Introdução
A comunicação oral é essencial em qualquer faixa etária, assumindo um papel fundamental na população idosa, sendo para isso necessário uma boa audição. A perda auditiva é um problema significativo de saúde pública em pessoas com idade superior a 65 anos, sendo a terceira doença crónica mais comum, superada apenas pela osteoartrose e hipertensão arterial. (1 Contudo, existe uma baixa percentagem de adultos com perda auditiva a utilizar próteses auditivas (PA) (2, sugerindo que tanto os doentes com perda auditiva quanto os profissionais de saúde envolvidos desvalorizam os potenciais benefícios associados às PA. É especialmente importante documentar estes benefícios, uma vez que com o envelhecimento da população, o número de pessoas com perda auditiva continuará a aumentar, levando a um aumento associado na procura de soluções2. De facto, segundo estimativas da OMS, até 2025 haverá aproximadamente 1200 milhões de pessoas no mundo com mais de 60 anos, sendo mais de 500 milhões de indivíduos que sofrerão de presbiacusia3, perda auditiva que ocorre gradualmente no indivíduo à medida que envelhece, devido a processos fisiológicos e degenerativos associados ao envelhecimento. A presbiacusia é a causa mais frequente de hipoacusia em idosos, afetando entre 30% a 40% das pessoas com mais de 65 anos4,5.
A presbiacusia, ao comprometer a capacidade de comunicar, leva a que os idosos mais facilmente manifestem tristeza, depressão, insegurança, ansiedade, isolamento social com perda de capacidades intelectuais e maior risco de demência6,7. Vários estudos têm sugerido que a perda auditiva em idosos está associada ao desenvolvimento de declínio cognitivo e demência. De facto, a perda auditiva afeta as capacidades cognitivas ao provocar isolamento social e mudanças na estrutura e função cerebral. A perda auditiva e seus efeitos sobre a cognição são altamente prevalentes em doentes idosos, podendo os seus efeitos ser prevenidos e tratáveis com dispositivos de reabilitação, como as PA, que permanecem amplamente subutilizados8. A utilização de PA pode reverter este impacto, permitindo à população mais idosa viver com maior qualidade de vida. No entanto, nem todos os doentes com presbiacusia utilizam PA, sendo variadas as razões para a sua falta de adesão9.
Apesar de ser um tema que afeta muitos doentes e de estar tão presente na nossa prática clínica, os estudos relativamente aos benefícios da utilização de PA e à sua falta de adesão são escassos em Portugal. Assim, o objetivo deste estudo foi avaliar o impacto do uso de PA na qualidade de vida dos doentes com presbiacusia e identificar as principais causas para a ausência da sua utilização.
Material e Métodos
Foi realizado um estudo retrospetivo com doentes com mais de 65 anos, seguidos na consulta externa do Serviço de ORL do Hospital Beatriz Ângelo (HBA) entre 2021 e 2022, com o diagnóstico de presbiacusia e indicação para a utilização de PA, ou seja, doentes com mais de 65 anos, com hipoacusia neurosensorial bilateral com limiares a partir dos 35 dB e queixas associadas. Foi aplicado presencialmente o questionárioHearing Handicap Inventory for the Elderly Screening Version- HHIE-S (Anexo 1), elaborado por Ventry e Weinstein em 198210 e adaptado para português por Martins e Serrano (2010) (11, para determinar a gravidade da perda auditiva percebida e problemas específicos de comunicação e qualidade de vida. O HHIE-S é composto por 10 perguntas fechadas, desenvolvidas para avaliar a perda auditiva e a qualidade de vida em idosos. É composto por 5 perguntas sociais (S) e 5 de resposta emocional (E). A uma resposta "sim", correspondem 4 pontos, à resposta "às vezes"- 2 pontos- e à resposta "não” - 0 pontos. A pontuação do HHIE-S pode variar entre 0 e 40 pontos. Uma pontuação elevada é sugestiva de dificuldades na qualidade de vida com a perda auditiva.
O questionário foi preenchido sequencialmente duas vezes, uma referente ao período antes da utilização da PA e outra referente ao período com utilização de PA durante pelo menos 3 meses, no mesmo tempo cronológico. Foram ainda calculados os valores médios das respostas referentes aos 2 períodos, antes e depois da utilização de PA.
Os doentes com indicação para PA e que não a adquiriram, responderam ainda à pergunta fechada “Por que não usa PA?”, com as seguintes hipóteses de resposta: “Questões económicas”, “Questões estéticas/vergonha”, “Acho que não preciso”, “Más experiências de amigos ou familiares”.
Os dados foram analisados usando o Statistical Package for Social Sciences (SPSS) versão 28.0 (SPSS Inc, IBM, Armonk, NY). Os dados categóricos foram expressos em números e percentagens e os dados contínuos foram expressos em média, desvio padrão e variação. O teste T de amostras emparelhadas foi utilizado para comparar duas proporções numéricas. Foi considerado um valor de p < 0,05 como estatisticamente significativo.
