I. Introdução
A área de xisto do centro do País, profundamente entalhada pelo Zêzere e pelos seus afluentes, é singularmente desprovida de núcleos urbanos e só tarde se abriu a novas vias de comunicação. É conhecida a pobreza dos solos formados nesta rocha, dissecada num mar de cabeços que, multiplicando os pendores, reduz a espessura deles a dimensões esqueléticas. Por isso, o povoamento, em unidades numerosas mas sempre modestas, acompanha o fundo dos vales e as beiradas dos ribeiros, aproveita uma e outra rechã e apenas se desenvolve nos alvéolos tectónicos ou erosivos - sítios de eleição tanto da policultura regada como do olival, onde se encontram as maiores povoações. A ocupação agrária é assim descontínua e insular, em manchas ou faixas, herdadas de arroteias que exploram o menos miserável desta terra pobre. Cabeços e encostas ficaram de charneca, em que, por selecção das espécies comestíveis pelo gado, predomina a esteva, com a sua resina odorante no tempo quente e, na Primavera, as grandes flores brancas, duma beleza intensa mas efémera. No princípio deste século, por iniciativa dos camponeses e antes que a intervenção do Estado lhes confiscasse os baldios, o pinhal veio a cobrir estas terras sáfaras, até então frequentadas por cabreiros e carvoeiros. (Ribeiro, 1970, p. 103-112)
Estas são palavras de Mestre Orlando Ribeiro e o seu muito próprio estilo: a precisão, o recorte literário, a clareza do modo de construir o objecto de estudo da geografia. Do cheiro da esteva, às dificuldades da vida, à geologia, à crítica da confiscação dos baldios, a síntese sobre a paisagem permitia sucessivos desdobramentos e nexos explicativos que cumpriam o desafio do conhecimento próprio da “ciência dos lugares”.
Como conceito central na Geografia e, sobretudo, na Geografia Regional, a paisagem resultava do jogo de um entramado de assuntos - um complexo mundo de forças que nela vêm inscrever o resultado das suas acções - de largo espectro, desde a geologia, a climatologia ou a geomorfologia, até aos temas próprios da Geografia Humana. Num contexto em que a agricultura e os modos de vida rurais pré-modernos tinham ainda uma presença muito forte no território português, o tempo corria devagar e as transformações mais recentes, apesar de observadas e comentadas, não eram ainda suficientemente tidas em conta, sublinhadas ou mais intensamente analisadas ao ponto de poderem comprometer o quadro de estabilidade vindo de um passado remoto, aquilo que o próprio Orlando Ribeiro chamava as permanências. Sublinhar a permanência e a sua durabilidade no tempo, permitia reforçar e dar sentido ao carácter idiossincrático das paisagens, regiões e lugares e assim abrir um campo ideológico de grande importância para outros discursos e representações. Juntamente com a língua, a história, os “modos de vida”, as memórias colectivas…, a paisagem (aquilo que se dizia que era, dependendo de quem observava e representava, claro) reunia uma síntese identitária densa, unificadora de múltiplos elementos e dimensões culturais e naturais acerca da sociedade e do território, e de relativa facilidade de comunicação e poder de inculcação. Designando um âmbito geográfico - lugar ou região -, as representações acerca da paisagem constroem vínculos, explicitam aquilo que é percebido como o carácter único de cada lugar, e suscitam modos de interpretação, de questionamento, de construção de visões do mundo.
Cinquenta anos depois deste escrito de Orlando Ribeiro, genericamente, a leitura que se fez deste e de outros textos sobre a paisagem - sobretudo fora do campo disciplinar da geografia -, tem vindo a sublinhar o lado contemplativo, os valores ditos naturais e a ruralidade. O ímpeto da urbanização, do aprofundamento do capitalismo e da modernização tecnológica especialmente potentes na transformação da paisagem, nem faziam parte da grande tradição paisagista nas artes e, genericamente, na produção cultural; nem eram suficientemente eficazes para pôr em causa as tonalidades românticas e bucólicas que estavam presentes nos regimes estéticos dominantes acerca da paisagem.
