I. Introdução
Pesquisar bacias hidrográficas atualmente, principalmente abordando-as como unidades territoriais de planejamento e gestão, propiciou um aumento considerável da quantidade das pesquisas relacionadas ao arcabouço ambiental. Fatores como a evolução conceitual e tecnológica foram preponderantes para o desenvolvimento de tais pesquisas, pois auxiliam na captação de dados capazes de evidenciar as características dessas bacias hidrográficas e de que forma estas interferem em seus recursos hídricos.
No âmbito brasileiro, a oficialização da bacia hidrográfica como unidade estratégica de gestão foi estabelecida pela Lei nº 9433, de 8 de janeiro de 1997 e determinada pela Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), que agrupa princípios e normas para a gestão dos recursos hídricos. É de ampla importância para gestores e pesquisadores a compreensão de seu conceito (República Brasileira, 1997). Apesar de ser uma estrutura institucional complexa e onerosa que possibilitou compreender os problemas socioambentais do passado, ainda é aplicada de modo superficial nas bacias hidrográficas brasileiras, visto que aspectos económicos são beneficiados no uso das águas, ao passo que problemas sociais e ambientais criados pelo próprio desenvolvimento se elevam e se interagem de forma conflitante nas bacias hidrográficas (Ioris, 2006).
Ao observar a bacia hidrográfica para além de seus aspectos legais, autores como Christofoletti (1980), Leal (2000), Piroli (2013), entre outros a tratam como um sistema ambiental. Sob tal ótica, sua utilização remete à ideia de que seus componentes não são estáveis (sistema aberto) e que ocorrem intensos processos de desconstrução de seus aspectos naturais.
Diante desse contínuo processo, sobretudo antrópico, as águas superficiais se tornam o principal indicador da qualidade ambiental das bacias hidrográficas, pois como afirmam Piroli (2013) e Brugnolli (2020), ela é o elo entre os componentes, pois a bacia hidrográfica é uma porção territorial delimitada por divisores de água na qual ocorrem dinâmicas constantes e alterações mútuas entre todos os seus componentes, logo o resultado dessas interações influem para as águas.
Com isso, tais características, ao tratar a Bacia Hidrográfica do Córrego Bonito - BHCB, apontam para o sistema cárstico presente em cerca de 55% da bacia hidrográfica (sobretudo no alto e médio curso). Isso implica em muitas das características ligadas ao solo, relevo, uso antrópico das terras e recursos hídricos. Dessa forma, o elemento cárstico e suas funções desempenham papel de destaque em bacias hidrográficas com essa particularidade.
Em regiões de clima tropical e úmido, como Bonito, Mato Grosso do Sul - Brasil, o poder de dissolução se desenvolve de maneira acelerada (Bigarella et al., 1994; Christofoletti, 1980; Júnior et al., 2008; Kohler & Castro, 2009; Piló, 2000; Travassos, 2019), sobretudo diante carbonato de cálcio (CaCO3) e magnésio (CaMg(CO3)2), que pela reação de hidrólise da calcita, resulta no bicarbonato de cálcio (Ca(HO3)2), o que representa um alto grau de dissolução dessas rochas solúveis. Estando localizada em clima regional com participação efetiva da massa tropical continental (Zavattini, 1992), as feições cársticas são nítidas na paisagem e ainda estão em contínuo desenvolvimento.
Desta forma, a água se torna o principal agente modelador das rochas e atribui a esses sistemas uma fragilidade, em que a dissolução do calcário é mais acelerada do que em sistemas terrígenos. Todavia, ante ao avanço das atividades antrópicas, outras inquietações passam a ser consideradas em análises de bacias hidrográfica, como a BHCB.
Waele et al. (2011) afirmam que além da fragilidade dos calcários frente à sua dissolução, importa destacar outras quatro situações que se tornam ameaçadoras e prejudiciais ao sistema cárstico: a prevalência de drenagens criptorreicas em que possíveis poluentes podem atingir rapidamente os aquíferos cársticos; a dificuldade de prever uma resposta do sistema cárstico ante ao avanço antrópico sobre a área; baixa resiliência dos componentes geomórficos e hidrológicos quando afetados pela ação antrópica; e a alta solubilidade e baixa resistência mecânica das rochas.
Diante de tais afirmações, nota-se que as preocupações acerca do carste advêm, em sua maioria, das ações derivadas da influência humana sobre o meio, que modificam a paisagem e impactam negativamente nos recursos hídricos. Liu et al. (2014) resgatam a ideia de que a mudança massiva no uso e cobertura das terras são mudanças globais, mas são sentidas de forma mais clara no carste, sobretudo por essa fragilidade.
