Desafiando a inflexibilidade do século XIX: uma proposta crítica de mãos dadas com Hespanha
“Si se não considerar a pretensão do suplicante fundamentada em rigorosa justiça, pelo menos não se lhe poderá negar (entendo eu) o favor outorgado pelos dictames da equidade, para merecer a atenção e benigno acolhimento do governo imperial”.1
Ao contrário do que se poderia imaginar, este trecho não foi retirado de um manual de direito comum do Antigo Regime, nem de uma obra de filosofia do direito natural, ou mesmo de uma discussão política. Este pertence a um parecer do Procurador da Coroa apresentado ao Conselho de Estado brasileiro em 1861. Evitemos pormenores do caso concreto, uma discussão arrastada sobre vencimentos de aposentadoria. A questão que primeiramente emerge é outra: de que modo, no século do legalismo, na era do código (Grossi, 2016, p. 135), os “corifeus” da lei brasileira ousavam falar em equidade?
A equidade, um caminho para a flexibilidade, é um mecanismo típico do direito medieval e do Antigo Regime, já o disse António Manuel Hespanha (2002, p. 1194; 2015, p. 168). Mas estaria ela - e outras construções elásticas, como a graça e o pluralismo jurídico - confinada a esses limites temporais? A citação que mostrámos sugere ter havido alguma continuidade do instituto no contexto administrativo brasileiro do século XIX. Mas em que termos?
As lentes de leitura de Hespanha (2015) podem ajudar-nos. A sua proposta de uma história do direito crítica inclui um esforço incessante de desconstrução de mitos jurídicos - um dos quais é, precisamente, o culto da legalidade. Consolidado no século XIX, com a primazia do liberalismo, esse legalismo é frequentemente retratado sem lugar para transições ou nuances. A nossa aposta é contrapor a essa narrativa uma história das flexibilidades do direito de matriz descontinuista, isto é, atenta a rupturas, à alteridade e à complexidade do passado.
Assim, por um lado, defendemos que o cenário jurídico - e, em particular, administrativo - do século XIX não foi dominado inteiramente pelo “governo da lei”. Por outro lado, estamos cientes de que os mecanismos de flexibilidade oitocentistas não estavam em estrita continuidade com os seus “gémeos” medievais e da primeira modernidade, embora houvesse uma certa partilha terminológica e/ou normativa. O crucial não é a palavra, mas quando e como ela é utilizada. Afinal, “[s]e os sentidos (ou os valores) são relacionais, estando sempre ligados com os seus contextos, qualquer mudança no contexto do direito corta-o da tradição prévia” (Hespanha, 2015, p. 29). Investigamos, deste modo, o que torna específicas (e aceitáveis) as ideias de flexibilidade jurídica durante o século XIX.
Debruçámo-nos sobre o período de ascensão do direito administrativo no Brasil.2 Essa disciplina surge no princípio do século, em contraste tanto com a tradição cameralística - que propunha apenas a regulação interna das atividades estatais - quanto com a retórica liberal dos direitos (Hespanha, 2005). A mentalidade das grandes revoluções setecentistas havia legado à cultura jurídica uma disposição de respeito pela soberania popular - cuja expressão por excelência era a lei. Mas a crescente e amorfa massa normativa produzida pelo Estado abundava em contradições e lacunas. Isso estimulava, em primeiro lugar, a intromissão dos administradores, apoiados na ciência da administração (Hespanha, 2005, p. 124) e na avaliação das situações concretas e, em segundo lugar, a produção intelectual dos juristas. Dessa forma, ao organizar a legislação disponível, a doutrina assumiu um papel central na formação do direito da administração pública (Mannori, 2010; Sordi, 2014; Bell, 2018). Ademais, ela possibilitava a intervenção pública dos juristas , conferindo-lhes capital simbólico na disputa sobre quem devia dizer o direito (Hespanha, 2008).
As nossas fontes são a expressão dessa criatividade doutrinária. Trata-se de pareceres do Conselho de Estado brasileiro durante o Segundo Reinado (1841--1889). Corte superior administrativa e órgão consultivo do imperador, o Conselho era responsável por interpretar, a partir de dúvidas e casos concretos, o direito vigente para a administração num âmbito secular e eclesiástico. Não por acaso, Pimenta Bueno (1857, p. 286) atribuiu-lhe o papel de estabilizar e uniformizar a administração do país. A historiografia vai em sentido semelhante, ressaltando o caráter conciliatório e politicamente centralizador do Conselho (Rodrigues, 1978; Carvalho, 2003; Martins, 2006). Em termos procedimentais, o órgão operava em plenário ou em quatro secções especializadas: Império, Justiça e Estrangeiros, Fazenda e Guerra e Marinha. Os conselheiros, nomeados vitaliciamente pelo monarca, eram selecionados da nata política e económica do país, muitos deles com experiência prévia em cargos administrativos.
