, houve uma redução no intervalo de tempo desde o diagnóstico desta doença até ao início do seu tratamento. Assim, apesar da sobrecarga e da reestruturação dos serviços de saúde com a emergência da pandemia COVID-19, neste estudo unicêntrico foi verificada uma resposta eficiente na prestação de cuidados aos doentes com CCP.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.