Uma das principais ações antrópicas inseridas nos sistemas cársticos é com relação à retirada da vegetação natural para a instauração das atividades agrícolas, o que provoca mudanças no ciclo hidrológico, além de trazer ao sistema uma grande carga de agroquímicos. Gillieson e Thurgate (1999, p. 162) afirmam que tal alteração no ciclo está associada à remoção da cobertura vegetal, uma vez que há evidências de que os atuais sistemas cársticos são cada vez mais afetados pela agricultura, devido à fertilidade natural advinda do calcário. Por isso, Boggiani et al. (2002), em seu estudo sobre a região de Bonito, afirmam que essas características trazem diversas preocupações ambientais, sobretudo pela rápida ocupação da área, que elevou a retirada das vegetações florestais para a entrada de monoculturas e pastagens.
A ocupação e alteração das áreas da BHCB causam perturbações ao carste e às águas superficiais pelo uso de fertilizantes, adubos, pesticidas, entre outros contaminantes que podem atingir os recursos hídricos, causando impactos negativos em seus parâmetros físicos e químicos. De tal forma, os sedimentos e resíduos transportados pelas águas pluviais geram impactos que, muitas vezes, são irreversíveis em um sistema cárstico (Brugnolli, 2020).
Logo, as águas superficiais se tornam importantes indicadores ambientais em que qualquer alteração na BHCB, não importa sua magnitude, vai incidir sobre as águas, e a melhor forma de compreender a qualidade ambiental de uma bacia hidrográfica é por meio do monitoramento e análise de seus parâmetros físicos e químicos.
Tais parâmetros podem ser analisados mediante as resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), tanto a resolução no 357/2005, que dispõe sobre a classificação dos recursos hídricos e diretrizes ambientais para o seu enquadramento, juntamente aos parâmetros para a definição das classes de enquadramento; quanto a resolução nº 430/2011, que discute sobre as condições e padrões de lançamento de efluentes (Conselho Nacional do Meio Ambiente; Governo do Brasil, 2005, 2011).
O objetivo principal deste artigo é analisar a BHCB mediante uma interpretação do uso e cobertura das terras diante de uma evolução espaço-temporal entre os anos de 1984 e 2017, identificando quais seus impactos negativos que incidem sobre os parâmetros físicos e químicos das águas, enquadrando-as nas resoluções supracitadas.
A BHCB encontra-se situada a sudoeste do estado de Mato Grosso do Sul - Brasil (fig. 1), com uma área de 74,97km², em que seu manancial principal (córrego Bonito) apresenta 12,90km de extensão. Seus principais afluentes são os córregos Restinga e Saladeiro, possuindo suas nascentes e boa parte de seu alto e médio curso em sistema cárstico.
1. Processamento digital de imagens de satélite: o uso e cobertura das terras
O mapeamento do uso e cobertura das terras foi essencial na compreensão da maneira como a BHCB foi ocupada ao longo dos anos e seu atual uso das terras. Para tanto, foi indispensável o emprego dos Sistemas de Informação Geográfica Spring 5.2.7 e ArcGis 10® para manuseio e processamento das imagens de satélite.
As imagens de satélite são uma poderosa ferramenta para, a custos baixos, trazer informações acerca do uso e cobertura das terras atuais e do passado. Seu formato possibilita a utilização de classificações, e o processamento digital de imagens mostra seu valor com resultados cada vez mais concretos e aplicáveis à realidade terrestre (Rocha, 2005).
Dessa forma, foram utilizadas imagens disponibilizadas gratuitamente por meio do catálogo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE, n.d.) para a LandSat 5, sensor TM, do ano de 1984, órbita 224, pontos 74 e 75. Já para o ano de 2017, foi utilizada a imagem Sentinel 2A, sensor MSI, órbita 135, ponto 101, disponibilizada pelo Serviço Geológico dos Estados Unidos (United States Geological Survey [USGS], n.d.).
O mapeamento do uso e cobertura das terras abrangeu algumas etapas, seguidas de acordo com a proposta de Brugnolli (2016), em que o autor utilizou os mesmos SIGs, em uma sequência metodológica que se iniciou com a criação de um banco de dados geográficos (Geodatabase) em ArcGis 10®, e posteriormente realizados os primeiros tratamentos nas imagens com as composições coloridas e realce das bandas espectrais, que no caso da Landsat 5, utiliza-se as bandas do visível 3, 4 e 5; já para as imagens do satélite Sentinel 2A, utilizou-se as bandas do visível 2, 3 e 4.