O prestígio dos pareceres do Conselho de Estado fez com que os estudiosos divergissem quanto ao caráter da interpretação levada a cabo pelo órgão. Alguns defendem tratar-se de interpretação doutrinária - um recurso particularmente valioso não só aos funcionários da administração, mas também ao poder judiciário, que à época não tinha apoio interpretativo do Supremo Tribunal de Justiça e, ao mesmo tempo, era obrigado a lidar com um vasto corpus de legislação, além de regulamentações de publicação quase diária do poder executivo (Lima Lopes, 2010). Já outros historiadores apontam, ao menos em alguns casos, para uma interpretação autêntica disfarçada, por meio da qual o poder executivo teria tentado subrepticiamente assumir funções do poder legislativo (Lobo, 2018).
Independente da resposta, há consenso na literatura de que a atividade interpretativa do Conselho de Estado foi um marco da cultura jurídica brasileira oitocentista. Mesmo sem força de lei, na maioria das vezes os seus pareceres foram confirmados pelo imperador, por meio de resoluções.3 Ademais, as opiniões dos conselheiros tiveram influência suficiente para justificar a publicação de numerosas compilações.4 Por esses fatores, percebe-se bem que a atividade interpretativa do Conselho de Estado era mais qualitativa do que quantitativa. Os seus pareceres possuíam um grande valor enquanto casos exemplares para outras instâncias de decisão e administração (para não usar a perigosa palavra precedentes).
Tendo em vista essa dinâmica de atuação, apresentaremos três mecanismos de flexibilização - equidade, graça, e pluralismo -, que foram utilizados pelo Conselho de Estado para compensar dificuldades como a insuficiência e defeitos da legislação, para além da incerteza em contexto administrativo. Vejamos, então, como funcionava esse corpo compósito que era o direito administrativo oitocentista, híbrido e fecundo de legalismo e ponderação casuísta.
A equidade contra a insuficiência legislativa: regulação do funcionalismo público
Vimos que os conselheiros usavam a ideia de equidade nas suas decisões. Mas, depois de algumas páginas de suspense, a dúvida continua: o que era para eles a equidade?
Os juristas brasileiros insistem em uníssono na dificuldade de definir esse conceito. São igualmente unânimes em colocar a relação com a lei ou a justiça como o problema capital da filosofia da equidade. Mas a sua visão do instituto muda. A posição inicial, representada por Pereira e Souza (1825, 1, p. 440), afirma que o espaço da equidade é a generalidade da lei - esta é projetada para tratar o comum dos casos, mas, em circunstâncias específicas, a sua aplicação pode tornar-se injusta. Nesses momentos, a norma deve ser subvertida para atingir a justiça. A equidade e a lei, nessa visão, são dois caminhos diferentes que apontam para a mesma direção: o justo. A equidade, então, é a lei “adoçada” (Borges, 1856, p. 146), “moderada” (Pinto, 1832) ou “temperada” (Silva, 1789, p. 728). Uma visão pouco habituada ao espírito legalista que domina os juristas oitocentistas; afinal, uma lei que pode ser flexibilizada quando o juiz assim o entende é uma lei frágil - desmoralizada, talvez. Daí que, na segunda metade do século, o campo da equidade diminua - ao menos na literatura teórica. O compêndio de hermenêutica de Paula Batista (1872, p. 20), por exemplo, rejeita as ideias da equidade como “harmonia”, “mitigação da lei escrita” e “benignidade”, dizendo que ela é, na verdade, a “subm[issão] por um modo esclarecido à vontade suprema da lei para não cometer em nome dela injustiças” -, mas só “no silêncio, dúvida ou obscuridade das leis escritas”. O caminho completa-se com Teixeira de Freitas (1882, p. 69) e José Rubino de Oliveira (1884, p. 69): “não h[á] maior equidade que a lei”.
A justiça, por sua vez, é definida pelos brasileiros em consonância com Ulpiano: dar a cada um o que é seu (Teixeira de Freitas, 1882, p. 136-137). Mas quem define o seu de cada um é a lei: a justiça torna-se uma mera ratificação da legalidade (Cappellini, 2010). Basta lembrar que a “injustiça notória”, um dos fundamentos para a cassação de sentenças pelo Supremo Tribunal de Justiça, correspondia a erros de aplicação do direito (Slemian, 2017; Campos, 2019). Outra prova eloquente do legalismo da justiça está nas escadarias do edifício sede da antiga Secretaria da Segurança Pública de Minas Gerais em Belo Horizonte, construído em princípios do século XX; num dos seus vitrais, a tradicional imagem da justiça com a balança recebe o nome de “Lei”.
