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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.245 Lisboa dez. 2022  Epub 31-Dez-2022

https://doi.org/10.31447/as00032573.2022245.01 

Artigos

Representações filmadas da “Ásia portuguesa”: escassez e especificidades.

Portuguese filmography on Portuguese Orient: scarcity and specificities.

Maria do Carmo Piçarra1 
http://orcid.org/0000-0002-7875-9629

1 Instituto de Comunicação da NOVA, FCSH NOVA, Campus de Campolide, 244 - Colégio Almada Negreiros. Gabinete: 348 - 1099-032 Lisboa, Portugal. mcarmopicarra@fcsh.unl.pt


Resumo

A filmografia portuguesa relativa ao Oriente português durante o Estado Novo é escassa, tardia e projeta uma retórica simplificada luso-tropicalista, que foi atualizando o mito da importância perdida de um território, outrora vasto, mas que durante a ditadura era já pequeno, impondo-se sobretudo pelo valor simbólico subjacente à sua posse. Proponho que a escassez de filmes sobre a Índia portuguesa, Timor e Macau decorre deste valor simbólico da comunidade imaginada (e território), que se projetava mais por omissão do que através da representação imagética. No entanto, com a emergência da questão de Goa e com o início da guerra colonial, o Oriente português passa a ser filmado como decorrência de um discurso luso-orientalista que pretendia, contra as evidências, sedimentar a ideia da unidade nacional “do Minho a Timor”.

Palavras-chave: cinema de propaganda; “Oriente português”; filmes coloniais; Estado Novo; projeção nacional

Abstract

The Portuguese filmography on Portuguese Orient during the Estado Novo is scarce, late, and projects a simplified Luso-tropicalist rhetoric, which has been updating the myth of the lost importance of a territory, once vast, which, during the dictatorship, was already small. It imposed itself mostly due to the symbolic value underlying its possession. This article proposes that the film shortage on Portuguese India, Timor, and Macau stems from this symbolic value of the imagined community (and territory), which was projected more by omission than through imagetic representation. However, with the emergence of the Goa question and the start of the colonial war, the Portuguese Orient began to be filmed as a result of a Luso-orientalist discourse which intended, against the evidence, to consolidate the idea of national unity “from Minho to Timor”.

Keywords: propaganda cinema; “Portuguese Orient”; colonial films; Estado Novo; national projection

Representações filmadas da “Ásia portuguesa”: escassez e especificidades.

O Estado Novo (1933-1974) deslocou para África a projeção nostálgica da mitologia do “Oriente português”, memória de grandeza transversal a vários regimes, tornada central pelo revisionismo histórico da ditadura como ilustração do “modo português de estar no mundo” e lugar de materialização da apregoada excelência da colonização lusa. Para superar a pequenez geográfica do país na Europa e a escassez de recursos humanos, económicos e tecnológicos, afirmou-se o direito histórico de possuir colónias, reclamando a primazia da Expansão marítima e a suposta especificidade do colonialismo português, assente numa missão “civilizadora” e cristã que propagandeou cinematograficamente. Ainda antes da Constituição do Estado Novo ser publicada, em 1933, a ditadura definiu uma hierarquização civilizacional, regulada através do Ato Colonial e do Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de 1926. Camufladamente racista, diferenciou direitos e deveres dos metropolitanos e nascidos nas colónias, inferiorizando os últimos em relação aos primeiros. Nesta sociedade piramidal, a base era composta por angolanos, moçambicanos e guineenses; num ponto intermédio estavam timorenses e são-tomenses; no topo encontravam-se os nascidos no estado da Índia, Macau e Cabo Verde (Matos, 2006, p. 66).

Ainda hoje escasseiam, em Portugal, estudos sobre como o cinema representou as ex-colónias e fixou as mudanças políticas e ideológicas que enquadraram a vida colonial,1 e é recorrente fazer equivaler “império” ao “império em África”. É também incipiente o processo de estudo que perspetive as representações cinematográficas2 do “Oriente português”,3 tornando-se necessário particularizar os casos de Goa, Damão e Diu, Macau e Timor. É evidente que os territórios designados como Oriente português são diversos, o que implica a caracterização das especificidades a partir da inventariação e visionamento da filmografia portuguesa sobre estes, assim como a consulta da documentação relativa à produção.4

Orientalismo no cinema

Edward Said (1994), inspirado nos Cadernos do Cárcere e nas Cartas do Cárcere (Gramsci), cruzando a influência de A Ordem do Discurso (Foucault), e aprofundando o que fizera em Orientalismo, ao considerar a escrita sobre o Oriente como um discurso, em Culture and Imperialism usa textos literários como fonte para entender as dinâmicas da política e da cultura nas relações com o imperialismo. Argumenta que foi por via da cultura que o imperialismo se legitimou e “conquistou” o mundo impondo-lhe o seu modelo económico. Analisou linguagem, imagens e símbolos usados nas narrativas orientalistas para mostrar como a natureza formativa e não meramente expressiva destas moldou identidade, imaginação, subjetividade, história, cultura e interação entre opressor e oprimido. Conclui que estas imagens moldaram historicamente a forma como o Ocidente concebeu negativamente o “outro”, justificando a sua “obrigação” de dominar.

Como noutros países europeus, em Portugal escasseiam estudos sobre como o cinema representou as ex-colónias. Evoco Said para sustentar a análise que proponho sobre a ordem do Estado Novo subjacente ao discurso cinematográfico sobre o “Oriente português”. Apoio-me, ainda, numa proposição de Jean-Michel Frodon (1998) - a de que a nação partilha com o cinema a necessidade de projeção para existir. Em La projection nacionale, Frodon nota que o cinema se impôs no século XX como arte produtora de mitologias e do prazer de massas. As propostas sublinham a solidariedade entre a história das nações e a do cinema e a sua hegemonia no século XX. Recorrendo ao conceito de nação de Benedict Anderson (1983) como “uma comunidade política imaginária e imaginada como intrinsecamente limitada e soberana”, Frodon realça que a natureza de ambos implica que só existam através da projeção. Frodon propõe que a nação se inventa a partir de um real revisto e corrigido segundo uma dramaturgia e sustenta, também, que os critérios definidores de nação se aplicam ao cinema. Escreve que é a projeção de um traço da realidade que funda o cinema e o distingue das técnicas comparáveis precedentes. Esta é feita em grande formato, no escuro, perante espectadores que partilham a mesma “visão magnificada”.

Em Visions of the East: Orientalism in Film, Matthew Bernstein e Gaylyn Studlar (1997) comentam como o imaginário criado pelo orientalismo literário foi matéria da sétima arte. O cinema - incluindo o de exploração, o “científico” e o “etnográfico” - herdou assunções culturais e a narrativa e visualidade disseminadas pelo orientalismo. O orientalismo cinematográfico foi extremamente popular e, logo durante o período do mudo, investiu-se em grandes produções orientalistas nos EUA e em França. O imaginário popular constituído persistiu durante o século XX.

Percebendo a relevância do Oriente e do orientalismo no cinema francês, constatei tanto que as ex-colónias a Oriente foram pouco filmadas pelo cinema português - apesar de se ter utilizado muito a expressão “Oriente português” durante o Estado Novo -, como a falta de estudo do orientalismo subjacente. Além da produção cinematográfica sobre o Oriente ser tardia e escassa, materializou-se sobretudo em documentários, o género propagandístico preferencial da ditadura portuguesa.

