1. Introdução
A discussão em torno das intervenções em saúde e do seu desenho, não é nova, esta ganha novo protagonismo na era da saúde 4.0 e dos debates sobre a necessidade de centrar o cuidado no cidadão, integrando os cuidados e responsabilizando as pessoas pelos seus processos de saúde-doença, integrados nos projetos de vida de cada um.
Partindo do pressuposto que intervenção em saúde pode ser definida como o conjunto de ações planeadas para prevenir ou reduzir um problema de saúde específico, ou os determinantes do problema, numa determinada população, percebe-se que a intervenção tende a ser orientada de forma a promover uma mudança social-psicológica e individual na população-alvo (Wight et al., 2016).
Face ao exposto o desenho de uma intervenção em saúde é mais do que o passo que ocorre entre a ideia e a conceção de uma intervenção até que esta mesma esteja pronta para a viabilidade formal, teste piloto ou teste de efetividade antes de uma avaliação global (Hoddinott, 2015). Ela deve responder às necessidades da pessoa, suas expectativas e preferências individuais, como defendem as diferentes correntes de Prática Baseada na Evidência (Apóstolo 2017, Canadian Institutes of Health Research, 2014) e os cuidados centrados na pessoa.
O guia do Medical Research Council (MRC), revisto por Skivington et al. (2021) propõe quatro fases no desenvolvimento e avaliação de intervenções complexas: desenvolvimento e identificação, viabilidade e teste piloto, avaliação, e implementação na prática (Skivington et al., 2021). O primeiro passo neste processo é o ‘desenho’ que é quando a «intervenção tem de ser desenvolvida ao ponto em que é razoável esperar que o seu efeito seja efetivo (Hoddinott, 2015). Com alguns autores a advogarem que no desenho da intervenção sejam envolvidas as pessoas, famílias e comunidades (Jesson, & McNaughton, 2020).
Os estudos desta fase podem envolver a avaliação de bases de dados em relação a evidência publicada e pesquisa primária ou atividades prévias com a população alvo. Na prática, o desenho da intervenção é contínuo ao longo de todo o processo, visto que mudanças estão sempre a ocorrer quando uma intervenção está a ser testada, avaliada e implementada (Craig et al., 2008; O'Cathain et al., 2019; Hoddinott, 2015; Skivington et al., 2021).
Os resultados de algumas revisões sistemáticas referem que as intervenções que são desenvolvidas através de um processo sistemático e estruturado como o desenho são mais efetivas na resposta contra problemas de saúde (Garba & Gadanya, 2017; Lamort‐Bouché et al., 2018), pois são fundamentadas na compreensão do problema e projetadas para responder a como esse mesmo problema é vivenciado pela população-alvo no contexto de interesse (van Meijel et al., 2004).
Os estudos sobre a orientação prática para os profissionais de saúde e investigadores que expliquem os estágios essenciais do desenho da intervenção são escassos (Wight et al., 2016). E apesar de haver um acordo generalizado sobre a importância da estrutura conceptual, os investigadores frequentemente preocupam-se mais com a validade interna da experiência do que a construção de intervenções válidas, com envolvimento dos destinatários dos cuidados, até para a compreensão de como a intervenção pode ser adaptada/adequada ao ambiente da prática clínica e ao contexto específico, com os seus determinantes sociais, culturais, económicos e de políticas de saúde (Wight et al., 2016; O'Cathain et al., 2019).
A preocupação crescente em relação ao desenho de intervenções, implica um bom planeamento para aumentar a probabilidade, de essas mesmas intervenções, serem efetivas quando avaliadas e de, eventualmente, serem adotadas na prática (O'Cathain et al., 2019). É impossível falar da integridade das intervenções sem considerar um bom desenho conceptual que sustente a mesma (Muller et al., 2019; Thirsk & Clark, 2017; Renjith et al., 2021).
Tem havido uma procura crescente por novas intervenções, visto que profissionais de saúde lidam cada vez mais com problemas complexos, como a integração da saúde e ajuda social, risco associado ao estilo de vida e o uso da tecnologia e-health (O'Cathain et al., 2019), entre outros desafios. Como tal, antes de implementar as intervenções é necessário garantir a sua qualidade e segurança, visto que um desenho de intervenção precário pode gastar recursos públicos através de avaliações cara e, ou pior, a implementação de intervenções que são ineficazes (Wight et al., 2016; O'Cathain et al., 2019).
Assim, intervenções em saúde devem ser cuidadosamente desenhadas e desenvolvidas de maneira a potenciar a resposta a problemas de saúde (Moore et al., 2019), para que estas sejam ajustadas e eficazes no seu propósito de forma a serem implementadas como planeadas com fim de evitar danos ao doente e comunidade (O'Cathain et al., 2019).