Apesar de apresentarem resoluções espaciais distintas (Landsat 5 - 30 metros; Sentinel 2A - 10 metros), ambas exibem resoluções que atendem a escala pretendida de análise e aos objetivos propostos nesse artigo. Martinelli (1994) destaca que a escala está profundamente relacionada à Área Mínima Mapeável e que estes devem obedecer aos objetivos pertinentes à cartografia que será apresentada e ao tipo de análise. Logo, a Área Mínima Mapeável nada mais é do que a extensão do erro admissível em uma cartografia elaborada, sendo determinada de acordo com as menores dimensões capazes de serem delimitadas de forma nítida no produto cartográfico, sem prejuízo ao dado espacial. Como esta pesquisa objetivou mapas na escala de 1:30 000, isso implica uma Área Mínima Mapeável compatível com as resoluções espaciais das imagens de satélite utilizadas.
Tais imagens obtidas foram exportadas para o Spring 5.2.7, onde se iniciou a segmentação por meio do método de crescimento de regiões (não supervisionada), em que para pixels atingiu-se o valor de quinze (15) e para a similaridade, valor de um (1). A segmentação é um processo, segundo Bacani (2010), que busca um valor mínimo em que duas classes são consideradas similares e agrupadas em uma única região, enquanto o pixel de área é definido pelo número mínimo de pixels que uma região necessita para que seja individualizada, sendo necessárias avaliações experimentais até haver uma discriminação das regiões pertencentes às classes temáticas.
Logo após, realizou-se a classificação pelo classificador automático Histograma, algoritmo de agrupamento (clustering), que utiliza um método em que computa a distinção entre os histogramas das regiões. Tal método abstrai os temas próximos (cada tema apresenta um comportamento espectral dos alvos) segundo suas assinaturas espectrais. Assim, optou-se por cinquenta temas, que obtêm um maior detalhamento, reduz o conflito destes e auxilia na classificação final e visualização.
Após esse procedimento automatizado, realiza-se a chamada reclassificação, em que cada polígono é conferido mediante a interpretação das imagens de satélite; conhecimento do pesquisador a respeito do comportamento espectral, textura, padrão e forma dos alvos; conhecimento do pesquisador a respeito da área de estudo; e saídas de campo para conferência do plano virtual com a realidade terrestre.
Com isso, definiram-se oito classes de uso das terras, são elas: Áreas Urbanizadas; Culturas; Pastagem; Solo Exposto; Vegetação Florestal; Áreas Úmidas com Vegetação Florestal; Áreas Úmidas com Pastagem; e Massas de Água. Para suas identificações nas imagens de satélite, criaram-se as cartas imagem de 1984 e 2017 com suas respectivas chaves de interpretação (fig. 2).
Essas classes foram definidas segundo seu dossel vegetativo, densidade e porte da vegetação, proteção ao solo e função exercida nesse sistema bacia hidrográfica. As áreas urbanizadas corresponderam à sede municipal de Bonito e a alguns atrativos turísticos; as culturas abrangeram, em sua totalidade, lavouras de soja; as pastagens englobaram vegetações rasteiras em que há criação de gado, ou mesmo, um pasto sem utilização econômica aparente; as áreas de solo exposto abarcaram aquelas sem qualquer tipo de vegetação que recobra o solo e o proteja contra as intempéries; a silvicultura abrangeu áreas de plantio de eucalipto; a vegetação florestal englobou áreas de resquícios de mata atlântica e cerrado ainda preservados, com densidade elevada e um dossel vegetativo bem composto; as áreas úmidas com vegetação florestal estão localizadas em terrenos permanentemente ou parcialmente saturados em água, isso faz com que seu dossel vegetativo seja mais denso e tenha uma característica ligeiramente distinta nas espécies vegetais; as áreas úmidas com pastagem são regiões de gramíneas em solos hidromórficos, fazendo com que suas características se vinculem às áreas de pousio.
Na interpretação dos problemas ambientais, foram realizadas cinco saídas de campo durante os anos de 2016 (dezembro), 2017 (março e setembro) e 2018 (dezembro). Diante destas saídas, foram identificados diversos potenciais causadores de contaminação ao solo e da água, como: desenvolvimento de erosões, despejo de resíduos sólidos, usinas de produção de massa asfáltica, atrativos turísticos, pontes sobre mananciais, estradas que cortam o leito fluvial, entre outros impactos derivados do uso intensivo das terras. Em áreas onde não havia acesso, seja pela falta de estradas ou pela proibição por parte dos donos das propriedades rurais, foram utilizadas as imagens de satélite como auxílio à identificação destes problemas ambientais supracitados.
