1. Introdução
Os cuidados de enfermagem em contexto pré-hospitalar correspondem a uma vertente da atividade dos enfermeiros que exige um diversificado e elevado conjunto de conhecimentos, capacidades e competências (Ordem dos Enfermeiros, 2018).
A equipa de emergência pré-hospitalar é, muitas vezes, a primeira ajuda diferenciada a chegar a cenários onde existem circunstâncias que podem condicionar momentânea ou permanentemente a vida das pessoas e suas famílias (Guise et al., 2017). Os cuidados prestados são extremamente desafiantes, uma vez que se desenvolvem em ambientes com condições adversas, com recursos limitados, sob uma tensão que exige intervenção imediata e de qualidade, e da qual está muitas vezes dependente o restabelecimento da vida humana (Gonçalves, 2017). Vários estudos demonstram que os cuidados pré-hospitalares se desenvolvem num ambiente de trabalho no qual os enfermeiros são expostos diariamente a situações psicologicamente desgastantes e/ou experiências traumáticas, por vezes desencadeando emoções fortes e/ou reações de stress (Kravits et al., 2010; Halpern et al., 2012). Este contexto é complexo e imprevisível, incluindo o cuidado de pessoas com patologias agudas que requerem uma avaliação dependente da otimização dos tempos de intervenção e da priorização de cuidados de enfermagem (Wihlborg, 2018).
Os enfermeiros podem considerar o seu trabalho gratificante e sentirem-se satisfeitos, pessoal e profissionalmente, aquando da prestação de cuidados. Contudo, estão largamente documentados na literatura sentimentos como ansiedade, angústia, desgaste físico e emocional resultantes de vivências negativas, ou mesmo sentimentos de impotência e de frustração, por não se conseguirem atingir os resultados esperados e a recuperação do estado de saúde da pessoa em situação crítica (Canas, 2021).
Outros estudos apontam as equipas de enfermagem do pré-hospitalar como propensas a apresentar diferentes problemas de saúde, principalmente aquelas que estão expostas a situações de violência, trauma e as que lidam diariamente com o risco de vida das pessoas alvo de cuidados (Bremner, 2006). Ainda assim, determinados profissionais parecem ser capazes de lidar melhor com estas situações do que outros. Consequentemente, alguns têm a capacidade de desenvolver a sua atividade exposta a situações de impressibilidade durante anos. Outros, abandonam tais profissões no início das suas carreiras e optam por ambientes menos stressantes (Suserud & Blomquist, 2002).
Assim, é essencial que estes profissionais sejam altamente qualificados e adotem estratégias de gestão emocional adequadas às circunstâncias vividas, de forma a manterem e percecionarem uma qualidade e segurança ótimas dos cuidados. A deterioração da saúde mental e do bem-estar emocional dos enfermeiros podem estar relacionadas com estes eventos traumáticos ou emocionalmente sensíveis (Avraham et al., 2014), que exigem uma gestão adequada de modo a não interferirem no desempenho pessoal e profissional e nos cuidados à pessoa e família (Jonsson et al., 2003).
A imprevisibilidade e ritmo acelerado inerente aos cuidados pré-hospitalares, faz com que os enfermeiros frequentemente disponham de pouco tempo para recuperar destas vivências negativas, eventos traumáticos ou situações causadoras de stress (Barleycorn, 2019). Contudo, é imprescindível abordar de que forma reagem às mesmas e o impacto que têm no seu bem-estar emocional e no seu desempenho pessoal e profissional. Assim, surgem aqui os conceitos de inteligência emocional e gestão emocional, este último como parte integrante do primeiro.