A natureza e força das intervenções de enfermagem são frequentemente questionadas, nomeadamente pelos revisores científicos (Coon et al., 2001). Previamente, a estrutura e os guias para a pesquisa do desenho da intervenção eram baseadas em paradigmas em que a questão de pesquisa era para identificar se a intervenção era efetiva ou não. No entanto, intervenções impulsionadas principalmente por esta questão frequentemente falhavam em serem implementáveis, custo-efetivas, transferíveis e fazíveis na prática (Conn et al., 2001). Por sua vez, a nova estruturação adota uma abordagem pluralista, identificando quatro perspetivas que podem ser usadas para orientar o projeto e condução da pesquisa da intervenção: eficácia, efetividade, base teórica e sistemas. Embora cada perspetiva de pesquisa sugira diferentes tipos de questões de pesquisa, elas devem ser consideradas como sobrepostas em vez de mutuamente exclusivas (Conn et al., 2001). Mudar o foco da “questão binária da eficácia” para se e como a intervenção será aceitável, implementável, custo-eficiente, escalável e transferível por vários contextos ajudou a promover soluções para a prática (Raine, Fitzpatrik & de Pury, 2016).
O desenho da pesquisa para a construção das intervenções em saúde determina, entre outras, a natureza das informações obtidas sobre a mesma (Conn et al., 2001; Moore et al., 2015), por isso a conceitualização cuidadosa de uma intervenção é essencial para uma interpretação confiável do sucesso ou fracasso da mesma (Moore et al., 2021; Muller et al., 2019). A validade inadequada de uma intervenção leva à má interpretação dos seus resultados (Moore et al., 2021; Renjith et al., 2021; Thirsk & Clark, 2017). A ausência de uma estrutura conceitual frequentemente está associada a fracos efeitos da intervenção e à falta de explicações dos processos causais entre a intervenção e os resultados (Moore et al., 2015).
Por exemplo, teorias que descrevem fenómenos em linguagem de enfermagem sem previsões específicas têm uma utilidade limitada na preparação de intervenções e na produção de diferenças mensuráveis nos resultados (Moore et al., 2021; Renjith et al., 2021), mas teorias que fazem previsões específicas têm se provado úteis na construção de intervenções eficazes.
Assim, testar as intervenções com base em vínculos conceituais claros entre a intervenção e o fenômeno levará a um desenvolvimento mais rápido do conhecimento do que os testes de outras intervenções. A falta de relevância conceitual pode atrasar a identificação de intervenções efetivas e, por sua vez, resultar em falta de eficiência no processo interativo de pesquisa e revisão teórica (Thirsk & Clark, 2017).
Face ao exposto é objetivo deste artigo debater o contributo da investigação qualitativa no desenho de intervenções em saúde.
2. Método
Este artigo pretende responder à questão: ‘Quais os contributos da pesquisa qualitativa para o desenho de intervenções na saúde?
A partir da revisão da literatura os autores refletem a importância dos estudos qualitativos para permitir a integração das necessidades, experiências e dificuldades das pessoas em áreas tão complexas como o autocuidado, a mudança comportamental ou adesão ao regime terapêutico. Como advogam Renjith et al, (2021) os métodos qualitativos possibilitam entender o comportamento e as experiências do ser humano. As questões de investigação ‘quali’ são amplamente formuladas sobre as experiências e realidade das pessoas e estudadas em constante interação com o indivíduo, no seu ambiente natural, o que permite a produção de dados ricos e descritivos que nos ajudarão a entender as experiências.
O MRC, nas suas orientações sobre o desenho de intervenções complexas, espelha esta necessidade ao advogarem que novas e melhores metodologias são necessárias no desenho das intervenções para abordar questões importantes, a saber: como funcionam as intervenções? A quem se destinam? Em que circunstâncias são implementadas? E em que contextos? (Moore et al., 2015; Thirsk & Clark, 2017). Esta afirmação é um repto para o uso de métodos para entender aspetos relativos à tomada de decisão das pessoas (quem recebe e quem implementa a intervenção), do contexto, modos de implementação e mecanismos da intervenção e outros elementos das intervenções que não sendo tão observáveis e prontamente mensuráveis, influenciam os resultados sensíveis aos cuidados de saúde.
3. Resultados e Discussão
Internacionalmente há um crescente reconhecimento que os métodos e técnicas qualitativos permitem a compreensão aprofundada das transições de saúde/doença e ajudam na explicitação da implementação e aceitação, ou não, pela população-alvo (Thirsk & Clark, 2017).