2. A qualidade das águas superficiais
No que diz respeito à análise da qualidade das águas superficiais, observou-se sua velocidade e os parâmetros físicos e químicos em cinco pontos de coleta, ao longo dos três mananciais mais importantes da BHCB, os córregos Bonito, Saladeiro e Restinga (fig. 3), considerando alguns fatores como: a facilidade de acesso aos mananciais por meio de estradas vicinais; pontos considerados potenciais de contaminação e alteração nos parâmetros físicos e químicos das águas superficiais, ou seja, próximos às culturas, pastagens e áreas urbanizadas; e pontos com mata ciliar bem composta, o que pode comprovar as influências que estas trazem para a qualidade das águas.
Os parâmetros aferidos e enquadrados nas resoluções 357/2005 e 430/2011 do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente; Governo do Brasil, 2005, 2011) foram: Oxigênio Dissolvido (OD; miligramas por litro - mg/L); Potencial Hidrogeniônico - pH; Temperatura da água (graus Celsius - ºC); Condutividade Elétrica (CE; micro siemens por centímetro - uS/cm); e Turbidez (Unidades Nefelométricas de Turbidez - NTU). Ainda foram mensurados alguns parâmetros auxiliares como: Potencial Redox (mili-Volts - mV); Sólidos Totais Dissolvidos (TDS; miligramas por litro - mg/L); e Salinidade (quadro I). A obtenção da velocidade de fluxo das águas superficiais ocorreu mediante a mensuração em campo, por meio do equipamento Global Water FP101 - FP201 Global Flow Probe e na análise dos parâmetros para mensuração da qualidade das águas superficiais da BHCB, foi utilizado o Horiba U-50 Series Multiparameter water Quality Unit’s.
Fonte: Adaptado de Conselho Nacional do Meio Ambiente, Governo do Brasil (2005, 2011); Brugnolli et al. (2019)
III. Resultados e discussão
A análise dos resultados se inicia com a interpretação da evolução espacial temporal no que tange ao uso e cobertura das terras nos anos de 1984 e 2017. Esse hiato de 33 anos foi capaz de evidenciar as alterações e aumento do uso antrópico sobre esta bacia hidrográfica cárstica, conforme as figuras 4 e 5 e o quadro II, e muitos destes usos reinantes atualmente traduzem em graves problemas ambientais, como visualizado na figura a seguir.
Diante destes dados, mostra-se um avanço das áreas urbanizadas que a fez passar de 1,83km² em 1984, para 5,56km² em 2017, representando uma expansão de cerca de 300% da área urbana do município de Bonito. Tal fato traduziu em um crescimento, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, n.d), de 11 002 habitantes e 2292 domicílios para aproximadamente (previsão para 2020) 16 530 habitantes e 6175 domicílios.
Mostra-se que, apesar da sede municipal de Bonito ter crescido não só em área de abrangência como quase dobrado seu número de habitantes neste hiato de 33 anos, ainda é um município que carece de maior infraestrutura, já que sua economia é estritamente relacionada a dois segmentos econômicos distintos: o turismo e a agricultura. Atualmente é um dos principais polos da agricultura no estado de Mato Grosso do Sul, sobretudo diante do avanço das lavouras de soja, portanto, a sede municipal já inicia um processo de instalação de empresas voltadas às vendas de maquinários, adubos e fertilizantes.
Do mesmo modo, este crescimento populacional trouxe consigo vários locais em que há problemas relacionados com despejos irregulares de resíduos sólidos, especialmente em pontes que perpassam os mananciais hídricos. Ainda relacionado à área urbana de Bonito, identificam-se problemas ambientais relacionados à Estação de Tratamento de Esgoto (ETE), que contribui para a contaminação do córrego Saladeiro, conforme foi discutido na análise das águas superficiais.
Em relação às culturas, mostra-se uma inserção destas na BHCB em meados da década de 2000, tanto pela constatação da inexistência desse uso no ano de 1984, bem como pela afirmação de Ribeiro (2017), Brugnolli et al. (2019) e Brugnolli (2020) de que as lavouras obtiveram um contínuo crescimento na década de 1980 (período em que se iniciaram) até a década de 1990, alcançando assim, um total de 200km² no município de Bonito. Entretanto, houve um declínio até o ano de 2002 e, a partir deste ano, ocorre um aumento gradativo até os dias atuais (Ribeiro, 2017).
Portanto, essa atitude cíclica evidenciou, no período de 2017, uma elevação para 7,90km² de área de culturas localizadas em terrenos cársticos, em que a fertilidade advinda do calcário somado ao relevo aplainado dessas áreas, favorecem a entrada e avanço das culturas, que no caso da BHCB ficou caracterizada pelo plantio de soja para a produção do mercado global de commodities.