Os administrativistas brasileiros tinham uma visão com mais nuances. Os seus manuais diziam que o direito administrativo e o direito privado se submetiam a lógicas distintas, mas divergiam entre si sobre qual seria a diferença relevante. A maioria dos juristas seguia o Visconde do Uruguai (1862, pp. 34-35), para quem “a administração (…) atende á equidade, ás circumstancias, tempos, lugares e interesses, e não póde deixar de ter, até certo gráo, e estabelecido pelas leis, um certo poder discricionário”. Já “as leis civis só atendem, ás regras positivas de justiça, reconhecem e consagram direitos rigorosos e absolutos” (Furtado de Mendonça, 1865, p. 20); por isso mesmo, os juízes só poderiam julgar “pelos termos estrictos da lei, (…) sem attender ás consequencias que delas possão provir, sem odio, sem temor e sem piedade” (Ribas, 1866, pp. 78-79). Essa repartição tinha raízes nos tempos da monarquia absoluta, embora com outros significados.5 Essa era a visão maioritária (Veiga Cabral, 1859, p. 13; Rego Barros, 1874, p. 31), mas alguns juristas tinham posturas diferentes.6
Esses juristas aderem à equidade, entretanto, não em deferência para com os administrados. Lembremos, com Hespanha, que a segunda metade do século XIX é marcada pela construção doutrinária das tecnologias conceituais da intervenção, como a supremacia do Estado, o interesse público, a desapropriação etc. Com isso, a posição do particular é rebaixada. Rego (1860, p. 81), por exemplo, afirma que, quando a administração julga o particular, a lei deve ser temperada não pela equidade, mas pela “conveniência pública”; Ribas (1866, p. 78-79) insiste em que ela deve obedecer ao “interesse geral”. Portanto, a flexibilidade que estes autores apregoam dobra as amarras da lei para permitir que o Estado aja em conformidade com os desafios particulares de cada intervenção realizada na sociedade.
No final do século XIX, a equidade assemelhava-se cada vez mais ao sentimento de justiça e, portanto, à vontade individual; daí que alguns juristas no âmbito europeu admitissem que apenas o legislador devesse usar esse instrumento. Nas mãos do juiz, a equidade era mero arbítrio (Latini, 2006, 607-611); por isso, muitos diziam mesmo que a equidade não pertencia ao mundo jurídico e se opunha ao direito positivo (Grossi, 2000, p. 140-146). É nas primeiras décadas do século XX que a questão social leva a uma menor confiança no código e estimula os juristas a trabalhar mais livremente com as normas; a equidade, nesse contexto, assemelha-se aos princípios gerais do direito (Latini, 2006, p. 613). Entre os administrativistas, a dita justiça do caso concreto era vinculada à legalidade. Para Cammeo, na Itália, a equidade administrativa significava que a administração devia usar o meio menos grave para fazer prevalecer o interesse público sobre o particular; ou seja, era um controlo, realizado por meio de recurso, sobre o exercício de poder dentro da esfera delimitada pela lei (Merusi, 1993). Ou seja, mesmo no século XX, a equidade subordina-se aos ditames do legislador.
Mas, no século XIX, a equidade que se procurava - quando se procurava - não servia para mitigar os rigores da lei e favorecer o cidadão, mas para dar liberdade ao Estado e permitir a atuação administrativa. Ou seja, se os filósofos do direito passaram a insistir na equivalência entre equidade e lei como aceno à legalidade, os administrativistas admitiam uma legalidade mitigada por uma “equidade” que dobrava os rigores da lei aos interesses do poder público - o que Sordi (2018) chama de legalidade-poder. A oposição à codificação administrativa nesse período, por exemplo, resulta da desconfiança da doutrina da possibilidade de se “codificar a prudência” e controlar a atuação do Estado por regras rígidas e imutáveis (Mozzarelli, Nespor, 1976). Isto é um reflexo da separação rígida entre os poderes, preconizada pelo liberalismo: uma lei excessivamente inflexível tolheria a independência e a força do executivo.
Mas a história era outra nos tribunais. Olhemos para algumas decisões do Conselho de Estado para perceber como se aplicava efetivamente a equidade.
O primeiro tipo de uso da equidade que encontrámos foi a flexibilização de leis com exigências rigorosas para dar um tratamento mais leve a pessoas desamparadas; vimos pelo menos dois soldados e dois ex-voluntários da pátria7 nessa situação. É o caso da resolução n.º 26 de 13 de março de 1874 da Secção da Guerra e Marinha: o ex-soldado Henrique José Pedro não pedira a guia com os seus créditos logo depois da baixa do serviço militar e, por isso, estes prescreveram. Ainda assim, pediu para ser pago. A secção considerou que “a ignorancia do supplicante e a sua condição de pessoa quasi desamparada o escusam (e aí entra a equidade) de não ter usado desse meio” (Silva, 1887, p. 114; parênteses nossos). Poucos anos depois, a Secção de Fazenda do Conselho tomou uma decisão semelhante: “Ha casos em que o summum jus vale summa injuria, em que razões de manifesta equidade para com pessoas miseráveis, que serviram ao Estado, e considerações de ordem política e previdente, repugnam com o rigor fiscal a respeito de quantias insignificantes” (Conselho de Estado, 1876, p. 100).