Bernstein e Studlar (1997, p. 11) notam que, se o orientalismo dispõe um modo de ver os filmes, esta abordagem não esgota os seus sentidos. Em Eye of the Century, Francesco Casetti (2008) considera que o cinema é a chave para a leitura e compreensão da experiência moderna porque, no século XX, fomentou um olhar pessoal, complexo, em que se combinaram realidade e imaginação; um olhar penetrante, através da câmara, mas profundamente antropomórfico; um olhar excitado, rico em perceções, mas também atento à orientação do espetador; e um olhar imersivo, criando a impressão de estar dentro do mundo visto, mantendo, simultaneamente, a distância. A partir da tipologia de olhares que inventaria, considera que cada uma combinou duas qualidades diferentes, equilibrando-as. O resultado foi uma síntese inventiva que se esforçou para criar compromissos sem sacrificar a complexidade da contradição. Como demonstra Casetti, o cinema propôs uma visão que, ao tornar os opostos permeáveis, se modelou num princípio oximórico.

Em Tradition, Culture and Aesthetics in Contemporary Asian Cinema, Peter C. Pugsley (2013) comenta que, para muitos autores, o orientalismo continua vivo, pelo que a investigação sobre o orientalismo cinematográfico não deve ser superficial, mas assentar num processo constante de busca dos traços deixados pela supressão da alteridade e em detetar onde essa alteridade se torna percetível.

Valor simbólico do oriente e pioneirismo da propaganda colonial cinematográfica

No Dicionário dos Historiadores Portugueses, Marta Pacheco Pinto refere que Manuela Ramos verificou que a palavra “orientalismo” foi dicionarizada pela primeira vez no Grande Diccionario Portuguez publicado em 1873, data do primeiro Congresso Internacional de Orientalistas em Paris. Esta palavra significava “conjunto dos conhecimentos, das ideias filosóficas e costumes dos povos orientais. Ciência dos orientalistas, conhecimento das línguas orientais”.

Se o orientalismo não foi valorizado em Portugal como, no âmbito do Romantismo, sucedeu noutros países europeus, entre a segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX os orientalistas portugueses revelam “uma obsessão, quase fetiche, com a história da presença portuguesa no Oriente” (s. p.), de acordo com o Dicionário dos Historiadores Portugueses. O “Oriente português”, que, no século XX, se limitava aos territórios da Índia portuguesa, compreendendo Goa, Damão, Diu, Dadrá e Nagar Haveli, além de Macau e Timor português, tinha sobretudo um valor simbólico. A perda da importância da presença a Oriente foi primeiro colmatada com a projeção de grandiosidade deslocada para a posse do Brasil e, quando este se autonomizou, foi transferida para Angola e Moçambique, onde o colonialismo se remeteu primeiro à costa e, só após a conferência de Berlim, se aventurou pelo interior. O valor simbólico do Oriente, proponho, era tal, que, de certo modo, se projetava mais potentemente por omissão do que pela tradução, em imagens, da representação fílmica dos pequenos territórios que permaneciam portugueses - aliás, ao contrário dos filmes “africanos”, nunca são mostrados mapas destes territórios. Como notou Sérgio Campos Matos (2002), durante a monarquia constitucional, alguns intelectuais chegaram a questionar a manutenção das colónias orientais pela pouca importância que assumiam na economia nacional.

O Estado Novo coroou a transição para o autoritarismo, iniciada com a revolução militar de 28 de Maio de 1926. Da necessidade de legitimação resultou o desenvolvimento da ideologia nacionalista, integrando um pensamento relativo às colónias, propagandeada, entre outros meios, pelo cinema. António Ferro - diretor do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), criado em 1933 e transfigurado em Secretariado Nacional da Informação (SNI) em 1944, em quem o presidente do Conselho, Oliveira Salazar (1933-1968), confiou a “projeção” da nação - estilizou a cultura tradicional e promoveu o revisionismo histórico.

Como foi projetada cinematograficamente a ideologia da ditadura? Pelo financiamento imediato de propaganda cinematográfica ao regime e à produção de filmes que promovessem o nacionalismo. Não obstante, só em 1948 foi criado o Fundo Nacional do Cinema (FNC), definidor do modelo cinematográfico a promover. Para ter apoio estatal, devia “ser representativo do espírito português, quer traduza a psicologia, os costumes, as tradições, a história, a alma colectiva do povo […]” (Lei n.º 2027, de 18 de fevereiro de 1948).

Até começar a chamada “guerra colonial”, iniciada em 1961 em Angola e que até 1964 alastrou para Guiné-Bissau e Moçambique, o cinema interessou-se pouco pelas colónias, com a exceção, devido a motivos políticos, das duas missões cinematográficas promovidas pelo Estado no final das décadas de 20 e 30.

O documentário foi o género mais usado pela propaganda. Ainda estava em definição a política colonial quando se determinou a participação nas exposições europeias. Foi a Agência Geral das Colónias (AGC), surgida em 1925, que enviou duas equipas para filmar as colónias africanas. Cabo Verde e o “Oriente português” não foram filmados, sendo os filmes sobre Angola, Moçambique, Guiné e S. Tomé e Príncipe apresentados na Exposição Ibero-Americana de Sevilha (1929), na Exposição Internacional e Colonial de Antuérpia (1930) e na Exposição Colonial de Paris (1931). A Exposição de Antuérpia mostrou, porém, um filme amador, hoje desaparecido, sobre Goa, do cineasta amador Antunes Amor.

Além de produções pontuais, a emergência do cinema sonoro originou a Missão Cinegráfica às Colónias de África, em 1938, mas, novamente, os territórios asiáticos foram excluídos. Após o final da Segunda Guerra Mundial, e enquanto os movimentos de libertação eclodiam na Ásia e em África, o governo logrou integrar o país na recuperação promovida pelo Plano Marshall. Com escassas ficções ambientadas nas colónias, o documentário económico ganhou expressão, por iniciativa de Felipe de Solms e Ricardo Malheiro que, em 1949, viajaram até Moçambique e Angola para angariar apoio de empresas, organismos estatais e missões religiosas para a realização de filmes.

Clarifique-se que a propaganda usou o cinema para promover o Estado Novo e a ideologia que lhe esteve subjacente, mas, apesar da instauração da censura prévia, não controlou totalmente a exibição de filmes - por exemplo, em Espanha, durante o Franquismo, era obrigatório exibir as atualidades propagandísticas NO-DO, e só através deste noticiário se mostravam nos cinemas as notícias internacionais, dado que não era permitido mostrar outras atualidades internacionais - e, naturalmente, o imaginário por eles veiculado. Na “Índia portuguesa” e em Macau, onde havia um considerável número de salas de cinema, predominava, respetivamente, a exibição de filmes em inglês, e sobretudo hindi e marata, e de filmes norte-americanos e europeus. Em Timor, onde, em 1967, havia apenas um cinema em funcionamento, exibiam-se filmes importados. Refira-se, no entanto, que, em 1949, e tomando como modelo o cinema ambulante do SNI, o Ministério das Colónias criou um cinema ambulante que circulou em Moçambique e Angola; e que, após a quebra do diálogo diplomático que veio a suceder entre Portugal e a Índia e o início das lutas de libertação das ex-colónias africanas, intensificou-se a organização - sobretudo pelo Exército e pelos Centros de Informação e de Turismo,5 criados em 1959 e dependentes do SNI - de sessões de cinema de propaganda com filmes portugueses. Assente-se, pois, que não houve um controlo total dos imaginários projetados cinematograficamente nas colónias. Tal decorreu, provavelmente, da dificuldade de implementar um sistema de controlo completamente eficaz e da incapacidade portuguesa de impor limitações às grandes distribuidoras internacionais. Houve, contudo, uma tentativa de, através da produção de cinema de propaganda e organização de apresentações dos filmes resultantes, projetar uma determinada ideologia colonial e um sistema de representações sociais que, quanto ao Oriente, difunde na metrópole a ideia de que existe um “modo de estar no mundo luso-oriental” e, nas colónias orientais, se esforça por afirmar os valores da ordem do Estado Novo e do catolicismo. Quanto à religião, isso sucede não obstante a afirmação, pela propaganda, da liberdade de credos e do respeito pela diversidade.