Apesar de, assumidamente, a paisagem cumprir um papel claríssimo na geografia de inspiração francesa de Orlando Ribeiro - um método e um objecto de estudo essenciais à descrição e à compreensão das relações entre os humanos e o meio biofísico -, não houve suficiente reflexão epistemológica para que se tivesse uma noção mais clara acerca do modo como a evolução da construção dos objectos científicos na Geografia era influenciada por outros modos de ver e usar os discursos e as representações sobre a paisagem. Especialmente durante o tempo da ditadura de Salazar, a ideologia dominante apreciava uma geografia simplificada, pouco crítica, conservadora, pitoresca e favorável a uma imagem idealizada do camponês, das aldeias e do país rural, onde a miséria abundava (Domingues, 2012).
Num país que emigrava maciçamente e que rapidamente se ia desruralizando pela própria desconstrução de uma agricultura pobre e arcaica, só assim se pode explicar o desacerto e a inércia que se verificou sobre a paisagem e os conceitos de paisagemii. Rapidamente a geografia trocou a “paisagem” pela “organização do espaço” e logo a seguir, pelo “território”. Enquanto isso, a banalização da produção e da distribuição das imagens nos mais variados campos da produção cultural mais ou menos erudita, ia reproduzindo nostalgias, sentimentalismos e concepções de paisagem do passado com adaptações sucessivas a determinadas práticas sociais e visões do mundo - as paisagens do turismo, por exemplo, ou as representações das “paisagens naturais”. Noutras áreas da produção e difusão de conhecimento - arquitectura paisagista, literatura, filosofia, ecologia e ciências do ambiente, pintura, cinema, publicidade, etc., a paisagem ia-se desdobrando numa multiplicidade de sentidos, usos, metáforas, metonímias; a deriva é infinita e os suportes de produção e difusão de imagens das tecnologias de informação e de comunicação como o Instagram contribuem generosamente para a reprodução e estabilização de novos regimes de visibilidade, representações e discursos.
Tudo somado, a polissemia em excesso liquidou a clareza e a objectividade que a paisagem já teve. Se quisermos continuar a pensar a paisagem como um registo da mudança da relação sociedade/território, haverá que repensar a questão com toda a polémica e contradição que o discurso de senso comum pretende trocar por equilíbrio e contemplação - mudam-se os tempos, mudam-se as paisagens, diria o poeta.
Anne Sgard (2011), numa obra em que é especialmente nova e desafiadora, coloca claramente a questão:
do meu ponto de vista, o geógrafo não retira a sua legitimidade dessa leitura da paisagem (contemplativa, descritiva…), mas da sua capacidade de desconstruir os discursos dos actores presentes, as suas representações, argumentos, valores, para aí identificar as lógicas de acção, as estratégias e possivelmente, fornecer as chaves para a compreensão das questões e intervenções previstas. (…) O principal interesse da paisagem não é o de uma materialidade sobre a qual intervir - outros o fazem melhor -, mas sim uma dimensão do discurso que informa sobre aqueles que o detêm e sobre os lugares a partir dos quais o produzem. (Sgard, 2011, p. 238)
É esta a ruptura fundamental. A paisagem não é “coisa” que pré-exista à construção da sua realidade infinitamente diversa e mutante. Sgard insiste sobre este desafio em perceber os vários modos de codificação dos discursos e das representações sobre a paisagem - incluindo os contraditórios -, bem como em saber dos circuitos e modalidades por onde circulam esses modos de “paisagificar” os assuntos, representações e polémicas respeitantes ao território e aos lugares, as vivências, modos de apropriação, critérios de legitimação, debates, dissensos…, ultrapassando os sentidos comuns que habitualmente se conotam com a paisagem, enfatizando a paisagem como questão em permanente controvérsia:
até hoje, a paisagem de que se fala na geografia escolar é sobretudo pensada como um instrumento de observação, de leitura metódica, e muito mais raramente como um instrumento de pensamento dirigido à acção, questionando os actores e as suas relações com o território. (Sgard, 2011, p. 238)
Desse ruído constante se perceberá quem fala e de que fala; que argumentos usa e como os defende; quem está contra e como se manifesta; quem não se faz ouvir; ou que interesses públicos e privados estão em jogo.
Daqui emerge claramente uma abordagem à paisagem enquanto dispositivo político e elemento fundamental do debate da construção permanente da esfera pública.