A mesma lógica aplicava-se a mulheres que pediam pensões, meio-soldos ou montepio (espécie de previdência particular concedida pelo Estado) após a morte dos maridos, pais ou filhos. Nesta sociedade patriarcal, uma viúva estava automaticamente numa posição fragilizada; mais ainda quando devia sobreviver com os reconhecidamente baixos salários de militares. Por exemplo, a mãe de Maria Fernandes da Silva tinha direito a uma pensão pela morte do marido, mas faleceu antes de receber os valores. Apesar do ordenamento jurídico mandar que o benefício passasse a ser pago a Maria Fernandes apenas a partir da data da morte da mãe, a Secção de Fazenda do Conselho de Estado autorizou o pagamento retroativo no momento da morte do pai “por equidade” (Resolução n.º 961 de 27 de setembro de 1871; Conselho de Estado, 1874, p. 27). Noutros casos, flexibilizava-se a acumulação de diferentes benefícios. Laura de Assunção Calado, por exemplo, conseguiu acumular uma pensão porque a lei proibia que fosse paga juntamente com um meio-soldo, mas recebia um montepio. Ou seja, podendo decidir em favor do Estado, o Conselho preferiu favorecer o administrado: “As leis devem sempre, e principalmente no caso de dúvida, ser interpretadas de modo mais benigno; assim o aconselha a equidade, e quer a boa razão” (Resolução n.º 1236 de 17 de julho de 1880; Conselho de Estado, 1884, p. 99)8. Era exatamente o contrário do que os manuais de direito administrativo defendiam.
O segundo tipo de uso da equidade procurava corrigir insuficiências da legislação sobre funcionários públicos, que tratava cada grupo de uma maneira distinta. Por exemplo: em 1872, o gravador de oficina tipográfica Leonídio José da Costa pedia para ser dispensado do serviço com vencimentos - algo próximo do que hoje chamaríamos de aposentadoria. Entretanto, a Secção de Guerra do Conselho de Estado lembrou que a legislação vigente conferia esse direito apenas a mestres, contramestres, mandadores e operários de oficina em avançada idade ou com doenças adquiridas no trabalho. Não se falava em gravadores. O Visconde de Muritiba, entretanto, argumentou que era “de equidade a pretensão do supplicante, de conformidade com o costume sempre observado como regra da administração publica, constituindo por assim dizer direito consuetudinario, para não deixar na miséria os operarios empregados por longuíssimo tempo no serviço do estado” (Resolução n.° 42 de 27 de fevereiro de 1875; Silva, 1877, p. 211). O imperador acatou essa visão e, pela insuspeita porta da equidade, o costume9 pôde entrar subtilmente na antessala do direito administrativo.
Poderíamos lembrar outros casos,10 mas o importante é notar que, em todas essas situações, vemos funcionários públicos tratados pela lei de forma diferente dos seus colegas sem justificação. A igualdade é o núcleo da equidade e, precisamente por isso, utiliza-se para flexibilizar a lei e uniformizar o tratamento dispensado pelo Estado aos seus servidores. É o que disse o senador Vieira da Motta quando discutiu aposentadorias no parlamento: “nós nada temos de fixo e assentado; á proporção que se vão creando os empregos e reformando as repartições, vamos estabelecendo novas regras, novos principios e assim é que, em vez de uma lei geral, temos para cada classe de empregados regras diversas para a aposentadoria” (Senado Imperial, 1874, p. 340). A formação aluvial da legislação administrativa era inimiga do sistema e induzia sérias distorções. Os administradores tinham a missão de ordenar e racionalizar essa massa normativa deficiente - e a equidade era um instrumento útil nessa difícil missão.
O terceiro e último tipo de uso da equidade era a revisão das decisões passadas. O alferes Antônio de Bastos Varella foi duas vezes examinado por juntas médicas e considerado inapto para o serviço; por isso, foi reformado (aposentado). Entretanto, uma terceira revisão mostrou que melhorara significativamente, e poderia voltar ao trabalho: algo impossível pela legislação, que não previa a revogação de reformas. A Secção de Guerra e Marinha decidiu que “entender-se neste caso tão restritamente a letra da lei de 1841, que deixe sem pronto remédio a injustiça procedente de uma omissão, da qual não teve o suplicante a menor culpa (…) seria levar-se o rigor da interpretação literal até ao ponto de torna-la iniqua, e muito bem cabida a aplicação do - summum jus, summa injuria” (Consulta n.º 69 de 12 de outubro de 1870; Silva, 1885, p. 329). À época, faltava uma teoria do ato administrativo. Atualmente, poderíamos dizer que um dos elementos do ato - a motivação - havia desaparecido com a terceira inspeção; a administração, então, poderia revogá-lo do ofício. Mas, com uma reflexão ainda insuficiente, nem a doutrina nem a legislação administrativa forneciam esses instrumentos. Por sorte, havia a equidade.
