Introdução
O envelhecimento é um fenómeno relevante devido às suas implicações nos domínios físico, emocional e social. Com o avançar da idade ocorrem alterações estruturais e funcionais inerentes ao processo de envelhecimento, porém estas não devem ser consideradas uma doença, sendo importante diferenciar o processo de envelhecimento e as afeções que são mais prevalentes nestas faixas etárias1.
A compreensão da fisiologia e dos avanços na avaliação da deglutição e os distúrbios da mesma nos idosos são ainda menosprezados pela população em geral, incluindo a comunidade médica. A disfagia orofaríngea (DOF) é um sintoma definido pela dificuldade no transporte do bolo alimentar da boca até o estômago. A DOF é uma condição clínica com uma alta prevalência, que afeta até 13% da população adulta com mais de 65 anos e cerca de 50% dos adultos institucionalizados2). Embora muitas doenças com potencial para provocar disfagia mostrem taxas de prevalência crescentes com a idade, também as mudanças do envelhecimento per se contribuem para a disfagia3. Por ambas as razões, a prevalência mundial da disfagia está a aumentar nas sociedades envelhecidas.
Os avanços na avaliação instrumental da deglutição permitem identificar alterações anatómicas e fisiológicas específicas, mas a identificação da disfunção e da etiologia da disfagia podem permanecer desconhecidas sem uma compreensão básica da fisiologia da deglutição e das mudanças que ocorrem com o envelhecimento4.
Estados patológicos comuns como depressão, disfunção cognitiva, demência, alterações comportamentais podem atrasar o reconhecimento da disfagia no idoso.
Assim a dificuldade em diagnosticar disfagia nesta população é multifatorial e a sua gestão abrange inúmeras especialidades médicas, cirúrgicas e técnicas. De salientar que embora seja um problema eminente dos cuidados de saúde, a questão da DOF está apenas marginalmente integrada na formação pré-graduada dos profissionais de saúde portugueses que nela atuam.
Anatomia e Fisiologia da Deglutição
A deglutição eficiente e segura envolve a participação coordenada de múltiplas estruturas que conduzem o alimento da boca ao estômago. Este mecanismo compreende três fases: oral, faríngea e esofágica (5.
Fase oral
A fase oral inicia-se com a entrada do alimento na boca e pode ser dividida em dois momentos sequenciais, a preparação e a propulsão oral, ambas voluntárias.
A fase preparatória oral envolve, principalmente, a preparação do bolo e a redução do tamanho das partículas, através da produção de saliva e de uma adequada coordenação dos lábios, boca, mandíbula e movimentos da língua para a mastigação. A permanência do alimento na boca, a prevenção do escape faríngeo prematuro, mantendo a respiração nasal, deve-se à ação concertada entre o músculo orbicular dos lábios e o palatoglosso que selam anterior e posteriormente, respetivamente, a cavidade oral5.
Após a mastigação e formação do bolo inicia-se a fase de propulsão oral com a mobilização posterior do alimento através do movimento de pressão da língua contra o palato duro desencadeando-se a fase faríngea5.
Fase faríngea
A fase faríngea começa a partir do contacto do bolo com o istmo das fauces e, ao contrário da fase anterior, é totalmente reflexa. A duração desta fase é de 1 segundo e a velocidade de transporte do bolo de 30 a 40 cm/seg. Nesta fase há uma sequência de eventos que alteram uma via aerodigestiva para uma via exclusivamente digestiva: desencadeamento, encerramento do véu do paladar, elevação e antero-propulsão laríngea, encerramento laríngeo, propulsão e abertura do esfíncter esofágico superior (EES). Por fim todos os processos anteriores são invertidos sequencialmente para reconfigurar o trato aerodigestivo5.
Fase esofágica
Inicia-se desde que o bolo alimentar passa o EES até que entra no estômago. É um processo reflexo com as seguintes fases: entrada no esófago, encerramento do EES, início do peristaltismo esofágico, abertura do esfíncter esofágico inferior (EEI) e passagem para o estômago5.
Deglutição no Idoso
O envelhecimento produz uma deterioração progressiva das funções sensoriomotoras, inclusive da deglutição. Apesar de numerosos estudos demonstrarem alterações fisiológicas na deglutição com a idade avançada continua a existir uma forte discordância quanto ao que constitui uma deglutição normal ou patológica.