O cinema de propaganda apenas se interessa pelo Oriente em meados do século XX, só após a eclosão da questão de Goa.6 O orientalismo subordinou-se então à retórica luso-tropicalista, projetada cinematograficamente. Assente no revisionismo histórico iniciado no século XIX, mas aprofundado por António Ferro enquanto diretor da propaganda nacional, quando a “teoria” de Gilberto Freyre se impôs, gerou-se um “luso-orientalismo” veiculado pelo cinema que incorporou declinações discursivas, relativas tanto às especificidades da colonização dos territórios como das ameaças à soberania portuguesa em cada território. Apesar da escassa produção “luso-oriental”, os filmes denotam diferenças que se materializam na importância da propaganda militar e “científica” quanto a Timor; militar e política no caso de Goa; política, económica e turística no de Macau.

Em 1952, Ricardo Malheiro acompanha, contratado pela Agência Geral do Ultramar (AGU),7 o ministro do Ultramar, Sarmento Rodrigues, no périplo deste pelo Oriente. Malheiro recupera o modelo africano, propondo fazer filmes de propaganda a empresas e aos governos locais. Pouco depois, também Miguel Spiguel - realizador que mais filmou no “Oriente português” - começa a realizar filmes de propaganda.

Sarmento Rodrigues, ministro das Colónias desde 1950, acionara a reforma administrativa sem descurar a reforma ideológica do modelo político-colonial. Este adotou o luso-tropicalismo, conceito do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre sobre o suposto multiculturalismo português assente num denominador comum: a especificidade da adaptação do português e da sua cultura a ambientes tropicais.8 Portugal, Brasil, África e o “Oriente português” constituíam, segundo Freyre, uma “unidade de sentido e de cultura” (s. d., p. 267) dentro de uma tendência para a mestiçagem. Propôs que tal unidade fosse sustentada pelo cristianismo, ideia usada pela ditadura portuguesa na resposta ao questionamento internacional sobre a manutenção de colónias.

Quando a luta de libertação eclode em Angola, em 1961, o regime, instrumentalizando a “teoria” de Gilberto Freyre, intensifica a utilização da retórica luso-tropical, sobretudo no âmbito das relações internacionais. Intensifica-se a realização de filmes de propaganda tanto para colmatar o desconhecimento profundo sobre as colónias e seus habitantes como para afirmar a suposta especificidade da relação portuguesa com as “províncias ultramarinas”. O facto de que o Oriente português passe a ser filmado decorre da necessidade de sedimentação de um discurso luso-orientalista que, abstraindo-se das especificidades locais, das diferenças de e entre cada território africano ou asiático, quer afirmar, contra as evidências, que “do Minho a Timor, [são] todos portugueses”.

Porém, dado o desenlace da questão de Goa - que culminou, em dezembro de 1961, com a anexação dos territórios da “Índia portuguesa” pela União Indiana -, o Oriente pouco protagonismo teve. O desinteresse pelo Oriente justifica-se, parcialmente, pela grande distância, escasso contributo para a economia, e pequenez dos territórios comparativamente a Angola e Moçambique. A valorização desta região é, pois, simbólica, integra-se no revisionismo histórico e tem motivações políticas, dado que a ditadura promove valores nacionalistas assentes na grandeza passada do “Oriente português” agora projetada para África enquanto, internacionalmente, afirma o direito histórico a manter um império. Dado que a presença no interior de África foi residual até ao século XX, devido à escassez de pessoas e à fragilidade militar e económica portuguesa, este argumento é suportado pela evocação da Expansão marítima portuguesa, com a descoberta do caminho marítimo para a Índia, através da navegação atlântica, e a ligação com o Japão. Não obstante a importância enquanto lugar de memória histórica, quando o “Oriente português” foi filmado, a construção da imagética e do discurso da voice over foi subordinada às imposições propagandísticas, determinada pelos acontecimentos políticos, abstraindo-se das realidades locais.

Macau: harmonia luso-tropical e singularidade exótica

Macau foi pouco filmado por portugueses, mas o mais antigo filme “colonial” completo da Cinemateca é Macau - Cidade Progressiva e Monumental, de Antunes Amor,9 estreado em 1922 no recém-inaugurado Animatógrafo Macau, depois projetado no Brasil, no Rio de Janeiro, e, em Portugal, em Lisboa e no Porto.

Amor, a quem se atribuem outros filmes, desaparecidos, sobre Macau, deixara o território quando lá se iniciou atividade cinematográfica profissional. Em 1924, a Empresa Cinematográfica Macaense (ECM), que obteve “o exclusivo dessa exploração no território da Colónia pelo prazo de dez anos”10 numa decisão revogada de imediato pelo governador, criou um estúdio e adquiriu equipamento para fazer documentários “onde serão apanhados todos os assuntos mais notáveis da vida da colónia”.11

Exibiu as suas primeiras realizações na Feira e Exposição Industrial de Macau de 1926, produzindo a reportagem cinematográfica do evento. O jornal A Pátria anunciou que, no último dia do certame, o salão de cinema mostraria os filmes da ECM. O Vôo Audaz das Águias Portuguesas mostrou a chegada, a 25 de junho de 1924, dos aviadores Brito Pais, Sarmento Beires e Manuel Gouveia. Seguiram-se Os Funerais de um Capitalista e Comemoração do Quarto Centenário de Vasco da Gama, sabendo-se que reportava um desfile de civis na Praia Grande, ao longo da Avenida de Vasco da Gama, uma missa campal e mostrava as iluminações na cidade e no porto. A O Casamento de Mr. & Mrs. Francis Young Po Nam seguiu-se O Voo Madrid-Manila, filmado em maio de 1926, quando Gallarza e Loriga passaram pelo território. O Concílio Episcopal em Xangai e As Obras do Porto de Macau fecharam a apresentação. Infelizmente, os filmes desapareceram e não terá havido produção posterior da ECM depois de, devido a questões burocráticas, lhe ter sido retirado o exclusivo.

Até 1952, praticamente não se fazem filmes documentais portugueses. Nas atualidades filmadas de propaganda, refira-se a inclusão de uma notícia, no n.º 19 do Jornal Português (1938-1951), sobre a inauguração da secção colonial das comemorações centenárias de 1940,12 destacando-se a Rua de Macau. A série seguinte, Imagens de Portugal (1953-1970), incluiu escassíssimas notícias e todas na terceira série da revista, a partir de 1958.

No n.º 247, é filmada, em Lisboa, a partida do novo governador de Macau, tenente-coronel Lopes dos Santos. O destaque maior ao território é dado, porém, nos n.os 343 a 346 de Imagens. O n.º 343 inclui “Governador de Macau visita obras importantes no território” e “Melhor Saúde pelo Trabalho” - sobre uma exposição de trabalhos executados por doentes de neuropsicologia e de cirurgia através de um programa de terapêutica ocupacional. O n.º 344 inclui uma reportagem intitulada “Cidade do Santo Nome de Deus, Macau”. A narração explica:

Esta é a cidade do Santo Nome de Deus de Macau, onde o Oriente e o Ocidente se encontram. Terra de contrastes, Macau é uma harmoniosa mistura dos modos de ser chinês e português, conseguida ao longo de quatro séculos de amistosa convivência. Costumes antigos contrastam curiosamente com o cosmopolitismo peculiar das cidades marítimas. Com o seu movimento trepidante, Macau é a porta do vasto continente para o Mar da China.

Refere a intensa vida comercial da cidade, com 200 mil habitantes, para sublinhar que, apesar da diversidade religiosa, da óbvia cultura milenar aí existente, Macau é “símbolo do espírito português” num continente “agitado”.

Aqui é possível encontrar representantes de todas as raças da terra, como é também possível falar os mais inesperados dialectos. Mas, para além das nítidas influências de uma civilização milenar prestigiosa, para além de tudo o que é essencialmente asiático, Macau permanece como um símbolo do espírito português no Extremo Oriente: uma terra tranquila num continente agitado.