Digamos, então, que nem sempre a administração obedecia aos administrativistas: as vozes do passado ou as insistências dos filósofos contemporâneos eram ouvidas com mais força. Ainda que esta pesquisa não seja exaustiva - trouxemos apenas alguns exemplos, sem analisar sistematicamente as práticas do Conselho -, pudemos ver que a Secção de Guerra e Marinha e a Secção de Fazenda usavam a equidade para suprir insuficiências da legislação em momentos nos quais a injustiça resultante da letra da lei atingia níveis clamorosos. Preservam-se muitos sentidos do antigo regime: a noção de que a equidade privilegia a leitura mais benigna da lei e favorece os mais necessitados apareceu mais de uma vez. A referência à igualdade também. Mas a categoria da equidade também ganha sentidos novos quando passa a referir-se à ordem e à racionalidade: agora, está subordinada ao sistema. Por mais que guie os olhares do administrador para o caso concreto, fá-lo sempre para dar completude ao ordenamento jurídico-administrativo, cujas leis ainda tinham as vistas curtas. Quando a lei trai a lógica, o administrador tem o dever de restituir a coerência ao direito. Equidade, lei, sistema: o direito administrativo brasileiro gerou uma instigante e inaudita amálgama.
A graça contra a imperfeição das leis: o perdão das penas
O imperador podia perdoar e moderar as penas dos réus condenados por sentença - é o que dizia o art.º 101, § 8 da Constituição de 1824. O leitor talvez se pergunte o que faz uma prerrogativa do poder moderador num texto sobre a administração. Mas, se no esquema da tripartição dos poderes, a graça11 está longe da concessão de aposentadorias, na prática administrativa do Segundo Reinado partilhavam uma afinidade irresistível. O perdão das penas é pensado por Pimenta Bueno (1857, p. 213) como uma das atribuições do poder moderador relativamente ao Judiciário: este entrava na economia do controlo dos juízes. Lembremos que, nessa época, os magistrados eram nomeados pelo executivo, e a sua independência era mais ténue do que hoje em dia. A graça ajustava a administração da justiça; e administração, aqui, no sentido próprio de poder executivo. Esta permitia que os processos passassem pela estrutura governamental, incluindo o Conselho de Estado, antes de chegar ao imperador. Ademais, há vários casos registados de perdões de multas administrativas,12 o que era visto como anómalo pela doutrina (Bandeira Filho, 1878, p. 58).
Uma análise de coletâneas de decisões do Conselho de Estado (Caroatá, 1884; Silva, 1885, 1887) e das suas atas (Rodrigues, 1973-1978) revela que o uso da graça permitiu ao imperador interferir amplamente em diversos assuntos da administração da justiça justamente com vista a efetivar a equidade adequando a lei ao caso concreto. Essa análise já se aprofundou noutra pesquisa,13 de modo que aqui vamos sublinhar apenas alguns aspetos mais gerais.
Para os juristas brasileiros, perdoar tinha sobretudo três funções: conciliar a lei geral com a justiça concreta, recompensar a expiação da culpa e corrigir falhas específicas do ordenamento jurídico.14 A primeira e a última interessam-nos mais. A ideia de harmonizar um direito excessivamente genérico com as exigências da realidade prática lembra muito os debates da secção anterior; de facto, Pimenta Bueno (1857, p. 213) ressaltou que “os ditames da equidade a defenderão [a graça] sempre”. Para esses juristas, a lei projetava-se para tratar da generalidade dos casos, mas relutava em olhar para aquilo que era único ou restrito. O perdão, então, permitiria que o imperador tivesse em conta circunstâncias muito particulares que o legislador hesitaria em imaginar. Já as falhas específicas do ordenamento jurídico a que nos referimos eram o prazo curto para o recurso de revista e a dureza da Lei de 10 de junho de 1835, sobre crimes cometidos por escravos contra os seus senhores. A graça permitia que o imperador admitisse uma nova prova depois do prazo restrito de dois anos marcado na lei para corrigir uma sentença injusta, ou que flexibilizasse uma condenação excessivamente dura pela Lei de 1835.
Os exemplos são múltiplos. Um cidadão, por exemplo, ficou mais de 30 anos à espera da sua execução e foi perdoado porque o imperador considerou conjuntamente com o Conselho de Estado que já sofrera demais; no caso concreto, então, seria justo que fosse libertado, a despeito do que dissesse a generalidade das leis (Rodrigues, 1973-1978, v. 2, p. 123). Os casos de escravos que usaram a graça como o recurso de revista a que não tinham direito são inúmeros, e podemos apenas remeter às compilações de época.15 A graça também foi utilizada ex officio, particularmente em momentos de grande comoção política aliada à ausência de regulamentação de lei geral, que foi o caso do julgamento e prisão de bispos durante a Questão Religiosa dos anos 1870.16 Por fim, após 1876, o imperador passou a comutar todos os casos de sentença capital noutras penas, levando à abolição prática da pena de morte (Ribeiro, 2005; Pirola, 2015). Este proceder originou várias reações e foi considerado anómalo;17 de qualquer forma, o imperador observou na lei uma imperfeição genérica - a desumanidade absoluta da pena de morte - que precisava de ser corrigida pela graça.