As mudanças na função da deglutição estão associadas ao envelhecimento normal, mas os idosos são muitas vezes assintomáticos, não sendo evidentes os sinais clínicos. Madhavan et al. 6 sugerem que as alterações estão associadas a fatores de risco como a fragilidade e a sarcopenia. Doty e Bosma 3 foram dos primeiros a descrever mudanças de deglutição nesta faixa etária, através do estudo das respostas eletromiográficas, durante a deglutição, em jovens e idosos. Estes autores defendiam que a deglutição, tal como a locomoção, está sujeita a diferentes níveis de excitação e estimulação faríngeas que diminuem com o envelhecimento.
A prevalência da disfagia em idosos varia de acordo com a literatura e com o contexto em que o estudo é realizado. Em idosos saudáveis encontram-se valores entre 7 e 227, aumentando para 33% entre as pessoas com 80 ou mais anos. Nos idosos internados, por doenças agudas, oscila entre 35% e 55% e, em lares entre 65% e 75% 8.
As mudanças que ocorrem durante o processo de envelhecimento ocorrem por três vias que se complementam:
A primeira inevitável, progressiva e irreversível, é um processo fisiológico e implica uma diminuição da capacidade funcional do organismo;
A segunda está relacionada com alterações secundárias a doenças que ocorrem ao longo da vida, intervenções cirúrgicas e acidentes;
Por último, as modificações derivadas do estilo de vida de cada indivíduo (hábitos alimentares, consumo de álcool e tabaco, grau de atividade física, poluição ambiental, entre outros).
A evidência de mudanças na deglutição e nas suas diferentes fases continua a emergir à medida que as técnicas de avaliação funcional e instrumental se tornam mais refinadas.
Fase Oral
A diminuição do sabor e do olfato, assim como da sensibilidade oral, a perda de dentição, a redução do fluxo salivar e a xerostomia, são características associadas à idade e que impactam a fase oral da deglutição (Figura 1). As consequências da diminuição do fluxo salivar incluem o aumento do esforço na mastigação e manipulação de sólidos, bem como uma diminuição do paladar e evicção de certos alimentos. É consensual que a força de língua diminui com a idade. Sakai et al. 9 sugeriram que em indivíduos idosos com suspeita de sarcopenia, a força labial e lingual podem ser índices independentes de grande valia para o diagnóstico de disfagia sarcopénica. Outros autores 10,11 referem que a redução da força de ejeção oral, bem como a atrofia do músculo geniohioideu, têm uma associação significativa com a aspiração, em idosos saudáveis. Além da diminuição da força lingual, há uma reduzida força dos músculos mastigatórios (Tabela 1) 12.
Fase faríngea
A resposta faríngea pode também estar mais lentificada com a idade embora este parâmetro não tenha sido significativamente diferente em idosos quando comparado com adultos jovens 13. Utilizando uma ferramenta validada de avaliação da deglutição, Martin-Harris e colaboradores concluíram que os parâmetros mais afetados nesta faixa etária eram a excursão anterior do hióide, contração faríngea, abertura do EES e retração da base da língua 14.
Outros fatores que colocam em risco de aspiração idosos saudáveis são a atrofia da musculatura faríngea e a redução das pressões faríngeas.
Molfenter, Lenell, et al. referem um aumento do volume faríngeo com a idade que associado à atrofia da musculatura faríngea, diminuição da elevação hiolaríngea e redução da abertura do EES podem ser responsáveis pela presença de resíduos, após deglutição, ao nível das valéculas e seios piriformes (Tabela 1) 15.
Fase Esofágica
Na fase esofágica também estão descritas mudanças associadas ao envelhecimento, tais como, o aumento da duração e redução da amplitude do peristaltismo esofágico. Em idosos saudáveis com mais de 80 anos, a fraqueza da musculatura esofágica conduz à disfunção do peristaltismo esofágico e a doença de refluxo gastroesofágico, predispondo estes indivíduos ao risco de aspiração associada ao refluxo (Tabela 1) 16.
O processo natural de envelhecimento produz alterações na anatomia da cabeça e pescoço, bem como em vários mecanismos neuronais e musculares, causando uma perda de reserva funcional que pode afetar a deglutição. No entanto, a deglutição em idosos saudáveis não está necessariamente prejudicada; quando estas alterações não comprometem a segurança da deglutição define-se como presbifagia 18). Contudo, é difícil estabelecer a diferença entre o que é considerado uma deglutição fisiológica em pessoas mais velhas e quando é que estas alterações representam uma perturbação na função.