A inteligência emocional constitui-se um campo de investigação relativamente recente, que procura ampliar o conceito tradicional de inteligência, abrangendo aspetos relacionados com o mundo das emoções e dos sentimentos (Filipe, 2017). Daniel Goleman advoga que é impossível separar a racionalidade das emoções, sendo estas que fundamentam o sentido da eficácia das decisões, a partir do seu controlo (Filipe, 2017). Trata-se de uma competência fundamental para os enfermeiros, uma vez que para estabelecer uma relação terapêutica é necessário identificar e compreender as próprias emoções, assim como as emoções da pessoa e da sua família. A consciência destas emoções é um elemento importante na otimização dos níveis de desempenho pessoal e profissional e na qualidade dos cuidados prestados. Os enfermeiros devem saber gerir eficazmente as emoções que surgem no contato contínuo com a impressibilidade, a doença, o luto e a morte, de forma a manterem a sua estabilidade e bem-estar emocional (Aradilla-Herrero et al., 2014)
Em 1990, Salovey e Mayer, definiram a inteligência emocional como um conjunto de aptidões relacionadas com a perceção, expressão e regulação das emoções em si mesmo e nos outros. Estas aptidões permitem controlar as próprias emoções e apoiar os outros no controlo das suas, conseguindo, deste modo, assumir com mais propriedade o pensamento e agir de forma regulada diariamente (Queirós, 2020). Os mesmos autores, apresentaram um modelo de inteligência emocional, no qual o processamento de informações emocionais é explicado por meio de um sistema de quatro habilidades/componentes que interagem: a perceção da emoção, a facilitação emocional do pensamento, a compreensão emocional e a gestão emocional (Queirós, 2020).
A gestão emocional, componente em estudo, refere-se à capacidade para regular reflexivamente as emoções em si próprio e no outro, de modo a promover o desenvolvimento emocional e intelectual. Envolve aptidões como: habilidade para estar recetivo aos sentimentos agradáveis e desagradáveis; habilidade para intencionalmente se envolver ou afastar de uma emoção, conforme a sua utilidade; habilidade para regular as suas emoções e as dos outros, de forma clara e assertiva, sem as minimizar ou acentuar; habilidade para diminuir os estados emocionais negativos e incrementar os positivos (Queirós, 2020).
A gestão emocional é considerada um alicerce do desempenho pessoal e profissional, pois as emoções são responsáveis pela adaptação às exigências ambientais, influenciam os processos cognitivos como a perceção, pensamento, tomada de decisão, linguagem, crenças, motivação, aprendizagem, memória, comportamentos, atitudes e intenções (Krikorian et al., 2012). Estas, condicionam de tal forma a vida das pessoas, que o seu percurso diário só é facilitado se adquirirem estratégias de coping eficazes.
O coping define-se como a capacidade de enfrentamento e adaptação que permite ao ser humano agir frente a comportamentos, pensamentos e emoções causados por eventos stressantes. Por sua vez, o stress é definido como qualquer estímulo que tenha origem no ambiente externo ou interno e que exceda a capacidade de adaptação da pessoa ou sistema social. As respostas emocionais são características da reação de stress e levam ao enfrentamento das demandas, por meio de mecanismos de coping. O coping, quando utilizado corretamente, leva à redução, adaptação ou superação do problema. Em contrapartida, quando as estratégias utilizadas não são apropriadas, podem levar a um aumento do nível de stress (Guido et al., 2011).
A este propósito, ainda Daniel Goleman, em 2014, sublinhou que a formação dos profissionais de saúde deveria incluir algumas “ferramentas” básicas de gestão emocional (durante a formação e ao longo da carreira). Se os enfermeiros não possuírem ou não desenvolverem competências nesta área, as consequências das vivências negativas produzirão danos, por vezes irreversíveis, modificando o seu bem-estar e interferindo negativamente com a sua vida e desempenho pessoal e profissional (Pais et al., 2020).