Em resumo, a graça flexibilizava o direito penal e o direito administrativo para compensar a imperfeição das leis. Imperfeições de duas ordens, segundo Brás Florentino Henriques de Souza (1864, p. 249): a imperfeição dos homens que faziam as leis, essas naturalmente falíveis; e a imperfeição dos homens que aplicavam as leis, perpetuamente suscetíveis de errar.
O pluralismo normativo e jurisdicional contra as incertezas da administração eclesiástica: exercícios de interpretação
A administração eclesiástica no Brasil Império foi, sem dúvida, o ramo administrativo que mais escapou àquilo que Hespanha (1996) denomina “ paradigma estatalista”. Não apenas gozou (e sofreu) da pluralidade de normas jurídicas que podiam ser utilizadas em situações concretas como foi efetivamente conduzida por diferentes jurisdições. A participação do Conselho de Estado nos negócios eclesiásticos justificava-se pela relativa continuidade do sistema de padroado na orientação das relações entre poder secular e autoridade eclesiástica. Dizemos “relativa continuidade”, pois tal padroado espelhava-se no antigo modelo português, mas, ao mesmo tempo, adaptava-se às condições do constitucionalismo liberal.18 Neste sistema, o imperador detinha uma série de direitos/deveres como patrono da Igreja brasileira. A apresentação dos bispos, o provimento de benefícios, o sustento do clero, a proposta de novas dioceses - tais eram as tarefas que o monarca realizava com auxílio da malha administrativa do poder executivo. A sua atuação não era monopolizadora, mas parte de um sistema orgânico de governança da Igreja, que envolvia outras jurisdições, como a episcopal, a metropolitana e a Santa Sé.19
No campo normativo, a administração eclesiástica, de modo mais radical do que a secular, não podia recorrer a um conjunto unitário, sistemático ou estritamente nacional de leis. A conceção de direito eclesiástico então dominante na doutrina e na práxis tendia ao sincretismo, ou seja, a privilegiar mais o tema do que a origem das normas.20 Sob o rótulo “ius ecclesiasticum” reuniam-se corpora normativos advindos de diversos contextos históricos e institucionais, referentes a espaços muitas vezes não equivalentes ao território brasileiro. O direito canónico era o principal exemplo de corpus que não seguia a lógica das fronteiras nacionais. E, ao lado dele, colocava-se uma série de outras normas com diferentes alcances e trajetórias. Deste modo, assuntos como concursos para paróquias ou obrigação de residência podiam ser orientados por corpos normativos temporalmente longínquos, como o Concílio de Trento, ou alvarás do antigo regime português; ou por normas mais recentes, como leis e decretos esparsos brasileiros, ou constituições pontifícias e jurisprudência da Cúria Romana.
Com tantas cartas disponíveis para o jogo administrativo, detinham um papel de destaque as instituições que proviam interpretações de autoridade, como o caso do Conselho de Estado, principal auxiliar do patrono. A atividade deste órgão em matéria eclesiástica reflete bem a tentativa de, na ausência de códigos ou concordatas, mitigar incertezas através do labor interpretativo sobre um cenário pluralista.21 Trata-se de um trabalho artesanal, sincrético, que por vezes envolvia a atitude humilde de escuta das demais jurisdições.22
O nosso primeiro exemplo envolve tanto pluralismo normativo quanto jurisdicional. Em 1864, chegou à Secção de Negócios do Império do Conselho de Estado um ofício do vigário capitular da diocese de Olinda, solicitando um exame da validade dos últimos concursos para paróquias presididos pelo finado bispo (Arquivo Nacional, 1864). O vigário capitular alegava que, ao dispensar a comissão de examinadores após as provas de intelecto, avocando para si a avaliação moral dos candidatos, o bispo teria divergido do exame unificado requerido pelo Concílio de Trento e por decisões pontifícias, invalidando os concursos. O Conselho de Estado, na voz do Marquês de Olinda, relator, reconheceu que, de facto, o ato do bispo não se alinhava com os referidos conjuntos normativos, mas, em vez de opinar prontamente pela nulidade, propôs outra interpretação da situação. O conselheiro apontou que a disciplina do Tridentino era diferente em algumas Igrejas do Brasil, “se não em todas, com certeza nas da Bahia e Rio de Janeiro”, onde procedia como o bispo pernambucano. Tendo isto em conta, confessou o relator que “faltavam-lhe os dados necessários” para apreciar a regularidade dos concursos de Olinda, afinal o finado bispo bem podia ter-se orientado por disciplina especial da diocese, desconhecida pelos conselheiros. O pluralismo normativo aparece, assim, de modo bastante claro nos arranjos possíveis entre normas universais de direito canónico e práticas locais. Mas o relatório do Marquês de Olinda toca também o pluralismo jurisdicional, pois, primeiramente reconhecendo a ignorância, a insuficiência do Estado, abre-se a uma atitude de escuta dos outros níveis jurisdicionais, neste caso, as dioceses. O parecer finda com um alerta para maiores esclarecimentos: o Conselho sugere que o governo seja informado tanto da totalidade dos exames conduzidos em Olinda quanto das práticas diocesanas de todo o país em matéria de atribuição de nota em concursos. O Conselho, em suma, deixa bastante claro que, num cenário de múltiplas normas e usos, necessita da contribuição de outras jurisdições para bem decidir.