De facto, quando o contexto dominante não é o pictorialismo, o impulso Instagram ou a contemplação, verifica-se que hoje as questões relativas à paisagem entram em todas as polémicas do denominado desenvolvimento sustentável - a utopia dos tempos que correm, intensamente usada para exorcizar as tendências de fundo do capitalismo global e dos seus efeitos altamente predatórios: o extractivismo intensivo, os riscos tecnológicos e ambientais, as catástrofes ditas “naturais”, as controvérsias sobre globalização e identidade, o consumo exacerbado, as paisagens do lixo e do desperdício, as desigualdades e injustiças sociais, ou o poder do capital.
Em plena crise desenvolvida a propósito do Antropoceno, as representações da paisagem reflectem também as polémicas sobre a natureza (os sentidos da palavra), o planeta Terra e as suas muitas concepções. Paradoxalmente, o aumento exponencial do conhecimento nos diversos ramos das Ciências Naturais, dos nano-mundos ao cosmos, ora nos enfoca temas e contextos muito particulares problematizados de diferentes modos (organismos, ecossistemas e biótopos de extrema delicadeza e complexidade), ora nos lança na infinitude do espaço-tempo de que o planeta é apenas uma poeira - apenas restos de “uma estrela à qual voltaremos”, como escreveu Alexander von Humboldt no Cosmos (1845-1858).
Na verdade, contrariando a expressão comum, não vivemos todos no mesmo planeta, Bruno Latour usa a expressão para sublinhar os desafios postos por uma nova ordem política resultante das mudanças climáticas ao nível global, questionando-nos sobre quem é o antropos do Antropoceno (a espécie ou a condição humana que habita o planeta como “casa comum”), e que não pode ser definido como essa abstracção, um todo correspondente a uma ideia de igualdade ou de homogeneidade, mas os muito fragmentos desavindos, miseráveis ou poderosos, movidos por interesses, prioridades ou códigos de ética e política muito distintos:
the climate question is not one aspect of politics among others, but that which defines the political order from beginning to end, forcing all of us to redefine the older questions of social justice along with those of identity, subsistence, and attachment to place. (Latour, 2019, p. 162)
O mesmo Bruno Latour estende esta reflexão à necessidade de se reforçar a componente política da ideologia e da prática ecológicas, deixando de considerar a natureza como algo fora da ordem social:
Nature is no longer outside us but under our feet, and it shakes the ground. (…) Climate mutation means that the question of the land on which we all stand has come back into focus, hence the general political disorientation, especially for the left, which did not expect to have to talk again of “people” and “soil” - questions mostly abandoned to the right. (Latour, 2019, p. 162)
Os modos de compreender a “Natureza” - uma questão central também na Geografia - oscilam entre as mais diversas representações:
As “construções sociais de natureza”, i.e., os distintos modos como os factos e assuntos ditos naturais/ambientais são percebidos por diferentes grupos sociais, contextos e conjunturas. Não está em causa o conhecimento da Física ou da Biologia, mas sim o modo como ciência, ideologia e política se misturam, como fazem o recorte e a reunião de elementos e sistemas naturais; quais as escalas; como hierarquizar e valorar a importância de cada coisa, etc. Fora do laboratório, o conhecimento científico enreda-se imediatamente em questões políticas, de interesse económico, éticas ou morais: por si só, a balística diz-nos quase nada sobre conflitos bélicos.
Os debates sobre clima, a energia nuclear ou a engenharia genética, sejam quais forem os conhecimentos estritamente científicos respectivos, rapidamente se envolvem em questões irresolúveis plenas de indeterminação, de desigualdade e oposição de interesses e prioridades sociais, de valores éticos e morais, estratégias de poder, etc. “Concepções de política e concepções de natureza sempre formaram um par tão firmemente unido quanto os dois assentos de um balancé: um desce quando o outro sobe, e vice-versa” (Latour, 2004, p. 28).