A edição n.º 345 mostra a comemoração do Dia de Goa em Macau, marco da importância da “questão de Goa” na agenda política e “noticiosa”. Mais relevante, porque projeta a retórica luso-tropical, é a reportagem, no n.º 346, sobre as diferenças de credo religioso, exemplificativas da tolerância dos portugueses.

Quando, em 1952, Ricardo Malheiro, contratado pela AGU, acompanha o ministro Sarmento Rodrigues numa viagem ao Oriente, realiza Macau: Cidade do Nome de Deus, para mostrar-lhe o encanto “singular”, e A Viagem de Sua Excelência o Ministro do Ultramar ao Oriente 3 - Macau. Estas produções propagandísticas decorrem do momento político, de intensificação do conflito diplomático com a Índia, e da expectativa quanto à potencial complexificação da situação em Macau, após a fundação, em outubro de 1949, da República Popular da China.

A atualidade impõe, pois, um olhar para o Oriente, desvelado sucessivamente em dois “ciclos documentais”, segundo Matos-Cruz (2001, p. 192), coincidentes em Timor, Macau e Goa. O primeiro ciclo corresponde à escassa produção de Malheiro, para a qual, em Macau, contratou o operador Albert Young. A narração de Macau: Cidade do Nome de Deus (1952) é emblemática do discurso da ordem pela voice over (00:36:17 a 01:02:15):

Na placidez das águas dos mares do sul da China, animadas pelo exotismo dos seus barcos e rodeadas pelo encanto das suas ilhas e costas verdejantes e coloridas, ergue-se uma velha e maravilhosa cidade portuguesa, rica de colorido e ineditismo, e diferente, muito diferente de todas as outras cidades portuguesas. Essa cidade é Macau, terra de colinas e outeiros, de jardins de sonho e frondoso arvoredo com um governo português que conta quatrocentos anos.

A Viagem de Sua Excelência o Ministro do Ultramar ao Oriente 3 - Macau (1953), filme oficial que regista a única visita de um governante da ditadura ao local, ignora os conflitos fronteiriços entre a guarnição militar portuguesa e o Exército Popular de Libertação da China, junto às Portas do Cerco. A obra é de propaganda da visita do ministro, entre inaugurações e receções.

Entre os dois ciclos documentais, fez-se a ficção Caminhos Longos, realizada por Eurico Ferreira (1955), com Albert Young na fotografia. Filme de amor entre dois jovens, teve como fundo a vaga de refugiados de origem portuguesa, chegados a Macau após a Revolução Chinesa. Falado em português, inglês e mandarim, com um elenco predominantemente amador, mas protagonizado por dois chineses com notoriedade - Chung Ching como Teresa e Wong Tou como Tam -, estreou no Teatro Vitória, a 23 de novembro de 1955, com algum êxito. Devido a problemas com a banda sonora, regressou ao laboratório de Hong Kong, desaparecendo no processo. Haveria uma segunda cópia, enviada para Portugal, mas também se perdeu.

Miguel Spiguel produz o segundo ciclo “documental” sobre Macau. Genericamente, as obras que realizou no “Oriente português” são relevantes não só pela escassez de filmes portugueses aí feitos, mas porque, comparativamente às obras oficiais, aligeiram a retórica luso-tropical, que articulam com promoção turística e económica. Tal decorre do seu modo de produção. Spiguel revela genuíno interesse por Macau, onde realiza filmes a partir de 1956 - os picos verificam-se entre 1956 e 1960 e 1970-1971. Este interesse é evidenciado sobretudo em Os Pescadores de Amangau (1958), que, sem retórica propagandística, documenta com sensibilidade a vida dos residentes em barcos-casa. Esse olhar diferente decorreria da preferência, assumida, de Spiguel por Macau, traduzindo-se numa produção viabilizada por relações com o governador Jaime Silvério Marques ou Pedro Lobo. Este último, originário de Timor, milionário enriquecido com o comércio do ouro e presidente do Leal Senado entre 1959 e 1964, era compositor, assinando bandas sonoras dos filmes de Spiguel.

Uma carta enviada a Silvério Marques, a 27 de dezembro de 1959, revela em que condições filmava.13 Devido ao mau tempo, no dia anterior filmara apenas quinze minutos, pagando mil escudos por um dia de trabalho ao operador. Explica:

Embora pudesse seguir directamente para Timor, preferi fazer um desvio para Macau, terra da minha preferência […], o meu capital e crédito empenhados neste empreendimento ultrapassa de muito os 500 contos e para os amortizar conto com a boa qualidade e a possível venda dos mesmos às várias entidades oficiais, tais como a Agência Geral do Ultramar, Secretariado Nacional da Informação e Ministério da Educação Nacional.

De todos estes documentários o de Macau tem menos defesa, porque já existem quatro feitos por mim e Vossa Excelência sabe tão bem como eu que em matéria de propaganda as atenções do Governo Central dirigem-se de preferência para as nossas províncias de Angola e Moçambique, deixando o resto à iniciativa particular como a minha ou ao critério e julgamento do Governador respectivo.

Note-se como a correspondência assume que a ditadura favorece a propaganda cinematográfica de Angola e Moçambique e que a realização de filmes sobre o Oriente depende de apoios da administração e empresários locais. Contudo, Spiguel realizou alguns filmes de propaganda para a AGU: Macau, Jóia do Oriente, Acção Missionária no Oriente e Macau em Marcha: Economia-Fomento-Indústria, todos de 1956, e o filme turístico Macau (1960). A revista Filme, no n.º 14, de maio de 1960, explica sobre Macau (cf. Pina, 1991, p. 15):

Quis mostrar como a obra civilizadora dos portugueses tem um sentido particular, cristão, tolerante. Notou nas imagens do arrear da bandeira como é composta a escola? Notou a profusão de raças entre a juventude escolar? Notou essa mesma tolerância na multidão que povoa as ruas? Depois quis captar uma cidade com imagens de uma cor intensa. Macau a preto e branco não se justifica. O enterro chinês, os barcos à vela, a profusão de barcos coloridos, tudo isso pede cor.

Mostrando a aceleração da industrialização no território, Macau Industries “Macau Knitters” (1970) e Macau de Hoje (1971) são filmados por Spiguel antes do fim da ditadura.

Na ficção, só onze anos após Caminhos Longos é que Macau foi cenário de novas apostas. A primeira decorreu do convite do produtor Felipe de Solms ao realizador francês Jean Leduc para realizar Via Macau (1966), filme de espionagem protagonizado por Françoise Prévost e Roger Hanin. Estreado no cinema Monumental, em Lisboa, a 22 de julho de 1966, e em França logo a 27, ambienta-se sobretudo no Estoril, cenário de um congresso internacional. No final, a ação desloca-se para Macau, da qual se veem imagens documentais. O registo é o habitual no cinema ficcional - exploração da diferença paisagística e cultural, cenário habitual de jogo, onde pululam traficantes e mulheres fatais. Desde Macao, l’enfer du jeu (Jean Delannoy, 1939), Macau surgiu representada de acordo com este estereótipo, que o Macau (1952) de Joseph von Sternberg e de Nicholas Ray acentuou.

Em 1965, contratado pela Polícia Judiciária de Macau, Spiguel filmou Operação Estupefacientes - composto por Mayana, O Importador de Ópio e Doca de Patane - com que se estreou na ficção. As “três histórias verídicas” foram interpretadas por polícias ou atores não profissionais, com exceção de Mayana Martins, de 19 anos, refugiada de Xangai, com experiência de representação em Hong Kong. Quando estreou em Portugal, a 4 de outubro de 1966, como complemento de Dr. Jivago, a crítica elogiou mais a fotogenia e o exotismo de Macau do que a qualidade da fotografia, de Perdigão Queiroga.