Resultados
Foram incluídos no nosso estudo 99 doentes, 56 do género feminino (56,5%), com idade compreendida entre os 65 e 88 anos (76,3 ± 6,9 anos). Do total de amostra, 47 doentes utilizavam PA (62% do género feminino) e 52 doentes, apesar de apresentarem indicação, não utilizavam PA (52% do género feminino).
No grupo de doentes utilizadores de PA e após pelo menos 3 meses da sua utilização, a pontuação média do questionário melhorou de 24 (nível médio de perceção de dificuldades auditivas) para 7 pontos (nível baixo de perceção de dificuldades auditivas), demonstrando uma melhoria estatisticamente significativa da qualidade de vida dos doentes (p = .003) - Tabela 1.
Antes da utilização de PA, à pergunta “Por não ouvir bem, vai menos a eventos sociais ou religiosos do que aquilo que gostaria?”, 82% dos doentes responderam “sim” ou “às vezes” e à pergunta “Por não ouvir bem, discute com os seus familiares?” 67% respondeu “sim” ou “às vezes”.
Neste estudo, no preenchimento do questionário, a maior variação das pontuações médias após o uso da PA foi na questão “Por não ouvir bem, tem dificuldades em ouvir a televisão (TV) ou rádio?”. O que significa que com a utilização da PA e consequente melhoria auditiva, estes doentes puderam ouvir rádio ou televisão, permitindo que se sentissem menos isolados e ao mesmo tempo manterem-se culturalmente atualizados e mentalmente estimulados.
A pergunta com menor variação foi “Quando está com familiares ou amigos, num restaurante, sente dificuldades, por não ouvir bem?”, tendo-se mantido com pontuações baixas, provavelmente em relação com o facto de muitos destes doentes mais idosos não apresentarem o hábito de ir ao restaurante.
Questão | Média pré PA | Média pós PA | Diferença |
---|---|---|---|
Quando encontra ou conhece outras pessoas, sente-se embaraçado, por não ouvir bem? | 2,72 | 0,68 | 2,04 |
Quando conversa com a sua família, sente-se frustrado, por não ouvir bem? | 2,57 | 0,74 | 1,83 |
Quando alguém lhe fala muito baixo, tem dificuldade em ouvir? | 2,28 | 0,98 | 1,30 |
Sente-se diminuído, por não ouvir bem? | 2,00 | 0,29 | 1,71 |
Quando visita amigos, familiares ou vizinhos, sente dificuldades, por não ouvir bem? | 2,36 | 0,93 | 1,43 |
Por não ouvir bem, vai menos a eventos sociais ou religiosos do que aquilo que gostaria? | 2,70 | 0,91 | 1,79 |
Por não ouvir bem, discute com os seus familiares? | 2,48 | 0,81 | 1,67 |
Por não ouvir bem, tem dificuldades em ouvir a televisão ou a rádio? | 3,15 | 0,99 | 2,16 |
Sente que a sua vida pessoal ou social esta prejudicada por não ouvir bem? | 2,42 | 0,46 | 1,96 |
Quando está com familiares ou amigos, num restaurante, sente dificuldades, por não ouvir bem? | 1,60 | 0,51 | 1,09 |
No grupo dos doentes não utilizadores de PA, os valores do questionário foram semelhantes aos valores apresentados no grupo de utilizadores de PA no primeiro questionário preenchido antes da obtenção da PA, com uma média de 22 pontos (nível médio de percepção de dificuldades auditivas) - Tabela 2.
Pontuação média do questionário | Pontuação média do questionário com utilização de PA | |
---|---|---|
Utilizadores PA | 24 | 7 |
Não utilizadores PA | 22 | - |
À pergunta de resposta fechada “Por que não usa PA?” 46% responderam “questões económicas”. Dezoito por cento referiu “Questões estéticas/vergonha”, sendo a maioria do género feminino (80%). Dezassete por cento assinalou “Má experiências de amigos ou familiares” e 19% “Acho que não preciso” - Tabela 3.
Discussão
Os nossos resultados demonstraram que a utilização de PA melhora a qualidade de vida dos doentes, reduzindo os efeitos psicológicos, sociais e emocionais da hipoacusia, uma condição de saúde crónica insidiosa e potencialmente devastadora na ausência de intervenção7. De facto, no nosso estudo houve uma melhoria significativa da pontuação da escala HHIE-S com a utilização de PA, representando melhores condições sociais e emocionais na vida destes doentes e que se traduzem numa melhor qualidade de vida, sugerindo que a utilização de PA poderá ter um impacto importante e positivo no processo de envelhecimento como um todo. De facto, uma meta-análise recente evidenciou que os utilizadores de PA apresentam melhores capacidades cognitivas do que aqueles que não usam e concluiu que o tratamento da perda auditiva com PA poderá atrasar os efeitos do declínio cognitivo12.
Apesar do impacto positivo do uso de PA, infelizmente nem todos os doentes tiveram acesso a este tratamento, sendo as “questões económicas” a principal causa referida. É importante alertar para a falta de condições financeiras da população portuguesa e para a lacuna do apoio social numa condição que afeta uma percentagem muito significativa da população e que aumenta o risco de várias doenças, nomeadamente depressão, ansiedade e demência. Segundo o Decreto-Lei n.º 93/2009 de 16 de Abril “. A comparticipação dos produtos de apoio é de 100 %” e “os produtos de apoio são diretamente fornecidos aos utentes, não havendo lugar a comparticipação através de reembolso” (13. O montante das verbas destinadas ao financiamento dos produtos de apoio é fixado, anualmente, por despacho conjunto dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da segurança social, da saúde e da educação13.