O grande e principal problema deste tipo de cultura é a entressafra, que ocasiona a retirada total da proteção ao solo contra as águas pluviais, e como consequência, ocorre o arraste de sedimentos e turvamento dos recursos hídricos dessa bacia hidrográfica. Há a necessidade de destacar que as lavouras existentes na BHCB necessitam, obrigatoriamente, de curvas de nível com dimensionamento por profissional habilitado, sob pena de embargo pelas autoridades competentes, além de práticas maiores de conservação que necessitam ser realizadas, sobretudo diante da mecanização e do uso de pulverizantes agrícolas e agrotóxicos, que trazem consigo uma série de problemas ambientais, não apenas nas vegetações, mas também nos recursos hídricos.
Com relação à pulverização agrícola, essa traz inúmeros problemas no que diz respeito às águas superficiais e subterrâneas, tanto que a reportagem da Ecologia e Ação (ECOA, 2019), por meio de uma pesquisa vinculada ao Repórter Brasil, Public Eye e Agência Pública com dados disponibilizados pelo Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (SISAGUA), do Ministério da Saúde, demonstrou que o efeito do avanço das plantações de grãos na região de Bonito vem causando a contaminação das águas utilizadas para abastecimento da cidade, e mediante análises realizadas, constataram-se 26 agrotóxicos, 11 deles associados a doenças crônicas. Por tais fatos, as culturas se tornaram o principal problema dessa bacia hidrográfica.
Não menos impactante, as pastagens adentram nessa análise também como causadoras de problemas ambientais, mais evidentes na relação com as diversas erosões existentes. Tais erosões advêm da falta ou ineficácia de um manejo adequado em suas terras, visto que a grande maioria dos 37,58km² de pastagens apresentam problemas no que diz respeito ao manejo das terras, amplamente discutido em Brugnolli (2020). Assim, as pastagens obtiveram uma redução de suas terras, sobretudo pelo aumento das culturas que adentraram essas áreas.
As pastagens no município de Bonito, mais precisamente na BHCB, estão presentes desde meados do século XX, período em que a pecuária para criação de gado começou a ocupar com maior intensidade as terras da bacia hidrográfica. Conforme Ribeiro (2017), existia um predomínio de pastagem no município de Bonito na década de 1960, que chegou a ocupar cerca de 2500km² com aproximadamente 57 000 cabeças de gado, elevando-se assim, de acordo com o IBGE (2010), para 3190km² e mais de 340 000 cabeças de gado.
Por outro lado, desde o início da década de 2010, notou-se uma redução gradativa das pastagens, justamente pela entrada das culturas, bem como surgem nessas áreas a presença de solo exposto, seja para um futuro plantio de soja, como também pastagens degradadas que perderam a vegetação que ali existia, o que deixa o solo compactado e favorece o arraste de sedimentos pelo escoamento superficial, desenvolvendo, assim, processos erosicionais.
Um dos locais constatados com solo exposto no ano de 2017, foi o aterro controlado de Bonito, localizado ao norte da sede municipal e que apresenta problemas ambientais notáveis (fig. 6). Segundo informações obtidas junto à Prefeitura Municipal de Bonito (2019), o aterro exibe controle e separação dos tipos de resíduos em setores e/ou valas específicas que, posteriormente, recebem cobertura. Entretanto, não recebe a necessária impermeabilização do solo, dispersão de gases nem tratamento do chorume.
Outros problemas provenientes desse aterro foram encontrados em saídas de campo, tais como sua localização, já que está situado no topo de uma vertente em que o arraste de sedimentos trará sedimentos aos mananciais próximos. Além disso, percebeu-se o mau cheiro, animais sobrevoando a região e a existência de materiais que possibilitam o acúmulo de água, como pneus e garrafas, propiciando a proliferação dos mosquitos transmissores da dengue e outras doenças.
Por muitas vezes e em diversos locais nas saídas de campo, foram constatadas caçambas para descarte do lixo esgotadas e seu entorno tomado por lixo e mau cheiro. Esses descartes inadequados não só são considerados problemas ambientais, mas também um risco à população, visto que no momento em são decompostos, podem contaminar o solo e as águas subterrâneas, com a possibilidade do carreamento desses materiais aos mananciais, o que provocaria alterações em sua qualidade.
Ao considerar as vegetações florestais, notou-se que estas se mostraram reduzidas em ambos os anos de análise, não alcançando 40% do total da área. O que torna ainda mais preocupante é que essas vegetações reduziram suas abrangências, passando de 26,60km² para 19,36km², especialmente pela entrada de culturas e o avanço de pastagens em algumas áreas próximas aos tálus dos morros residuais do médio e baixo curso da BHCB. A redução prejudica os mananciais hídricos, ainda mais com a retirada de matas ciliares.
