Introdução
A otosclerose é uma doença do metabolismo ósseo que afeta, principalmente, a cápsula ótica. Apesar de na fase ativa estarem presentes lesões otoespongióticas, a fase tardia, inativa, cursa com deposição de osso lamelar.1 É uma doença que pode ser causada por fatores hereditários ou hormonais. Apresenta-se mais frequentemente como surdez de condução, secundária ao desenvolvimento de focos de crescimento ósseo ou fibroso anómalos sobre a platina do estribo, após um fenómeno de reabsorção óssea2. Por vezes, os doentes apresentam-se com surdez mista ou surdez sensorineural (SSN) pura. O efeito da otosclerose na função coclear é controverso na literatura: alguns estudos que demonstraram que não existem alterações histológicas que corroborem a SSN ou que não encontraram uma deterioração sensorineural da audição superior ao expectável para a idade3-5; outros autores, referem que a histologia coclear pode encontrar-se alterada, existindo evidência de obstruções do fluxo endolinfático, degeneração do ligamento espiral, bloqueios vasculares e redução dos potenciais endococleares6-8. Assim, a progressão da osteodistrofia pode levar a SSN ou mista, possivelmente pela deposição de colagénio no ligamento espiral, resultando na sua hialinização9.
A tomografia computorizada (TC) dos ouvidos é utilizada nos casos em que o diagnóstico de otosclerose não é claro e na preparação da cirurgia estapédica. Este exame pode detetar focos de otospongiose ou otosclerose. Alguns estudos sugerem que a gravidade do envolvimento coclear na TC pode correlacionar-se com o grau de perda SSN11,12.
Neste contexto, este estudo tem como objetivo averiguar se doentes com otosclerose e alterações cocleares na TC apresentam pior prognóstico audiométrico após cirurgia estapédica.
Material e Métodos
Foi realizado um estudo retrospetivo dos doentes submetidos a cirurgia estapédica no Hospital Beatriz Ângelo, entre janeiro de 2012 e janeiro de 2022. A cirurgia foi realizada por cirurgiões diferentes. A estapedectomia foi a técnica escolhida por preferência dos cirurgiões. Os doentes incluídos no estudo realizaram TC dos ouvidos e audiograma tonal simples pré- e pós-operatório.
O grau de otosclerose foi classificado de acordo a escala de Symons e Fanning13: grau 1 - lesões escleróticas ou espongióticas meramente fenestrais; grau 2 - doença coclear (com e sem envolvimento fenestral), podendo dividir-se em 2A (envolve a espira basal), 2B (envolve a espira média/apical) e 2C (envolve a espira basal e a apical); grau 3 - envolvimento de toda a cóclea. O grau 2C difere do 3 por apresentar um envolvimento disperso versus confluente contínuo. Por representarem graus de envolvimento coclear, neste estudo optou-se por agrupar os doentes classificados como 2A, 2B, 2C e 3.
Foi definido como sucesso terapêutico, um hiato aero-ósseo no audiograma tonal simples ≤10 dB HL, sem agravamento dos limiares de via óssea14,15. Para cálculo do hiato-aero-ósseo foi utilizada a média tonal simples com as frequências de 250, 500 e 1000 Hz. Foram considerados os audiogramas mais recentes disponíveis.
Resultados
A população em estudo incluiu um total de 46 doentes, 15 do sexo masculino (33%) e 31 do sexo feminino (67%), com uma idade média de 47,5 (± 7,8) anos.
Verificou-se uma taxa de sucesso cirúrgico de 91% (n=42). Em relação à classificação dos focos de otospongiose na TC, os doentes distribuíram-se da seguinte maneira: 7 doentes com grau 0; 32 doentes com grau 1; 7 doentes com grau 2-3. Em todos os doentes nos quais se observou envolvimento coclear na TC, obteve-se sucesso terapêutico após cirurgia.
Focos otospongiose na TC - classificação Symons e Fanning | Doentes com sucesso cirúrgico (hiato aero-ósseo ≤10 dB HL) | |
---|---|---|
Grau 0 | n=7 | n=5 (71%) |
Grau 1 (envolvimento antefenestral apenas) | n=32 | n=30 (94%) |
Grau 2-3 (envolvimento coclear) | n=7 | n=7 (100%) |
TOTAL | N=46 | n=42 (91,3%) |
Os audiogramas mais recentes foram realizados em média 33 meses após a cirurgia, sendo que não houve padronização do tempo decorrido entre a cirurgia e o audiograma utilizado. Verificou-se que a média tonal simples da via óssea (VO) do ouvido operado melhorou, em média, 6,9 dB HL nos doentes sem alterações cocleares, e 6,5 dB HL em média no grupo de doentes com focos cocleares na TC (graus 2-3).
Discussão
A escala de Symons e Fanning apresenta uma alta concordância inter e intraobservador13. Contudo, são poucos os estudos que avaliam a presença de focos de otosclerose coclear na TC, de forma a correlacioná-los com o sucesso terapêutico. Um estudo de Shint et al. que avaliou 437 casos de otosclerose, verificou que cerca de 91% tinham achados de otosclerose na TC, mas apenas 12% apresentavam envolvimento coclear11. Estes valores são semelhantes aos do nosso estudo em que 15% (n=7) apresentou envolvimento coclear (grau 2-3 na TC).
No nosso estudo, apesar do número de doentes com envolvimento coclear ser reduzido, a cirurgia estapédica teve sucesso em encerrar o hiato aero-ósseo em todos estes. Após a cirurgia, existiu globalmente uma melhoria dos limiares de VO (em média 6,9 dB HL). Este “sobrencerramento” está de acordo a literatura, onde cerca de 81-90% dos doentes submetidos a cirurgia, melhoraram os limiares da VO, em valores entre os 2,5 aos 8,3 dB HL16,17. Observámos que os doentes que apresentam doença coclear apresentaram igualmente uma melhoria dos limiares de VO semelhante (6,5 dB HL), para um tempo de seguimento pós-operatório semelhante. Não se verificou uma maior degradação da VO em doentes com otosclerose coclear após cirurgia estapédica.
Neste estudo, verificou-se que a cirurgia estapédica é eficaz no tratamento otosclerose, independentemente da presença de focos de otosclerose na TC. Mesmo no seguimento a longo prazo parece não parece existir uma maior deterioração dos limiares de VO após a cirurgia nestes doentes. Contudo, este estudo apresenta limitações inerentes ao desenho retrospetivo, como o facto de a avaliação audiométrica ter sido realizada em espaços temporais diferentes e pelas cirurgias terem sido realizadas por cirurgiões diferentes. Para além disto, o grupo de doentes com grau 2-3 apresentou um número reduzido, o que não permitiu realizar análise estatística comparativa.
Conclusões
Verificou-se uma alta taxa de sucesso terapêutico da cirurgia estapédica, indistintamente entre as populações com e sem alterações otoscleróticas cocleares na TC. A presença de focos de otosclerose coclear na TC não pareceu influenciar os resultados audiométricos pós-operatórios no nosso estudo. Contudo, futuros estudos com um maior número de doentes deverão ser realizados para confirmar estes resultados.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.
Proteção de pessoas e animais
Os autores declaram que os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.