No entanto, de acordo com os nossos resultados 46% dos doentes com presbiacusia, apesar de apresentaram um impacto na qualidade de vida igualmente elevado aos doentes utilizadores de PA, não utilizam PA apenas por questões económicas. Estes dados sugerem que as verbas orçamentadas são insuficientes para cobrir atempadamente as necessidades de todos estes doentes, mesmo com prescrição médica e pedido de apoio social. Numa condição com tanto impacto nas condições de vida e saúde destes doentes esta percentagem é, de facto, demasiado elevada para um país desenvolvido como Portugal.
Segundo uma revisão sistemática, o estigma é percebido como um fator importante nas atitudes e opiniões das pessoas em relação à deficiência auditiva e à reabilitação com PA14. De facto, segundo o nosso estudo, 18% referiu não usar PA por “questões estéticas/vergonha”, sendo a maioria do género feminino (80%). Por outro lado, 19% responderam “ainda não preciso”, apesar de existir essa indicação e de muitas vezes os familiares referirem o contrário. Portanto, uma grande percentagem destes doentes não estará a usar PA pelo estigma a estas associado.
Dezassete por cento assinalou “más experiências de amigos ou familiares”. De facto, verifica-se ainda uma grande invasão das diferentes áreas de actuação do Técnico de Audiologia por pessoas não qualificadas academicamente para tal, especialmente a nível de intitulados centros de reabilitação auditiva, onde apenas se efectua a venda a retalho de PA - por falta de legislação e regulamentação de venda como produtos de saúde. Assim, são muitos os doentes que ao tentar diminuir a sua despesa económica com as PA, acabam por ter uma má experiência, generalizando esta falta de eficácia para todos os tipos de PA e contribuindo para a ideia errada da ineficiência destes dispositivos.
Recentemente, em Agosto de 2022, a Food and Drug Administration (FDA) permitiu a aquisição de PA sem receita nos EUA, permitindo a consumidores com mais de 18 anos com perceção de perda auditiva obter PA diretamente em lojas sem necessidade de exames, prescrição ou adaptação por audiologistas. Esta medida teve como objetivo aumentar a competição na indústria para que haja uma diminuição dos preços das PA15. No entanto, apesar de ser importante aumentar a competição na indústria de modo a baixar os preços, é também necessário um maior controlo da qualidade das PA vendidas, pois a má qualidade/adaptação e a confusão destas com aparelhos de amplificação sonora individuais contribuem para um maior número de “más experiências” e consequente falta de adesão. No Reino Unido, os aparelhos auditivos ainda são classificados como dispositivos médicos Classe IIa (médio a baixo risco) e regulamentado pela Agência Reguladora de Medicamentos e Produtos de Saúde. Os aparelhos auditivos são disponibilizados pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) devido a esta classificação. A vantagem é que os aparelhos auditivos como dispositivos médicos fornecidos pelo SNS são gratuitos, assim como as pilhas, reparações e consultas de seguimento. No entanto, o tempo de espera torna-se bastante elevado16.
Com o aumento da esperança média de vida é essencial possibilitar às pessoas mais idosas o acesso a um tratamento com uma contribuição tão significativa para a sua qualidade de vida. Assim, compete essencialmente aos médicos de Otorrinolaringologia, médicos de Medicina Geral e Familiar e Audiologistas alterar o estigma de desvalorização dos benefícios das PA. É importante sensibilizar os doentes e todos os profissionais de saúde do impacto positivo destes aparelhos quando corretamente adquiridos e adaptados, permitindo uma melhor comunicação com os seus familiares e amigos, manter as suas capacidades cognitivas e um bem-estar psicológico essencial para uma boa qualidade de vida. É ainda essencial alertar para falta de condições económicas da população portuguesa e para a lacuna de apoio social numa doença que afeta uma percentagem muito significativa da população e que aumenta o risco de outras patologias como depressão, ansiedade e demência.
Este estudo teve como principais limitações ter sido restrito a uma unidade hospitalar, os questionários relativamente ao período pré e pós utilização de PA terem sido realizados no mesmo tempo cronológico, a ausência de avaliação do grau de hipoacusia dos doentes e o facto de ser uma avaliação subjetiva (qualidade de vida).
Conclusão
O nosso estudo confirmou o impacto positivo do uso de PA na qualidade de vida dos idosos com presbiacusia. A limitação de recursos financeiros próprios para a aquisição das PA foi apontada como o principal motivo pela falta da sua utilização. Deste modo, é essencial a sensibilização dos profissionais de saúde e dos doentes sobre o impacto favorável do uso de PA, bem como um maior investimento no setor social para a reabilitação auditiva dos idosos.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.
Proteção de pessoas e animais
Os autores declaram que os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.