Consequências da disfagia para a saúde
A aspiração com consequente pneumonia de aspiração, a desnutrição e a desidratação provocadas pela redução de ingestão de sólidos e líquidos tem como resultado a diminuição da qualidade de vida e aumento do risco de mortalidade.
Pneumonia de aspiração
A pneumonia de aspiração ocorre predominantemente em doentes mais velhos e com histórico de perturbações da deglutição. Os dados de prevalência variam entre 6% e 53% de todas as pneumonias, dependendo da definição de pneumonia de aspiração e do estudo. Vários estudos sugerem que 5% a 15% de todas as pneumonias adquiridas na comunidade são pneumonias de aspiração 17. Vários autores relataram que os doentes com pneumonia de aspiração eram, por regra, mais velhos, tinham doença mais grave e mais comorbilidades do que os com pneumonia não aspirativa.
Desnutrição e desidratação
No idoso, a ingestão de alimentos e líquidos está frequentemente reduzida como consequência das alterações relacionadas com a idade como a anorexia de envelhecimento, problemas de mastigação ou declínio cognitivo. Por outro lado, a perda de autonomia associada à presença de doenças neurológicas prevalentes nos idosos pode aumentar o risco de desnutrição e desidratação 8.
Para evitar ou reduzir estas graves consequências são necessárias intervenções nutricionais e/ou terapêuticas, sendo o principal objetivo a disponibilização de quantidades adequadas de energia e nutrientes de modo a minimizar o risco de desnutrição e desidratação.
Rastreio e Avaliação Clínica
O rastreio deve ser realizado por um profissional de saúde para identificar os doentes com risco de disfagia e encaminhar para uma equipa multidisciplinar que realizará a avaliação clínica/funcional e instrumental. De salientar que os rastreios apenas sinalizam, não fornecendo informações sobre a gravidade da disfagia ou o melhor tratamento. Para todos os doentes com disfagia previamente confirmada ou provável (resultados positivos do rastreio) deve ser considerada uma avaliação clínica da deglutição da responsabilidade do terapeuta da fala e que pressupõe a história clínica exaustiva, a avaliação da função oral e motora e a avaliação da capacidade de ingestão de alimentos. Nestes doentes a avaliação clínica permite a confirmação da disfagia, a determinação da sua gravidade e a abordagem mais adequada, seja ela a necessidade de avaliação instrumental e/ou um tratamento individualizado/personalizado. Assim, a avaliação da deglutição exige um processo com três etapas: rastreio (para identificar uma potencial disfagia); a avaliação clínica (para validar a presença de disfagia e determinar a melhor intervenção); e, por último, a avaliação instrumental. Ao contrário da avaliação clínica, a avaliação instrumental não é necessária para todos, restringindo-se aos casos com DOF ou disfagia esofágica19.
Avaliação Instrumental
Estudo da Deglutição por Videofluoroscopia
A Videofluoroscopia (VFC) é o gold standard tradicional para o diagnóstico da DOF. A VFC é um estudo dinâmico que avalia a segurança e eficácia da deglutição, permitindo uma medição precisa das fases da deglutição e a seleção e avaliação de estratégias terapêuticas específicas. Os principais sinais vídeofluoroscópicos de disfagia são a penetração e aspiração do bolo, atraso ou descoordenação no reflexo de deglutição; formação e propulsão deficientes; deglutição ineficaz ou presença de resíduos, e perturbação na abertura do EES 20.
A VFC tem também um contributo fundamental para o tratamento da DOF, permitindo a triagem dos doentes em várias categorias terapêuticas: 1) doentes com sintomas leves que necessitam de estratégias baseadas, principalmente, na redução do volume e aumento da viscosidade do bolo ; 2) doentes com sintomas graves que necessitam, adicionalmente, de alterações posturais, aumento da informação sensorial e manobras de deglutição; e 3) os doentes com disfagia grave em que está contraindicada a alimentação por via oral e que necessitam de utilização de via alternativa21.