Num contexto onde a função do enfermeiro é preponderante e onde as interações enfermeiro/pessoa/família/cuidador são constantes, o estado emocional do enfermeiro está permanentemente em mutação. A prestação de cuidados de enfermagem, nomeadamente em ambiente pré-hospitalar, coloca os enfermeiros face a situações problemáticas, que se caracterizam pela imprevisibilidade, pela incerteza e pela desordem. Os enfermeiros que possuem sentimentos claros sobre as suas emoções, sobre situações que experienciam e são capazes de lidar com essas mesmas emoções, têm níveis mais baixos de stress no seu local de trabalho. Os que mostram maior capacidade para reduzir os seus estados emocionais negativos e prolongar os positivos, experimentam também níveis mais elevados de saúde global em comparação com aqueles que têm dificuldade em gerir as suas emoções (Augusto Landa et al., 2008).
Entender e gerir as emoções é uma habilidade elementar na enfermagem, sendo requisito profissional da prática humanizada. Posto isto, um enfermeiro com uma inteligência emocional mais desenvolvida exerce melhor as suas atividades, pois é capaz de lidar com as emoções e principalmente com os sentimentos despertados por estas (Carvalho, 2013).
A necessidade de uma gestão emocional eficaz está irrefutavelmente documentada, como acima comprovado, contudo, as estratégias de gestão emocional aparecem muito dispersas na literatura científica. Após uma pesquisa na MEDLINE (via Pubmed), CINAHL Complete (via EBSCOhost), Joanna Briggs Institute (JBI) Database of Systematic Reviews, Cochrane Database of Systematic Review, PROSPERO e Open Science Framework (OSF) constatou-se que atualmente não existem revisões sistemáticas (publicadas ou em realização) com esta temática. Assim, tendo como objetivo mapear a evidência científica relativa às estratégias de gestão emocional utilizadas pelo enfermeiro no pré-hospitalar, realizar-se-á uma revisão da literatura, com as seguintes questões de revisão:
- Quais as estratégias de gestão emocional utilizadas pelo enfermeiro no pré-hospitalar?
- Quais as características das estratégias de gestão emocional que são adotadas pelos enfermeiros no pré-hospitalar?
- Quais as experiências que induzem à utilização de estratégias de gestão emocional nos enfermeiros que trabalham no pré-hospitalar?
Este protocolo de revisão foi registado na plataforma OSF (https://osf.io/z638t - com acesso a 29 de junho de 2023).
2. Método
De forma a dar resposta ao objetivo e questões de revisão optou-se por realizar uma scoping review de acordo com as orientações do JBI. A opção pela scoping review recai no facto de permitir o mapeamento dos principais conceitos que apoiam uma área de conhecimento, ao sumarizar e divulgar os dados de investigação e identificar as lacunas de investigações existentes, fornece uma visão geral da evidência existente (Peters et al., 2020).
Os critérios de elegibilidade foram definidos com base na mnemónica PCC (participantes, conceito, contexto) de acordo com a metodologia proposta pelo JBI (Peters et al., 2020).
Relativamente aos participantes (P), serão considerados estudos realizados com pessoas de ambos os géneros, com a profissão de enfermeiro(a).
No que concerne ao conceito (C), serão incluídos estudos onde estejam explanadas as estratégias de gestão emocional utilizadas, ou seja, todas aquelas usadas para reconhecer, compreender e regular as emoções perante situações psicologicamente desgastantes, experiências traumáticas ou desafiadoras.
Quanto ao contexto (C), serão incluídos estudos onde a prestação de cuidados se remete para os cuidados de emergência realizados fora do ambiente hospitalar.
Relativamente aos tipos de estudos, esta revisão irá considerar estudos quantitativos, qualitativos, mistos e ainda revisões da literatura, dissertações e literatura cinzenta.