Antes do fim da ditadura, em 25 de Abril de 1974, o último documentário feito por um português foi Macau: Portugal na China, realizado por António Lopes Ribeiro. O olhar que sustenta não difere dos que o antecederam e o enfoque é dado à harmonia entre portugueses e chineses e aos contrastes do território, enquanto documenta as paisagens, as relíquias existentes e destaca o luxo dos hotéis e a animação dos casinos.

Em suma, Macau foi filmado, até à década de 50, para projetar o território em exposições, embora, à exceção do filme de 1923, todos os materiais estejam perdidos. Posteriormente, foi mostrado em escassos filmes de propaganda, de natureza política predominantemente, mas também turística e industrial. Assinale-se o insucesso português nas tentativas de realização de ficção. É ainda significativo que, nos arquivos internacionais, haja filmagens do Motim 1, 2, 3, de 3 de dezembro de 1966, nunca mostrado ou abordado pelos filmes portugueses.

Goa: multiculturalismo e diversidade de cultos em propaganda tardia

Qualquer história do cinema feito em Goa tem de creditar o pioneirismo de Antunes Amor. A revista Cinéfilo, de 5 de julho de 1930, entrevistou-o na apresentação, no Central Cinema, em Lisboa, de Festa das Escolas de Nova Goa, projetado posteriormente na exposição de Antuérpia.

No artigo “Documentários das nossas colónias”, da Cinéfilo, Amor revela ter-se iniciado na cinematografia inspirado pelas paisagens e “costumes exóticos dos asiáticos” além dos “vestígios do grande Império Português no Oriente” (R. S., 1930, p. 8). Depois de começar a filmar em Macau, fez cinema amador na “Índia Portuguesa” apresentando os seus filmes nos cinemas locais. Anunciou, à Cinéfilo, a preparação de “pequenos documentários, que mostrarão também, entre nós, pela primeira vez, aspectos regionais do Estado da Índia” (R. S., 1930, p. 8). Atribuem-se-lhe outros títulos, perdidos, mas seriam escassos: “Sem auxílio do Estado e tendo tido pouco tempo para filmar os aspectos da Índia, poucos negativos possuo dessa nossa colónia” (R. S., 1930, p. 8). Amor apoiava a projeção cinematográfica do imperialismo, estando a par do modo de produção dos documentários feitos em África, e responsabilizou as administrações dos territórios orientais pela falta de propaganda filmada localmente:

As missões cinematográficas que foram à África realizar filmes regionais de propaganda, subsidiadas pelos respectivos governos provinciais, mostram em Portugal as belezas naturais, os costumes, as produções agrícolas, as indústrias, a riqueza e o progresso, enfim, das nossas vastas possessões africanas. […] Só as colónias do Oriente é que não têm sabido aproveitar os filmes regionais como meio de propaganda. (R. S., 8)

Foi assim até à ameaça da anexação, pela União Indiana, da “Índia portuguesa”. Se a produção cinematográfica portuguesa em Goa teve fraca expressão, terá sido também porque os elevados custos da produção de cinema e a distância da metrópole a terão desincentivado?

Ao contrário dos territórios indianos sobre domínio britânico, que, desde o início do cinema sonoro, tiveram várias produtoras de cinema em atividade, a produção em Goa, Damão e Diu ressentiu-se da quase inexistência de indústria cinematográfica portuguesa e da imposição da ditadura. Se até à década de 30 não é estranha a quase inexistência de filmes feitos em Goa, depois a situação contrasta com a dos restantes territórios indianos. Nestes, a realização cinematográfica é progressivamente mais significativa, e implicou a escolha de uma das línguas mais faladas, o hindi, como aquela usada generalizadamente para evitar a multiplicação de cópias. Ainda assim, a produção de propaganda portuguesa foi antecedida pela de cinema em concanim, a língua local. Segundo Andrew Greno Viegas (2000), na década de 40 foi realizado um documentário sobre a vida de Cristo, apresentado nos Swastic Cinema e Old Pathe Cinema, em Bombaim, em 1948. Outro documentário sobre Nossa Senhora de Fátima estreou em Goa em 1950, com produção de Al Jerry Braganza, que realizou ainda Saint Francis Xavier durante o quarto centenário da sua morte, em 1952. Além da versão concanim, este filme, que mostrava as cerimónias religiosas das comemorações, assim como “cenas pitorescas” e vistas históricas de Goa, teve versões em inglês, hindi e português. Em 50 Years of Konkani Cinema, Viegas (2000) escreve que Braganza assegurara, na Índia, os direitos para filmar a exposição.

A produção ficcional concanim iniciara-se em 1950, com Mogacho Aunddo [Love’s craving], produzido e realizado por Al Jerry Braganza, de Mapusa, onde o filme estreou a 24 de abril, no cinema Dasharatha. O filme, perdido, contava a história de amor entre um rapaz rico, interpretado pelo realizador, e uma rapariga pobre, interpretada por Lena Fernandes, adaptando o romance concanim Mogachi Vodd, de Dioguinho D’Mello. Só em 1963 - após a anexação de Goa pela União Indiana - foi realizada a segunda ficção concanim, Amchen Noxib [Our luck]. Com produção e música de Frank Fernand, de Curchorem, o filme de ficção concanim mais bem-sucedido de sempre foi protagonizado por C. Alvares e Rita Lobo, tendo realização de A. Salam. Al Jerry Braganza repetiu a produção de filmes concanim, em 1967, com Sukhachem Sopon, cujo protagonismo dividiu com as atrizes Cecilia Machado e Antonette Mendes.

Estes três filmes ficcionais concanim - Sukhachem Sopon, Amchem Noxib e Nirmon - são os que hoje se encontram na posse do Department of Information and Publicity do governo de Goa. Na década de 70, intensificou-se a produção de filmes nesta língua e atualmente há alguma revalorização do género. Porém, nunca deixou de ser residual, certamente marcada pelas dificuldades de produção durante a administração portuguesa, mas, como revela a escassez pós-anexação, também vítima da hegemonia da produção de Bollywood que impôs um modo de produção e o hindi como língua dominante.

A questão de goa e a emergência da propaganda cinematográfica

A análise de imprensa permitiu verificar que havia dezenas de cinemas em funcionamento até 1961, e notar que mostravam sobretudo produções indianas e de Hollywood. Quanto a filmes de ficção portugueses, é noticiada unicamente a exibição de Camões (Leitão de Barros, 1946),14 sobre a vida do poeta homónimo que, com o poema épico Os Lusíadas, celebrou a viagem de Vasco da Gama à Índia. Em meados dos anos 50, provavelmente na sequência das manifestações de satyagrahis na fronteira, de que resultou o assassinato de cerca de duas dezenas destes pelo Exército, passaram a ser exibidas, em vários cinemas goeses, as atualidades filmadas de propaganda, patrocinadas pelo SNI, Imagens de Portugal (1953-1970), um quinzenário sucessor do Jornal Português. Os primeiros documentários de propaganda sobre a “Índia portuguesa” não antecederam em muito esta novidade.

O Diário da Noite de 24 de outubro de 1952 informou os goeses sobre Malheiro e o filme que fez em Macau, após passar pela “Índia portuguesa”. O jornal é elogioso, afirmando que Malheiro é um “categorizado produtor, realizador dinâmico e competente”, que realizou na viagem ao Oriente “[…] uma obra digna dos maiores louvores, atendendo a que a sua equipa se compunha apenas de dois homens” (p. 1).

Malheiro teve apoio de um operador e, segundo o Diário da Noite, o seu êxito deve-se “somente ao seu dinamismo, às suas faculdades de inteligência e qualidades de trabalho e ao seu profundo conhecimento do campo cinematográfico”. O jornal alude ao filme sobre S. Francisco Xavier (p. 1):

Trata-se doutro filme oportuníssimo, que a visão de Ricardo Malheiro descortinou ao longe, pois celebra-se este ano o quarto centenário da morte do maior missionário de todos os tempos e nada melhor do que um filme para tornar ainda mais conhecido o Grande Santo e mostrar os lugares onde tantas almas converteu à religião de Cristo, abrindo o caminho aos missionários que por todo o Oriente espalharam os nomes de Deus e de Portugal.