As áreas florestais que se mantiveram até certo ponto resistentes são aquelas relacionadas aos ambientes úmidos, que mostraram uma redução mínima de 0,47km², que a fez alcançar um total de 1,80km² no ano de 2017. Consequentemente, essas áreas úmidas de pastagens apresentaram uma elevação de 0,30km² (1984) para 1,31km² (2017), ou seja, inversamente ao que ocorreu com as áreas úmidas florestais. O que traz uma conclusão de que essas áreas de vegetação florestal, aos poucos, estão sendo tomadas pelas pastagens, permanecendo em ambientes úmidos, mas gradativamente perdendo sua umidade, e a médio e longo prazo, tendem a perder a capacidade de saturação do solo.
Tais características do uso e cobertura das terras, especialmente com a redução da vegetação florestal, aumento gradativo das culturas, a falta de manejo das pastagens e os problemas ambientais encontrados na BHCB, traduzem muitos dos parâmetros físicos e químicos das águas superficiais dos cinco pontos de coleta (quadro III).
O córrego Bonito (ponto 1) possui algumas características de destaque: a primeira delas é a baixa turbidez, resultado do pH alcalino das águas, que deixa os sólidos suspensos na água mais densos, causando a decantação destes no leito fluvial. Esse pH alcalino é resultado das rochas ricas em carbonato de cálcio derivadas do sistema cárstico, que trazem essas melhorias no que diz respeito a turbidez (enquadrando-a na classe Especial), mas por outro lado, traz uma elevação dos sólidos dissolvidos na água, aumentando sua condutividade elétrica.
Mantovani et al. (2016) também salientam essa questão, afirmando que o pH é alcalino devido à carstificação das rochas carbonatadas, em que ocorre um armazenamento de água, que torna a natureza da água superficial alcalina-terrosa e cálcio-magnesiana.
Entretanto, destacam-se neste ponto, fortes indícios de eutrofização derivados da grande quantidade de despejo de resíduos sólidos, que causam mau cheiro e contaminam o manancial. Estes resíduos possuem matéria orgânica e proferem ao manancial uma série de compostos químicos e biológicos que alteram sua qualidade. Assim, seus parâmetros físico-químicos apontaram problemas no que diz respeito à condutividade elétrica, alcançando 727,67µS/cm, o maior índice de toda a bacia hidrográfica.
Outro parâmetro alterado pela entrada desses resíduos, possivelmente domésticos, comerciais e públicos, foi o TDS, que alcançou níveis preocupantes de enquadramento, com 465,33mg/L, já se enquadrando na classe III, o que limita sua utilização para consumo humano e torna necessário um tratamento convencional e avançado para melhoria da qualidade de suas águas (Conselho Nacional do Meio Ambiente, Governo do Brasil, 2005). Esses valores de TDS e CE alteram a salinidade das águas e chegam aos maiores níveis encontrados na BHCB, que é 0,04%.
A turbidez, pelos motivos citados anteriormente, alcançou 7,14NTU, valores aceitáveis e enquadrados na classe Especial. Com relação ao OD, observa-se um índice positivo, resultado da alta velocidade de fluxo das águas, que causa um turbilhamento e oxigena a água por meio de pequenas corredeiras poucos metros a montante do ponto de coleta.
O ponto 2 de coleta das águas (córrego Restinga) apresentou fatores igualmente inquietantes, como o alto ORP que chegou a 321,50mV, e o TDS que assumiu níveis alarmantes. Quanto maior o potencial redox, mais deficitário é o saneamento, pois seus índices expressam a entrada de compostos oxidantes ou redutores na água (Brugnolli, 2020).
Apesar dessa elevação nos parâmetros supracitados, o córrego Restinga ainda não possuiu índices de turbidez elevados, sobretudo por sua nascente e alto curso estarem sobre rochas carbonáticas, fato que explica o pH alcalino. Contudo, a falta de mata ciliar em alguns locais auxilia na alteração da qualidade de suas águas, pois foram constatadas residências em suas margens e uma pequena quantidade de resíduos domésticos, que não alterou de forma expressiva o OD devido ao alto turbilhonamento das águas com sua velocidade (25,00m/s) e pequenas quedas de água ao longo de seu canal. Entretanto, preocupações acerca da retirada da vegetação e da entrada de resíduos devem ser destacados.
O córrego Restinga (ponto 2) é um importante afluente do córrego Bonito (pontos 1 e 5), contudo, a qualidade de suas águas está atrelada ao despejo de efluentes domiciliares, comerciais e públicos. O despejo de compostos resulta na proliferação de micro-organismos e ocasiona a elevação do TDS e CE, que apresentaram os maiores índices entre todos os pontos de coleta.