A questão é da maior importância. Querer isolar uma totalidade (no singular) chamada natureza (tudo aquilo que existe sem nós, humanos), separada da esfera da cultura ou da política, e reconhecida somente através de factos, é um erro e uma fonte séria de mal-entendidos. Como se poderá verificar na História e na Epistemologia das Ciências Naturais, não existe, como refere Bruno Latour “uma natureza em geral” e a própria ciência, como se pode verificar na obra de Darwin, está repleta de metáforas políticas; e a expressão singular da natureza devia ajustar-se à expressão plural das culturas para designar os multinaturalismos. Se tal não for reconhecido, todos os idealismos são possíveis e todos os cientismos, também (tão diferentes que são uns dos outros). Em matéria de acção os movimentos ecológicos e ambientalistas pouco avançarão se não incorporarem a política - a ecologia política - no desenho das suas causas, modos de acção e estratégias, abandonando as entidades abstractas, totalizantes, supostamente auto-explicativas e dotadas de argumentos absolutos: “a natureza (o ambiente) agradece” é uma expressão vulgar, de sentido vazio e que contém esses pressupostos (Latour, 2004, p. 28). Das muitas polémicas sobre a “natureza”, podemos destacar:
as diversidades naturais e os seus assuntos e polémicas, os tais multinaturalismos, abrem outros campos de discussão e confronto, consoante se trate de: uma primeira natureza inteligível sem a acção humana - os átomos, as moléculas, as galáxias, os vírus…, e as respectivas leis da natureza; de uma segunda natureza como a “natureza doméstica”, do trigo, às cabras e a tudo que os humanos domesticaram, seleccionaram, cruzaram; ou de uma terceira natureza, uma “natureza sintética” cada vez mais presente, variada e complexa, que deriva da evolução do conhecimento científico e técnico, e que hoje se desenvolve em campos tão distintos como a genética, a energia, os biomaterias, os compósitos ou a nanotecnologia. A dicotomia entre o natural e o artificial (ou o sintético) explode e os próprios lugares-comuns como o que enuncia as questões da “adaptação às condições do meio-ambiente” terão que incluir a condição tecno-humana que faz parte desse mesmo ambiente e as profundas desigualdades sociais que acompanham a intensificação tecnológica da condição humana (Allenby & Sarewitz, 2011);
um último exemplo que pode ser aqui referido para entender o modo como a Natureza se enreda, acompanha o evoluir da organização económica capitalista e as suas lógicas, interesses e contradições. A globalização crescente da economia vai complexificando os seus mapas, tornando cada vez mais vago dizer-se que a China, os EUA ou a Europa - e as respectivas áreas geográficas, fronteiras e países - são uma cartografia clara para entender economia, políticas ambientais ou o que for. Aquilo que se constata é que a correspondência entre os territórios, a economia ou os habitantes…, no sentido legal da questão, não é inteligível dentro desses limites ou conceitos. As próprias aglomerações urbanas contemporâneas encontram-se claramente desligadas dos seus “arredores” ou hinterlands. Se fosse possível cartografar a dependência do metabolismo diário dessas aglomerações - a origem dos alimentos, água, energia, matérias primas e outras mercadorias -, encontraríamos uma rede extensa, complexa e fragmentada de hinterlands globais: “paisagens operacionais” onde se exploram minerais, alimentos, água, madeira, recursos energéticos…, e que se inserem em redes logísticas e mercados globais de transacções de mercadorias estandardizadas cujo preço é negociado em bolsas específicas (as denominadas commodities) (Brenner & Nikos, 2020).
Aqui chegados se perceberá melhor o objectivo deste ensaio:
paisagem é um conceito (é um conceito?) em crise, usado para codificar supostas tipologias - paisagem natural, paisagem rural, paisagem urbana, etc. - que há muito perderam clareza, rigor, universalidade. Não existem linhagens puras de paisagem que possam arrumar-se numa taxionomia estável;
- o carácter estático, “coisificado”, magificado…, habitualmente conotado com a paisagem não está em conformidade com a velocidade, a complexidade e as rupturas que caracterizam a evolução social e, por isso, a produção de paisagem;
- no registo estético e político, paisagem é apenas um dispositivo que se define pelos modos como é usado, argumentado, representado. Não existe “uma” paisagem, mas sim pluralidades de discursos (e respectivos produtores) que se legitimam de modo diferente, que aderem a diferentes causas, interesses e poderes - vejam-se as contradições recentes em tudo o que envolve a paisagem na questão da exploração do lítio ou dos sistemas super-intensivos de produção agrícola nas áreas de regadio, ou nas polémicas da floresta industrial, do eucalipto ou, finalmente, o ruído ensurdecedor sobre as paisagens do turismo;
- no que respeita à importância da paisagem como marcador identitário, a questão é bastante simples: nem a identidade nem a paisagem dizem respeito a questões que se possam fixar, consensualizar ou entender como totalidades - do que falamos é de processos por vezes bastante problemáticos e instáveis; do que falamos é de construções culturais/sociais que tem a sua geografia política, jogos de interesses, poderes mal distribuídos sobre quem tem maior ou menor legitimidade e poder para impor esta ou aquela narrativa.