O pluralismo normativo que apontámos observa-se em diversos outros casos. Quanto a concursos eclesiásticos, chama a atenção o recurso reiterado ao Concílio de Trento e ao Alvará das Faculdades (1781) nos pareceres. Soa, com efeito, bastante curioso que até nas raias da república a maioria dos conselheiros tivesse por paradigmático um alvará que, vindo do Antigo Regime português, perdera a sua validade antes da independência do Brasil.23 Tais eram as lógicas movediças, peculiares, do pluralismo normativo. Mas, para além disso, é interessante notar que as relações entre os dois conjuntos normativos, Trento e Faculdades, alteraram-se com o tempo: até à década de 1860, eram percebidos pelo Conselho de Estado como complementares ou, pelo menos, não opostos, ao passo que, a partir da década de 1880, após o trauma da Questão Religiosa, foram interpretados como excludentes, ou atinentes a diferentes jurisdições (Trento, enquanto parte do direito canónico, sendo colocado fora do alcance interpretativo do Conselho de Estado). Estas mudanças mostram que a pluralidade de normas jurídicas era arranjada e rearranjada segundo convenções normativas que estavam para além do direito, convenções que, definindo quais deveriam ser as relações entre normas jurídicas e jurisdições, vinculavam-se a fatores políticos, ideológicos, teológicos, necessidades concretas, eventos pontuais etc.24 Considerando este aspeto, abre-se a possibilidade de falar não só em pluralismo jurídico, i. e., um pluralismo confinado ao âmbito do direito, mas em multinormatividade.25
Porém, a governança não se desenvolveu apenas através de normas de séculos passados. Por vezes o Estado tentou introduzir, na sua relação com o clero nacional, regras civis que mimetizassem e/ou complementassem leis canónicas, tal inserção sendo fundamentada por argumentos típicos da administração secular. Um exemplo oportuno é o dever atribuído a bispos e demais beneficiários de comunicar à autoridade secular, ademais da eclesiástica, caso fossem ausentar-se da diocese ou paróquia onde residiam. Este dever, deduzido de diversos atos administrativos do início do período imperial, figurava, por assim dizer, como o “gémeo estatal” da obrigação de residência prescrita pelo Concílio de Trento (cf. Sessão 6, De residentia, Capítulo 1; Sessão 23, De reformatione, Cânone 1). O Conselho de Estado, em parecer de 1865, endossou o paralelismo.26 E justificou a versão estatal da regra pelo caráter misto das funções desempenhadas pelo clero, algumas delas civis (organização das eleições políticas), outras com efeitos civis (casamento). Tal mistura teria equiparado os sacerdotes a empregados públicos, ou pelo menos teria feito com que partilhassem certas obrigações da categoria, entre as quais, a sujeição à fiscalização estatal. Em 1863, o Marquês de Olinda, então presidente do Conselho de Ministros e Ministro dos Negócios do Império, havia posto a questão em termos mais crus ao recordar o direito do governo civil de “fiscalizar a efetividade do serviço retribuído pelos cofres públicos”, referindo--se à côngrua paga pelo Estado aos sacerdotes (Ministério do Império, 1863, pp. 2-3). São todas lógicas administrativas sui generis, exemplos da confluência entre o moderno direito administrativo e a estrutura tradicional do padroado.
Uma palavra a mais sobre o pluralismo jurisdicional. Ele verifica-se também no facto de que uma mesma questão podia ser objeto de apreciação de duas jurisdições não relacionadas. É o caso de uma eleição de vigário capitular de 1874, do arcebispado de Salvador da Bahia. O exame da validade do procedimento foi requerido tanto ao Conselho de Estado (Arquivo Nacional, 1874) quanto à Congregação do Concílio, em Roma.27 Os processos correram em paralelo e, aparentemente, uma jurisdição jamais se tornou ciente da atividade da outra. Mas chama a atenção que, aprovada a eleição pelo Conselho de Estado (com menção ao Concílio de Trento), o caso não foi adiante na Santa Sé, talvez por um juízo de conveniência de peticionários ou informantes. Paralelismos do género não impediram, contudo, que o próprio Conselho de Estado recomendasse consultar Roma em determinadas ocasiões. O órgão fez isto num momento até bastante tardio da história do Império, em 1882, em resposta ao pedido do bispo de Olinda para transferir a sede diocesana para o Recife (Arquivo Nacional, 1882). O gesto desconstrói a ideia de uma estrutura estatal ensimesmada no próprio regalismo.