O córrego Saladeiro foi representado por meio de dois pontos de coleta das águas, o primeiro (alto curso e ponto 3 de coleta) traz características mais atreladas ao sistema cárstico, pois ainda não adentrou as áreas urbanizadas. Logo, sua turbidez no médio curso permaneceu relativamente baixa com 6,08NTU, contudo, eleva-se para 41,40NTU no ponto 4. Este ponto 4 (baixo curso) está a jusante do perímetro urbano de Bonito e da ETE da Empresa de Saneamento Básico de Mato Grosso do Sul (SANESUL) e apontam dois dos principais contaminadores das águas superficiais. A diferença entre esses pontos vai além das atividades antrópicas.
A CE foi diminuída de forma expressiva do ponto 3 para o 4 (616,00µS/cm para 324,50µS/cm). Somado a isso, desde a nascente, o córrego sai de uma superfície cárstica para uma planície alúvio-terrígena caracterizada pela redução na declividade. Por conseguinte, a velocidade de fluxo do manancial foi reduzida de 5,28m/s para 0,25m/s, o que já impacta no OD, de 8,63mg/L para 6,59mg/L. Tal fato ainda não causa problemas no enquadramento (estão no intervalo da classe I), mas trouxe preocupações para uma eventual e contínua queda no OD.
A piora do TDS no verão (de 282,00mV para 334,00mV) e, consequentemente, na salinidade, ocorre pelo despejo de efluentes da cidade de Bonito, bem como da ETE. A salinidade de um sistema fluvial está atrelada diretamente com a entrada de compostos químicos, físicos e biológicos no recurso hídrico. No caso da BHCB, todos os pontos obtiveram uma CE considerável, o que eleva os níveis de salinidade, mas não necessariamente restringem o uso das águas devido às características naturais da região. Entretanto, deve-se ressaltar que valores elevados já indicam possíveis contaminações, sejam elas naturais e/ou, principalmente, antrópicas.
Mesmo tratado, as características do efluente, no momento que são dispersados nos mananciais, dependem diretamente da vazão lançada, do volume de água deste manancial impactado e de sua capacidade de autodepuração. O córrego Saladeiro exibe pouca vazão e velocidade de fluxo, e com o lançamento do efluente, as águas ficam turvas e os sólidos impedem a penetração da luz, reduz-se a temperatura, eleva-se a turbidez e ocorre a redução do OD, o que resulta em modificações em suas características naturais a jusante da ETE.
Observou-se, assim, que o córrego Saladeiro, em situação natural, retrata características das águas superficiais de ambientes cársticos, ou seja, uma água translúcida, pH alcalino e OD elevado, sobretudo por seu alto curso possuir contato com as rochas carbonatadas. Entretanto, foram notáveis as alterações de sua qualidade devido à presença da ETE. A alteração da qualidade desse manancial tornou-se nitidamente visível em épocas chuvosas (constatada mediante as várias saídas de campo), já que sua vazão é maior e ocorre, com maior frequência, o despejo do esgoto tratado em seu leito (fig. 7).
Portanto, alguns riscos e problemas ambientais já se refletem na BHCB e são sentidos atualmente, o que torna necessária maior atenção e monitoramento nos lançamentos destes efluentes. Uma possível expansão da capacidade do tratamento do esgoto de Bonito não é necessária, pois, segundo a SANESUL (n.d.), as quatro estações elevatórias de esgoto existentes na ETE possuem uma capacidade para 57 500 moradores, e Bonito possui 19 587 habitantes, com uma vazão de 80l/s.
Com isso, mostra-se que o grande problema enfrentado pela ETE diz respeito aos períodos chuvosos, ao despejo constante do esgoto tratado e à eficiência desse tratamento, visto que todo o baixo curso do córrego Saladeiro ficou comprometido diante de tais despejos. Outra ação responsável por depreciar a qualidade dos recursos hídricos identificada ao longo da área urbana de Bonito prende-se com os despejos de resíduos sólidos pela população nas margens dos mananciais, sobretudo nos córregos Bonito, Restinga e Saladeiro, despejos estes também encontrados nas estradas de acesso a Bonito.
Por fim, o ponto 5 está localizado a jusante (cerca de 150m) da foz do córrego Saladeiro, que devido ao maior volume de água do córrego Bonito, não se apresentou impactado pela ETE. Mas alguns destaques são importantes: o primeiro deles é que esta área apresenta vegetação florestal com grande densidade, que acaba atuando como um filtro natural aos sedimentos transportados, reduzindo sua turbidez.