2.1 Estratégia de Pesquisa e Identificação dos Estudos
A pesquisa será realizada em três fases. Inicialmente, será realizada uma pesquisa nas bases de dados MEDLINE (via PubMed), CINAHL Complete (via EBSCOhost) e RCAAP, de modo a identificar as palavras mais usualmente utilizadas nos títulos e resumos dos estudos, assim como os termos de indexação. As palavras-chave e expressões de pesquisa utilizadas inicialmente foram: “nurs*”, “emotional management”, “emotional intelligence” e “prehospital”. De seguida, as palavras e termos identificados serão conjugados numa estratégia de pesquisa única, ajustada de acordo com as especificidades de cada base de dados/repositório incluído na revisão. Serão incluídos estudos em língua portuguesa, espanhola e inglesa. Na tabela 1, apresentamos a estratégia de pesquisa para a base se dados MEDLINE (via PubMed), com acesso último a 14 de março de 2023. Para finalizar, a lista de referências de cada trabalho selecionado será analisada de modo a incluir potenciais estudos adicionais.
Na identificação dos estudos, numa primeira fase, serão extraídos os artigos duplicados através da sua exportação para o software Mendeley Desktop. Seguir-se-á a inclusão dos potenciais estudos na plataforma Rayyan onde será realizada a triagem dos estudos de acordo com o título e resumo, de forma a aferir o cumprimento dos critérios de inclusão. Os estudos que cumprirem os critérios de elegibilidade para título e resumo passam então à fase seguinte, que consta da leitura integral do artigo, sendo incluídos aqueles que cumprem todos os critérios e respondem ao objetivo deste estudo. Este processo será efetuado, de forma independente, por dois revisores, recorrendo-se ao terceiro elemento sempre que se verificarem divergências.
Os resultados obtidos com o processo de triagem serão apresentados de acordo com as recomendações do PRISMA Extension for Scoping Reviews (Tricco et al., 2018).
Finalmente, os estudos a analisar serão identificados por código, autor(es)/ano, título, tipo de estudo, objetivo e país de origem, conforme a Tabela 2.
3. Extração de Dados
Os dados serão extraídos com recurso ao instrumento elaborado pelos investigadores e apresentado na Tabela 3. No decurso do processo de extração de dados, o instrumento pode sofrer modificações de acordo com as necessidades de revisão sentidas pelos investigadores, começando por se identificar em cada estudo: a amostra, as estratégias de gestão emocional abordadas e, sempre que possível, as suas características bem como as experiências que induziram a sua utilização. Prevê-se que este recurso forneça um resumo lógico e sintético dos resultados que respondem ao objetivo e questões de investigação.
Durante este processo, os autores dos estudos poderão ser contactados para explicação de possíveis dúvidas ou pedidos de informação suplementar.
O processo de análise e extração de dados será realizado por dois revisores de forma independente. Sempre que surgir alguma questão que possa suscitar dúvidas, a extração de dados é realizada em conjunto de forma a dissipar questões dúbias.
3.1 Síntese de Dados
Para além da apresentação da Tabela 3, os dados serão sintetizados num resumo narrativo com vista a dar resposta ao objetivo e questões de investigação, nomeadamente, as estratégias de gestão emocional abordadas e, sempre que possível, as suas características bem como as experiências que induziram a sua utilização. Todas as tabelas serão narradas, com vista a fornecer uma descrição detalhada ao leitor. Este processo será realizado através do acordo entre dois revisores. Quaisquer divergências serão resolvidas por consenso ou com recurso a um terceiro revisor.
4. Conclusão
O cuidar da pessoa em situação crítica exige do enfermeiro competências que ultrapassam as técnicas e científicas, sendo as competências emocionais fundamentais. O desenvolvimento destas últimas, assume extrema importância para enfrentar situações complexas, na medida em que promovem a regulação, a gestão das emoções e produzem um estado de bem-estar emocional que consequentemente influenciam a prática de enfermagem.
O mapeamento das estratégias de gestão emocional utilizadas pelos enfermeiros do pré-hospitalar, irá contribuir para a disseminação da evidência disponível e tornar-se-á um ponto de partida para a perceção sobre o impacto no bem-estar emocional e no desempenho pessoal e profissional dos mesmos. Espera-se que este Protocolo auxilie a realização de uma scoping review e permita identificar lacunas na literatura com vista à realização de estudos futuros.