Na viagem a Goa, além de Caminhos de S. Francisco Xavier, realizou Roteiro do Mandovi - Velha Goa e A Viagem de Sua Excelência o Ministro do Ultramar ao Oriente 1 - Índia. A análise de imprensa indicia que filmou, em 1951, não regressando em 1952 para filmar as comemorações devotadas a S. Francisco Xavier.15 No entanto, é-lhe atribuído o documentário A Exposição Colonial em Goa (1953), organizado paralelamente.

Vários incidentes político-militares ocorridos estão registados em Operação de Segurança no Estado da Índia (1955), de autor desconhecido e sem som, existente no CAVE. Propagandeia a versão da ditadura sobre os incidentes com satyagrahis junto à fronteira de Goa, que, em 1955, aumentaram a tensão com o governo indiano. No CAVE, existe também, sem som, Rumo à Índia (1959) filme de Spiguel, sobre o envio de tropas para o território. Paralelamente aos filmes militares, o segundo ciclo de documentários feitos por Spiguel para a AGU, inclui Aguarelas da Índia Portuguesa (1959), Um Natal em Goa (1959), Dança do Mandó e Paisagem Goesa (1960, incompleto e sem som), depositados na Cinemateca, bem como Manhã de Sol em Damão (1959) e Romagem a Diu (1959), que constam na filmografia do CAVE, mas estão inacessíveis. Filmes de propaganda, que, através da narração, sublinham o exotismo da “Índia Portuguesa” enquanto as imagens exibem as especificidades socioculturais forjadas pelo encontro entre portugueses e indianos, mostrados em apontamentos religiosos, arquitetónicos e culturais em geral, foram feitos antes da anexação, em 1961.

A rematar este ciclo, considere-se ainda Honra à Índia Portuguesa (1961). É uma edição, a 239, especial de Imagens de Portugal, evocativa do historial da presença na Índia para afirmar a ilegalidade da anexação de Goa, Damão e Diu pela União Indiana, não obstante o Tribunal Internacional de Haia ter reconhecido direitos portugueses sobre os mesmos.

A análise aos temas filmados denota a importância atribuída à religião, articulada com a afirmação do discurso sobre um suposto “modo português de estar no mundo”, caracterizado pelo multiculturalismo - inclui apontamentos sobre a multiplicidade de cultos, paisagens e práticas culturais -, mas também de aparente valorização da miscigenação, potenciada pelo encontro e síntese da cultura portuguesa com a oriental - e o enaltecimento do enquadramento cristão da administração portuguesa. Porém, esta filmografia oficial constituída tardiamente evidencia as tensões existentes - através dos registos de envio de tropas como dos conflitos com satyagrahis - e, através da voice over, questiona o pacifismo do governo indiano, a quem imputa transgressões, escamoteando a existência, desde o século XIX, de revoltas locais contra a admi- nistração portuguesa, intensificadas pela perda de direitos decorrente da ditadura.

Timor: igreja, exército e “ciência” enformados pela retórica nacionalista

O interesse do cinema por Timor foi tardio e decorrente da guerra. Colónia distante, com recursos escassos, não atraiu o cinema português, não havendo condições de produção cinematográfica no território. Assim, realizaram-se escassos filmes de propaganda, feitos durante visitas políticas - como a de Sarmento Rodrigues - ou militares.

As primeiras filmagens conhecidas são feitas na Segunda Guerra Mundial por estrangeiros. Além de imagens feitas pelos Aliados, outras captadas pelos japoneses são notícia da revista Cinema, em 1947, a propósito do projeto de realização de um filme de Fernando Garcia, que queria estrear-se realizando uma ficção de reconstituição da ocupação japonesa de Timor entre 1941 e 1945. A veromilhança da reconstituição seria reforçada pelo uso de “pedaços de película impressionados pelos próprios japoneses” (Lacerda, 1947, p. 3). O artigo relata que um consultor militar do projeto encontrara, localmente, japoneses destruindo “milhares de fotografias e os preciosos documentários da invasão de Timor” (Lacerda, 1947, p. 3). Porém, o filme não se realizou, desconhecendo-se o paradeiro da película apreendida.

A importância do arquivo militar no registo propagandista de Timor português é sintomática de como a invasão do território na Segunda Guerra e posterior questionamento pela ONU a Portugal, quanto à posse de colónias, foram determinantes na filmagem do território. Os filmes do CAVE procuram evidenciar a existência de um exército equipado, usufruindo das infraestruturas necessárias, apoiado pelas chamadas tropas de “segunda linha”, e divulgar a ação psicossocial em curso. Documentam ainda as dificuldades de circulação e o modo de o Exército operar para combater o isolamento de povoações e quartéis.

Quando o cinema fixou Timor, fê-lo através do patrocínio estatal, sendo a exceção que confirma a regra os dois filmes de propaganda industrial realizados no pós-guerra pelo realizador holandês Toby Berwald, com patrocínio da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho, fundada pelo antigo governador Celestino da Silva. Finda a ocupação, a empresa usou o cinema para promover a recuperação da ilha e a sua atividade através de Colónia de Timor (1949) e Ressurgimento da Agricultura em Timor (1950). Estes filmes usam alguns temas da propaganda nacionalista, mas destacam-se dos filmes que o regime virá a encomendar a realizadores portugueses pela qualidade visual e técnica que lhes confere Berwald, operador da Multifilm Batavia, atualidades cinematográficas holandesas produzidas entre 1946 e 1949 enquanto o governo holandês se recusou a reconhecer a independência da Indonésia.

Matos-Cruz abordou a produção documental de início dos anos 50 referindo que “se verificaram ciclos documentais, focando a natureza e os costumes, por João Mendes ou Ricardo Malheiro, com os auspícios da Agência Geral do Ultramar” (1999, p. 162). Ecos da Visita Ministerial ao Oriente (1952), Timor, Portugal dos Mares do Sul (1953) e Viagem de Sua Excelência o Ministro do Ultramar ao Oriente: Timor (1953), de Ricardo Malheiro, e Timor (1952) e Portugueses no Mundo (1954), de João Mendes, foram, segundo elencou, os títulos estreados, dos quais apenas quatro são hoje visionáveis no ANIM. Fixando danças tradicionais, desfiles de guerreiros e cortejos do trabalho,16 explorando a diferença dos “costumes” sem deixar de sublinhar o “portuguesismo” local, o que se pretende relevar cinematograficamente é que, “do Minho a Timor”, a presença portuguesa resulta do esforço evangelizador e deriva do suposto “luso-tropicalismo”.

Só no final da década de 50 o cinema oficial voltará a filmar Timor, novamente patrocinado pela AGU. Entre 1959 e 1961, estrearam cinco títulos realizados por Miguel Spiguel, dos quais subsistem dois: Apontamentos Turísticos de Timor e No Extremo Oriente Português (1960). Com variações ligeiras, fixam a modernização de Díli, a pesca artesanal, belezas do território, danças tradicionais e lutas de galo, e mostram os cavaleiros de Maubara, cenas de caça e decorações das casas tradicionais. No segundo filme, o comentário alude aos “dóceis portugueses de Timor” sustentando que a dança do loro sae - simulando a decapitação de inimigos - “é só folclore”.

A prática “antropológica” filmada

Embora a produção de filmes “científicos” não tenha sido tão relevante quanto foi noutros países, o arquivo da prática antropológica é central na filmografia de Timor. Inclui os dezasseis filmes da Missão Antropológica de Timor (MAT), dirigida por António de Almeida, e as doze horas e meia de filmagens por Ruy Cinatti.