O MRC (Moore et al., 2015) nas recomendações para o desenho de intervenções complexas na saúde, encoraja o uso da investigação, tanto quantitativa, como qualitativa, reconhecendo que a metodologia atual, alicerçada sobretudo em métodos de natureza quantitativa fica aquém de explicar de forma abrangente as intervenções (natureza, processos e resultados).
Como observam Thirsk e Clark (2017) as intervenções de saúde precisam ser compreendidas de forma a responder à complexidade dos programas, das pessoas e dos lugares. Para tal, a investigação qualitativa e os esforços de métodos mistos tentam superar os limites da pesquisa baseada em medições. Ao contrário dos métodos quantitativos, o objetivo da investigação qualitativa é explorar, narrar e explicar os fenómenos e dar sentido à complexa realidade (Renjith et al., 2021; Yardley, Bradbury, & Morrison, 2021). As quatro fases no desenvolvimento e avaliação de intervenções complexas, do guia do MRC, revisto por Skivington et al., (2021) podem ser observadas na tabela 1 (Skivington et al., 2021).
Cada uma destas fases tem um conjunto de elementos básicos (Tabela 2) que devem ser considerados desde o início e continuamente ao longo de todo o processo de pesquisa: o contexto, a teoria do projeto, a população-alvo, as principais incertezas, e considerações econômicas. Dentro de cada fase da pesquisa de intervenção e na transição de uma fase para outra, a intervenção pode precisar ser revista com base nos dados colhidos ou no desenvolvimento da teoria do programa (O’Cathain, 2019).
Face às fases e os elementos básicos compreende-se que a investigação qualitativa é útil para o desenho da intervenção e desde o início envolver, ativamente, as pessoas na procura de soluções para as questões de saúde que a preocupam e para a avaliação do processo. Acresce ainda a importância da mesma para o entendimento das questões relativas à implementação, à teorização de mecanismos de ação, à compreensão de como o contexto influencia e a aceitabilidade das intervenções.
Thirsk e Clark (2017) advogam que uma metodologia interpretativa é apropriada para as intervenções complexas, porque as intervenções dos serviços de saúde são representadas como consistentes, objetivas e estáticas, mas na verdade envolvem interpretação na forma como são desenhadas, validadas, implementadas e, adotadas pelas pessoas. Em outras palavras, as intervenções complexas são realmente interpretativas do início ao fim (Thirsk & Clark, 2017).
A abordagem dos cuidados centrados na pessoa implica que os métodos usados no design de intervenções sejam centrados na pessoa através da investigação qualitativa (Muller et al., 2019; Yardley, Bradbury, & Morrison, 2021), que pode ser usada nas diferentes fases do estudo para garantir que a intervenção é aceitável, viável, significativa e envolvente para a(s) pessoa(s) (Muller et al., 2019; Skivington et al., 2021). O próprio movimento de Public and Patient Involvement (PPI) na investigação prevê que o envolvimento daqueles, para quem a intervenção é significativa, possibilita uma compreensão aprofundada das opiniões e experiências de uma ampla gama de consumidores de recursos de saúde e dos contextos (Muller et al., 2019; Thirsk & Clark, 2017), nos quais eles se envolvem com a mudança comportamental, ao autocuidado ou à gestão do regime terapêutico.
O PPI tem implícito que as pessoas participam em todos os estágios do projeto, desde o desenho à interpretação dos resultados. O PPI fornece informações para o desenho das intervenções tal como os outros membros da equipa (Muller et al., 2019). Esta participação ativa e co-construção melhora a priorização dos fenómenos a serem estudados, aumenta a aceitabilidade da intervenção para os participantes e maximiza a qualidade e a disseminação dos resultados (Bonell et al., 2015; Muller et al., 2019; Skivington et al., 2021).
Muller e colaboradores (2019) alertam que o PPI não substitui a investigação qualitativa, ele deve ser envolvido com metodologias de pesquisa participativas, garantindo rigor no processo e a validade dos resultados, dado que a utilização criteriosa dos métodos ditos ‘quali’ permitem examinar o “como” e o “porquê” da tomada de decisão (Renjith et al., 2021).
4. Considerações Finais
Com este estudo pretendeu-se debater sobre os contributos da investigação qualitativa no desenho de intervenções em saúde. Foi possível verificar que a investigação qualitativa tem um papel fundamental na compreensão das expectativas, experiências e comportamentos das pessoas alvo das intervenções, contribuindo desta forma para uma prática baseada na evidência e cuidados centrados na pessoa. Além disso, esta abordagem investigativa vai estar presente em todas fases e nos elementos básicos no desenvolvimento e avaliação de intervenções complexas, garantindo que estas intervenções, quando transferidas para a práticas/implementadas, sejam mais efetivas, seguras, viáveis e aceites.