Por outro lado, as altas CE e TDS que também estavam altas no ponto 1 (o mesmo córrego) se mantiveram elevadas, demonstrando que este córrego necessita de maiores extensões para uma autodepuração. Tal depuração fica ainda mais comprometida pela entrada de dois córregos (Restinga e Saladeiro) com contaminantes. Outro destaque é que o pH inicia uma redução, especialmente pelo contato com rochas terrígenas do médio e baixo curso.
Nessa premissa, os recursos hídricos apresentaram propriedades singulares, como a translucidez das águas devido ao carbonato de cálcio e magnésio existentes nas rochas, que reduzem a floculação. Entretanto, a presença marcante do uso antrópico das terras vem trazendo contaminantes que já transmitem alterações nos parâmetros físicos e químicos. É possível constatar que na BHCB, suas águas foram enquadradas (média) na classe II, porém, suas alterações são pontuais e, em alguns casos, preocupantes, relacionadas a elementos físicos (como as rochas carbonatadas), ou ainda pela ação antrópica (contaminação pelas propriedades rurais, arraste de sedimentos, sede municipal, ETE, dentre outros fatores que foram analisados como potenciais causadores de alterações).
IV. Conclusões
Trabalhar com a análise do uso e cobertura das terras, os problemas ambientais e as águas superficiais mediante as técnicas utilizadas, fizeram com que o processamento digital de imagens, as saídas de campo em diferentes períodos, os procedimentos para a obtenção dos parâmetros físico-químicos das águas e os pontos de coleta previamente selecionados, auxiliassem para que os objetivos traçados no início da pesquisa fossem alcançados.
De fato, a BHCB está impactada em seu contexto ambiental, com erosões, despejo de resíduos sólidos, contaminação aparente nas águas e que causaram uma alta CE (sempre enquadrada na classe IV), TDS e Salinidade. Tais questões relacionadas às águas estão atreladas tanto aos aspectos antrópicos vinculados à retirada da vegetação nativa, elevação das áreas urbanizadas e aquelas destinadas à produção de soja, quanto vinculadas às características cársticas da região. Ao inverso, destaca-se aspectos positivos do sistema cárstico, como ser propício à redução da turbidez e, devido às várias corredeiras, eleva-se o OD pelo turbilhonamento.
Com seu enquadramento na Classe II, a BHCB tem suas águas preconizadas para: abastecimento para consumo humano, após tratamento convencional; a proteção das comunidades aquáticas; a recreação de contato primário, tais como natação, esqui aquático e mergulho; a irrigação de hortaliças, plantas frutíferas e de parques, jardins, campos de esporte e lazer, com os quais o público possa vir a ter contato direto; a aquicultura e a atividade de pesca. Apenas fica a ressalva de que águas como esta, caracterizadas por serem ricas em bicarbonato de cálcio e magnésio, são consideradas águas “duras” e, em organismos mais sensíveis, pode ter efeito laxativo.
O município de Bonito, mundialmente reconhecido pelas águas translúcidas de seus principais mananciais, “escondem” mananciais degradados e com baixa qualidade, além de águas totalmente alteradas por diversos problemas ambientais. Seja pelo profundo processo de mudança do uso das terras, que aumenta a retirada da vegetação nativa e prolifera culturas ao longo de suas terras, bem como pelo constante despejo de resíduos sólidos e descargas de esgotos tratados que alteram todo o equilíbrio natural dos córregos. Com este cenário, os mananciais que naturalmente seriam translúcidos e de boa qualidade, dão lugar a um sistema fluvial com sérias preocupações a médio e longo prazo.
Por essa razão, recomenda-se que seja revisto o plano diretor municipal de Bonito e que se leve em consideração a fragilidade de seu geossistema cárstico, facilmente contaminável pelas atividades antrópicas, sobretudo a agricultura da soja e pelas pastagens sem manejo, além da carência de drenagem adequada das estradas que cortam a bacia hidrográfica, e que estão comprometendo a qualidade físico-química de suas águas, que constituem uma das maiores riquezas de Bonito.
Contributos dos/as autores/as
Rafael Brugnolli Medeiros: Conceptualização; Metodologia; Software; Validação; Saídas de Campo; Análise formal; Investigação; Escrita - preparação do esboço original; Redação - revisão e edição; Aquisição de financiamento. André Luiz Pinto: Metodologia; Saídas de Campo; Análise formal; Investigação; Recursos; Redação - revisão e edição; Supervisão. Lorrane Barbosa Alves: Conceptualização; Metodologia; Análise formal; Investigação; Redação - revisão e edição.