Os títulos da MAT não se enquadram, com rigor, na categoria dos filmes científicos ou etnográficos, impondo-se analisar criticamente o seu uso na prática antropológica, avaliando-lhes a importância no âmbito da política colonial. O cinema etnográfico não é habitualmente considerado cinema científico. Esta designação refere-se a um conjunto de filmes pertinentes para vários domínios da ciência, mas não para a antropologia. Por outro lado, o cinema etnográfico é uma das práticas mais contestadas de antropologia visual. Numa definição muito estrita, Jay Ruby (2000, p. 239) argumenta que a categorização como filme etnográfico deve aplicar-se a obras de cineastas com formação antropológica combinada com a prática de produção mediática. Adicionalmente, Teresa Castro refere que os filmes etnográficos são “produzidos num contexto disciplinar preciso e que procuram documentar no terreno fenómenos culturais e sociais” (2013, p. 125). Nenhum destes requisitos é cumprido nos filmes da MAT em Timor.

Actividades da Missão Antropológica a Timor enquadra oficialmente a passagem dos cientistas pela ilha. Inicia-se com um desfile de “tipos” timorenses, com a Mocidade Portuguesa17 e tropas locais, empunhando bandeiras portuguesas e fazendo a saudação romana. Prossegue com os cientistas em viagem, de jipe, fixando casas e uma igreja timorenses com influência portuguesa. Os contrastes prosseguem: à preparação tradicional do peixe contrapõe-se a casa do administrador colonial, cuja família desce para o terreiro, hesitando entre a pose para a fotografia e a pretensa naturalidade. O cenário torna-se perturbante quando os cientistas, liderados por Almeida, fazem medições de crânio e testes sanguíneos aos timorenses. Documentam-se depois casas, aspetos paisagísticos e atividades económicas tradicionais. É paradigmático como os filmes da MAT registaram a passagem por Timor e fixam a coexistência entre colonos, que impõem a ordem administrativa com suposta brandura, e colonizados, que aclamam a bandeira portuguesa (a voice over proclama que morreram por ela na Segunda Guerra) enquanto preservam os jogos e as danças fixados em quatro filmes (Danças e Jogos n.º 1, n.º 2, n.º 3 e Danças de Timor).

Os diários de António de Almeida Marques Júnior, escritos na primeira viagem da MAT (de agosto de 1953 a 1954), atestam a natureza pouco científica destes filmes. O operador, Salvador Fernandes, trabalha quase sempre com autonomia e filma ciceroneado pelos administradores coloniais. Referem-se acontecimentos organizados para serem filmados, como a caçada de Caça e Pesca em Timor; ou encenados, como a festa da rainha D. Maria dos Mambai, na despedida do neto Benjamin, antes do regresso aos Pupilos do Exército, em Lisboa. A entrada no diário de 12 de outubro explica: “por volta das 10 horas reconstituiu-se o jantar de ontem, oferecido pela Rainha dos Mambai, a fim de ser filmado.18 Quando se acabou era perto do meio-dia”. A reconstituição pode explicar-se pela necessidade de luz para a filmagem.

Noutra ocasião registada, a da tentativa de filmagens no Colégio de Santa Terezinha, procura “ordenar-se” a realidade encontrada, mandando vestir os alunos com uniformes. A 22 de novembro, o diário menciona:

[…] fomos ao Colégio de Sta. Terezinha, só para rapazes, onde se encontram internados uns duzentos e tal […], mas como não nos esperavam não estavam preparados para serem filmados. Fomos pois, almoçar a casa do Sr. José Ricardo, já eram 13h30. Depois do almoço tornámos ao Colégio de Sta. Terezinha, os rapazes já estavam uniformizados, fizeram alguns exercícios, mas o sol fugiu-nos e não puderam ser filmados. Ficou-se de lá voltar um dia desta semana.

Além dos títulos referidos, filmou-se Timor: Missão Antropológica, Timor - Vistas Gerais, Imagens de Timor, Timor - Política 1, Timor - Política 2, Timor - Política 3, Timor Lautem, todos sem som, e Artes e Ofícios Timorenses, A Reconstrução de Timor e Acção Missionária em Timor, com som.

Os filmes realizados em 1962 por Cinatti são de outra natureza. Este acervo é composto por 250 bobinas com três minutos de duração cada uma. Aquelas filmadas por Cinatti foram registadas com uma câmara portátil de 16mm comprada em Macau quando, em abril de 1962, decide filmar Timor. Outras filmagens foram feitas por Salvador Fernandes, sob orientação de Cinatti. Algumas filmagens de Fernandes - o material nunca foi montado - mostram Cinatti a ordenar os décors ou dando indicações aos figurantes. Não há, nas imagens que tive autorização para visionar - cerca de 155’ -, registo de cerimónias com autoridades coloniais. São apontamentos etnográficos sobre danças, lutas de galos, atividades económicas tradicionais, aspetos da vivência quotidiana, apontamentos arquitetónicos, etc.

Doze horas de filme, mais de mil fotografias, uma dezena de cadernos de apontamentos e vários objetos recolhidos deveriam servir para Cinatti documentar a escrita da sua inacabada tese de doutoramento, com o título provisório A Ecologia, História e Cultura Material do Timor Português, com Especial Referência ao Habitat das Populações Nativas, no âmbito do curso de Antropologia Cultural na Universidade de Oxford.

Peter Stilwell (1995, p. 302) cita uma carta a Jorge de Sena, de 13 de outubro de 1962, em que Cinatti explica a posição quanto ao isolamento político de Portugal e alude aos filmes:

[…] eu morreria de vergonha se abandonasse o meu país numa altura em que todos os outros estão contra ele. Não gosto de Lisboa, ou do ambiente que lá se respira, mas posso fazer qualquer coisa de directamente útil, quer no campo científico, quer no campo social, aqui em Timor, onde já sou irmão, por pacto de sangue, de muitos timorenses. […] Entretanto, estou a fazer um filme (ou vários) do qual já filmei, ou dirigi a filmagem de 6.000 m., e em que Timor há-de aparecer em toda a sua riquíssima variedade natural e humana […].

A ligação entre a prática “científica” e o projeto colonial ditatorial é óbvia nos trabalhos de António de Almeida. A dificuldade de acesso aos filmes de Cinatti inviabiliza, de momento, uma avaliação rigorosa da sua importância. Que não se duvide, porém, da enorme importância do acervo de Cinatti, tanto quanto ao valor fílmico - alguns materiais são poemas visuais em que o olhar do poeta se associa ou impõe ao do investigador - como ao valor antropológico, devido à sua natureza não oficiante, contrariamente aos filmes da MAT.

Conclusão

Apesar da estratificação hierárquica das ex-colónias feita pela ditadura, com a hierarquização social que lhe esteve subjacente, o “Oriente português” continua a ser genericamente estudado sem se proceder, detalhando, quer à análise do discurso sobre cada território, quer ao estudo das particularidades identitárias das comunidades (esquematicamente) representadas, o que é algo que sucede também quanto às ex-colónias de África.

Não obstante a escassez de filmes feitos sobre o “Oriente português”, é reveladora a sua análise no âmbito do cinema de propaganda feito em situação colonial, em que se destacou a produção relativa a Angola e Moçambique.

A caracterização feita através do cinema durante o Estado Novo e a sua articulação com outras formas propagandísticas criou um imaginário que perdura, o que denota como sedimentou, apesar dos poucos filmes realizados. A cristalização de uma retórica luso-tropical/luso-oriental simplista assentou na propagação de um discurso que inclui a afirmação da aceitação da multirracialidade e multiculturalidade e a aceitação da diversidade de cultos - não obstante a natureza evangelizadora especificamente cristã do projeto colonial -, mas que, no que se refere ao Oriente, integrava algumas variações nas representações dos habitantes em cada território. São tanto mais sujeitos de valorização e promoção social quanto mais antiga e reconhecida a sua cultura - caso dos “portugueses” de Macau ou da Índia - ou mais destacados pela assimilação a que foram sujeitos quando, originalmente, a sua cosmogonia assentou menos na oposição entre humano/não humano e natureza/cultura - afirmando-se, nesta linha, a representação dos timorenses como leais à bandeira, docilizados pelo catolicismo e distantes das práticas de head hunting ancestrais.