Avaliação Endoscópica da Deglutição
A videoendoscopia da deglutição (VED) permite a visualização da dinâmica faringolaríngea durante a deglutição de diferentes consistências alimentares coradas. Tem dois objetivos principais: (1) contribuir para o diagnóstico da doença subjacente que causa a DOF, se desconhecida; (2) prescrever/delinear o plano de tratamento e/ou terapêutico para a DOF22.
As principais vantagens desta avaliação são poder ser realizada à cabeceira do doente; a ausência de radiação e, por isso, ausência de limite de duração. Finalmente, a VED permite o biofeedback para que o paciente e cuidadores compreendam as alterações funcionais e o impacto que as adaptações e compensações sugeridas possuem na função.
É uma ferramenta útil na identificação de escape prematuro e/ou tardio para o vestíbulo laríngeo, presença de resíduos faringolaríngeos, penetração e aspiração, achados que permitem classificar a gravidade da disfagia.
O escape prematuro corresponde à passagem do bolo para a faringe antes do disparo de deglutição e é, geralmente, resultado de um encerramento glossopalatal deficiente ou incompetente
Os resíduos faríngeos são, geralmente, resultado de uma transferência deficiente de bolo alimentar da boca para o estômago.
A penetração/aspiração é, geralmente, resultado de um encerramento deficiente da via aérea de etiologia variada. O tempo em que acontece (antes, durante ou após a deglutição) e a quantidade penetrada/aspirada são achados importantes para a classificação do fenótipo da disfagia23.
Este método tem, contudo, limitações ao nível da avaliação das fases faríngea e esofágica.
Os dois procedimentos complementam-se mutuamente, cada um deles é usado em pacientes geriátricos para determinar qual o padrão ou natureza do problema e para testar estratégias comportamentais, alterações do volume e características reológicas do bolo e verificar os seus efeitos na deglutição. Por tal, ambas são consideradas provas "terapêuticas".
Na interpretação de avaliações instrumentais é evidente que os parâmetros da deglutição devem ser interpretados diferencialmente quando se comparam populações mais jovens e mais velhas. Além das alterações nas fases oral, faríngea e esofágica descritas anteriormente e visíveis em VFC e VED, achados como o fenómeno de whiteout, (momento da passagem do bolo alimentar e do movimento das estruturas faríngeas, durante a deglutição, não observado devido a reflexão da luz do fibroscópio nos tecidos faringolaríngeos) pode estar prolongado em populações mais velhas. Butler, Maslan, et al. relataram que o bolo permanece mais tempo nas valéculas e seios piriformes em idosos saudáveis com idades compreendidas entre os 70 e os 90 anos e que este "tempo de permanência" aumenta com a idade24.
Intervenção
O principal objetivo da intervenção em disfagia é reduzir a morbilidade e mortalidade associadas a infeções respiratórias e mau estado nutricional, promovendo uma nutrição e hidratação seguras e adequadas com complicações mínimas. Visa recuperar a deglutição fisiológica e manter a qualidade de vida na medida do possível. Em termos de reabilitação, é possível que o exercício possa desempenhar um papel na diminuição do risco de aspiração. Contudo, é importante salientar que nem todas alterações na massa muscular impactam na deglutição, mas o exercício de fortalecimento muscular das unidades musculares envolvidas na deglutição em pessoas mais velhas pode reduzir o risco de desenvolver disfagia25.
As estratégias compensatórias na disfagia envolvem a modificação na dieta e/ou comportamento. A compensação é utilizada principalmente para manter os pacientes seguros durante a alimentação, enquanto a reabilitação é utilizada para acelerar o processo de recuperação.
Conclusão
As perturbações da deglutição são pouco reconhecidas em idosos, com graves consequências para a saúde. Esta é uma realidade pouco estudada e a evidência das intervenções continua a ser fraca. Por outro lado, o conhecimento sobre a (pato)fisiologia da deglutição tem vindo a aumentar, construindo uma boa base para maior investigação sobre a eficácia das intervenções atualmente disponíveis, e desenvolvimento de novas.
O desafio do futuro é aumentar o reconhecimento e a visibilidade destas perturbações como uma importante síndrome clínico e evidenciado o impacto de uma intervenção precoce e adequada. Fomentar o desenvolvimento e validação de intervenções específicas para idosos, insistir na investigação sistemática dos efeitos secundários dos medicamentos na fisiologia da deglutição e estabelecer o efeito da sarcopenia na função de deglutição, têm o potencial de melhorar a situação e o prognóstico neste frágil grupo populacional.