Coexistência, com efeito, talvez seja a melhor palavra para descrever o sistema de governança pluralista que envolve a administração da Igreja no Brasil imperial. O caráter híbrido de certos temas, por força do sistema de padroado - ou de investidas regalistas, resultou numa atuação estatal que não se coadunava completamente com a autossuficiência administrativa ou o monismo jurídico do imaginário liberal. Nos pareceres do Conselho, observa-se um Estado que, em face à dúvida e carente de um sistema normativo unitário, invocava, para além das próprias leis, o Concílio de Trento, normas pontifícias, normas portuguesas, costumes locais, rearranjando-os com o próprio ordenamento. Flagra-se um Estado que não decidia isoladamente, mas que considerava as demais jurisdições que participavam, com ele, na governança da Igreja. Ainda que, com o passar do tempo, o universo normativo e jurisdicional relativo à Igreja se encaminhe para uma mais profunda diferenciação e hierarquização, restringindo o escopo interpretativo e de ação do Estado, é inegável que um pluralismo nos termos de Hespanha (2006, p. 62) se faz entrever nos nossos exemplos.
Mito da legalidade, criatividade da práxis: considerações finais
No século XIX, “a imagem majestosa da lei” por vezes apaga “o papel criativo da administração” (Hespanha, 2017, p. 337), criatividade a ser resgatada nos bureaux, nos dossiês amarelados e rabiscados dos casos práticos. Com este artigo, quisemos demonstrar que, no Brasil oitocentista, o Conselho de Estado desempenhava um papel chave na flexibilização do direito administrativo, através da sua atividade encravada entre a doutrina e a jurisprudência. Distinguimos, nesse sentido, três quadros de flexibilidade contra três dificuldades.
O primeiro mecanismo foi a equidade. Perante uma legislação fragmentária, insuficiente e frequentemente irracional, os conselheiros usaram a equidade como forma de uniformizar tratamentos, considerar especificidades e dar alguma coerência ao direito administrativo. Os administrativistas pareciam sugerir que este tipo de atuação redundaria na discricionariedade da administração, que precisava de liberdade para alcançar os próprios fins; entretanto, vimos que o Conselho frequentemente utilizava os seus poderes para moldar o ordenamento jurídico de uma forma que favorecesse os administrados e tivesse resultados mais justos - independentemente do que isso significasse. O segundo mecanismo foi a graça, que possibilitou uma certa interferência administrativa na justiça contra as inevitáveis generalidades da lei. Com finalidades e justificações muito próximas da equidade, também permitia um tratamento mais leve dos cidadãos - neste caso, condenados. Por fim, havia o pluralismo a que se recorria em face das incertezas da administração eclesiástica. Tal quadro representa, por certo, um desafio ao “paradigma estatalista”, uma vez que revela um Estado adepto do sincretismo normativo, e que dividia responsabilidades com jurisdições para além da administração central. Mas esse pluralismo, diferentemente dos seu “ancestrais”, também descortina o Estado como ator inconfundível, não apenas pela proposta de interpretações jurídicas totalizantes, “holísticas”, mas sobretudo pela tentativa de inserir lógicas da moderna administração secular no seio da Igreja.
A flexibilidade jurídica do XIX aparece, assim, como singularidade de mão dupla: rompe com o imaginário liberal, mas não regressa ao mundo do Antigo Regime. O conceito chave aqui não é a proteção dos direitos civis, como certa ideologia coeva queria, nem uma atividade de governo interventor que recordasse a cameralística. Não: aqui, podemos divisar os juristas na sua mais típica função. Articulando textos de origens distintas, que operavam segundo as mais variáveis lógicas, estes homens tentavam conferir uma certa unidade e coerência a esse corpo fugidio que era o direito administrativo oitocentista; aparar as múltiplas arestas dessa nova criatura era a missão desempenhada pela antiga ferramenta da equidade. A combinação entre recursos antigos e contextos inéditos dá à luz soluções inovadoras. Por exemplo, a justiça do caso concreto deixa de ser o aspeto central, como na pré-modernidade, e passa a ser empregada apenas em anómalas exceções. Mas a principal novidade reside noutro lugar: magnetizados pelos encantos da lógica, os administrativistas e os administradores promovem um casamento paradoxal, em que formas de flexibilidade são postas ao serviço da ambição pelo sistema.
Sob o alentador véu da legalidade, observamos fluir sorrateira a criatividade dos conselheiros - criatividade essa que fazia florescer o germe da flexibilidade. Nos ombros de gigante de Hespanha, acreditamos que uma história crítica das flexibilidades jurídicas no século XIX abre a possibilidade de desconstruir a mitologia da legalidade absoluta do direito administrativo. O ramo não era tão sistemático. Os juristas não eram tão passivos. E a lei e a legalidade eram mais uma promessa do que uma realidade. Se grandes construções intelectuais tentaram negar lógicas criativas, é hora de surpreender essa criatividade no funcionamento cotidiano da administração - daí o interesse pelos casos práticos, daí o interesse pelo Conselho de Estado. Afinal, a despeito de grandes discursos metafísicos, o Estado esgueirava-se pela vida dos cidadãos e das demais instituições nos caminhos pedrosos de ações concretas - demasiado concretas.