Analisado quanto à voice over oficiante dos narradores, que funcionam como espécie de ventríloquos da ditadura - e de novo paradoxalmente -, o arquivo fílmico esbate as especificidades culturais mostradas, aqui e ali, fazendo reverberar o discurso da diferença, que se atenua e, a partir dos anos 50, se torna luso-tropicalismo orientalizado.

A Índia portuguesa é apresentada como lugar exemplar no acolhimento ao cristianismo (Stocker, 2005, pp. 51-52), onde se exprimiu, sem reservas, o “modo português de estar no mundo”. Porém, não obstante esta “projeção nacional”, o hinduísmo manteve-se dominante e o português era falado por uma minoria. No século XIX, a luta independentista teve episódios importantes e, após a acalmia trazida pelos direitos garantidos pela Primeira República, o desejo de autonomia foi severamente contrariado pela repressão e limitação dos direitos civis impostos pela ditadura portuguesa. No entanto, e até 1961, nunca cessou a escalada de tensão em que foram sendo expressas exigências de independência administrativa e maiores direitos dos cidadãos.

A representação fílmica de Macau é compósita porque, além deste território e o de Timor terem sido coagidos a manter-se sob administração portuguesa no período ditatorial, tanto há documentários de pura propaganda da harmonia luso-tropical - o que corresponde a uma “fantasia lusitana”, de facto, porque se registaram vários episódios de contestação à administração portuguesa, entre os quais, em Macau, o Motim 1, 2, 3 - feitos sob a égide da ditadura (via AGU), como outros mais ligeiros, de promoção turística e económica - no caso de Macau, tal intensifica-se devido à importância estratégica do território no quadro da Guerra Fria - em que a retórica surge, atenuada, e se potencia a exibição da singularidade exótica caldeada pela cultura portuguesa.

No caso de Timor, o peso do arquivo militar e “científico” comprova tanto o receio que, após a Segunda Guerra, persistiu quanto à possibilidade de invasão - que se efetuou, pela Indonésia, após a reposição da democracia em Portugal - como a “necessidade” da cristianização dos timorenses, vistos como vivendo num estado de quase barbárie - sujeitos a testes de sangue e medições antropométricas ainda em meados do século XX - educados para o trabalho, afastados, por ambas as vias, de práticas ancestrais como a dos cortes de cabeça dos inimigos - cuja representação chegou a estar proibida na dança loro sae. O coronel Leite de Magalhães afirmava, em 1937, que as “populações agora submissas e agradecidas, cujos filhos procuram as escolas e as igrejas para falarem a nossa língua e viverem na doçura da nossa fé” ilustravam a missão colonizadora portuguesa “de nos gastarmos e sofrermos para bem da Humanidade” (1937, pp. 393-394).

Através do cinema de propaganda relativo ao “Oriente português” afirma-se, genericamente, que é uma expressão do “modo português de estar no mundo” e que este, embora a liberdade religiosa existente, assenta no cristianismo. Toda a projeção filmada, não obstante as diferenças entre os territórios a Oriente, ou destes relativamente aos africanos, afirma a exemplaridade da colonização portuguesa, também como resposta ao facto de esta ter sido posta permanentemente em xeque pelos impérios europeus.

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1 O estudo das representações fílmicas do colonialismo iniciou-se em O Cinema sob o Olhar de Salazar (Torgal, 2000), em que, em “Imagens do império”, Jorge Seabra analisa Chaimite (1953), de Jorge Brum do Canto. Mas, no capítulo referido e na tese doutoral de Seabra, África Nossa, faz-se corresponder império colonial e África, não obstante analisar Amor e Dedinhos de Pé (1992), filmado por Luís Filipe Rocha em Macau.

2 Só recentemente foi disponibilizado, no Arquivo Nacional de Imagens em Movimento (ANIM), o espólio fílmico do Instituto de Investigação Científica e Tropical (IICT).

3 “ ‘Oriente português’: ‘que se estrutura num período que decorre dos primeiros anos do século XVI até às primeiras décadas do século XVIII, termo temporal em que se pode considerar estabilizado o processo de estabelecimento do Estado português no Oriente” (Saldanha, ‘Do Oriente Português’, 2004, p. 28)”.

4 Em Portugal, a “coleção colonial” mais importante é da Cinemateca, mas investiguei o que foi disponibilizado do acervo de Ruy Cinatti no Museu de Etnologia, a coleção do Centro de Audiovisuais do Exército (CAVE) e visionei os filmes do IICT.

5 Coordenavam as atividades relativas “à elevação moral e intelectual da população e à exaltação e valorização da individualidade e da unidade universal” (Decreto 42194, 1959, art.º 6.º), o que compreendeu o cinema como atividade cultural privilegiada.

6 Franco Nogueira, Ministro dos Negócios Estrangeiros da ditadura (1961-1969), caracterizou a política indiana, iniciada em 1947, como tendo incluído fases de pressão política, intimidação e debate internacional. Portugal reconheceu a independência da Índia, mas não aceitou discutir a independência da “Índia portuguesa”. Em 1953, a União Indiana acusou o Estado Novo de “política de repressão violenta” e pediu a transferência dos territórios para a União. Sem resposta, a legação indiana ameaça fechar a representação em Lisboa. A resposta portuguesa, a 15 de maio, é intransigente. A 11 junho, encerra a legação indiana em Lisboa. Segundo Nogueira, inicia-se a fase intimidatória.

7 Designação da ex-AGC após a revisão constitucional de 1951. Oficialmente, “ultramar” substitui “colónias” (cf. Piçarra, 2015, p. 138).

8 Freyre usou a expressão luso-tropicalismo em novembro de 1951, numa conferência em Goa, na viagem feita a convite de Sarmento Rodrigues. O conceito foi desenvolvido em Aventura e Rotina e Um Brasileiro em Terras Portuguesas, publicados no Brasil em 1953.

9 Professor primário, em 1916 tornou-se inspetor escolar no Estado da Índia, onde foi convidado pelo Leal Senado para reorganizar o ensino primário de Macau. A tarefa ocupou-o desde setembro de 1919 até 31 de agosto de 1922.

10 Documento 21821, Arquivo de Macau.

11 Documento 21821, Arquivo de Macau.

12 Assinalam o 8.º centenário da Nacionalidade e o 3.º centenário da Restauração da independência de Portugal.

13 Carta do arquivo familiar, cedida por Vera Spiguel.

14 Em 25 de novembro de 1951, assinalando o 17.º aniversário do Cinema Nacional, em Pangim.

15 A imprensa local identificou os repórteres presentes em Goa e não refere Malheiro. Por exemplo, O Heraldo noticiou, na edição de 30 de novembro, que o ministro da Espanha foi acompanhado a Goa por Francisco Centol, “do jornal semanário cinematográfico NO-DO, que se publica em Madrid e que, durante as visitas à Velha Cidade e templos hindus filmou vários aspectos”.

16 Através do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, a ditadura criou os cortejos do trabalho, em geral organizados anualmente nas capitais de distrito e colónias, em que desfilavam trabalhadores de diversas profissões.

17 Organização nacionalista pré-militar, de frequência obrigatória para crianças entre os 7 e 14 anos.

18 Acedi às entradas do diário através de Rita Polloni. Agradeço-lhe a partilha das notas de investigação feitas para a elaboração da tese doutoral Expedições Arqueológicas nos Territórios de Ultramar: Uma Visão da Ciência e da Sociedade Portuguesa do Período Colonial.

Recebido: 05 de Agosto de 2021; Aceito: 24 de Junho de 2022

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