Por isso o adjectivo “transgénicas” - usado no campo vasto dos Organismos Geneticamente Modificados (OGM), são aqueles cujo material genético foi alterado de uma forma que não ocorre naturalmente por reprodução/acasalamento ou recombinação natural; essas alterações produzem-se segundo técnicas sofisticadas de recombinação ou pelo uso de ácidos nucleicos sintéticos com a finalidade de criar ou alterar um genoma.
A questão não é fácil, como se sabe. A raiz da maior parte das polémicas acerca dos OGM, parte de um pressuposto moral acerca do modo como é equacionado o papel dos humanos naquilo que se convencionou chamar a Natureza. Ao mesmo tempo artificiais (geralmente entendido como algo que não é encontrável na Natureza) e sintéticos (aquilo que é produzido pelos humanos), os OGM perturbam a ordem natural das coisas, quebrando um interdito acerca da legitimidade em perturbar uma suposta ordem superior, uma criação divina e transcendental, uma “mãe-natureza”. Haverá outras razões, mas é aqui que se chocam as polémicas da bioética, das crenças no sobrenatural e no transcendental, nas leituras acerca do que são as razões da crise ecológica/ambiental, nos limites da intensificação das tecnologias nos corpos, nas instituições sociais, no território, nos artefactos e nos seus modos de uso, no desconhecimento do que possa acontecer quando se modificam elementos ou relações em sistemas de uma complexidade extrema como os denominados sistemas naturais. A consciência da crise ambiental - mudanças climáticas, poluição, perda de biodiversidade, etc. -, agudizou os discursos e as práticas sobre as condições sócio-ecológicas, os vários estados da natureza, tornando ainda mais vaga, instável e manipulável a diversidade dos sentidos que a palavra natureza contém (Swyngedouw, 2011). Timothy Morton (2007) identifica três ocorrências dessa polissemia e respectivos universos simbólicos:
Uma refere-se aos conteúdos - tudo aquilo que é estudado nas Ciências da Natureza e respectivos significados simbólicos e modos de problematização. A lista é infinita: azeitonas, vírus, galáxias, termodinâmica, reprodução, CO2, os Alpes, a física da atmosfera, os buracos negros, ou as pragas dos gafanhotos;
A segunda corresponde à institucionalização da Natureza como força normativa de âmbito transcendental e universal, a partir da qual se medem e avaliam os desvios e os danos. Assim a competição é vista como algo natural, enquanto a antropofagia (um fenómeno cultural) seria contra naturam. A divisão natureza/cultura fornece um pano de fundo extremamente prático para assinalar e legitimar aquilo que é da ordem transcendental (imutável, separável do animal humano) e separá-lo da inconstância dos humanos. A fetichização, a magificação da natureza transformada numa entidade una (numa divindade, tantas vezes), numa “mãe-natureza” conspurcada pela acção humana, origina um conjunto de discursos e práticas políticas que se multiplicam até ao anedótico;
Decorrente das considerações anteriores, a terceira condição da natureza é a de ser um “outro”, um “exterior” onde projectamos crenças, medos, fantasias e desejos: o paraíso perdido, o equilíbrio e a harmonia, a beleza, a destruição completa, o por-do-sol, a brisa da tarde ou a fúria dos vulcões.
Na mesma linha, outros autores, como Bruno Latour e Slavo Žižek, propõem simplesmente quebrar a barreira natural/cultural e a ilusão da unidade da Natureza que não resiste à proliferação de sentidos, e considerar a complexidade dos entramados sociais-naturais em que as coisas mutuamente se envolvem (as humanas e as não humanas).
A questão é que a crise ambiental que vivemos - e a sua quase quotidiana presença através de ocorrências e notícias apocalípticas acerca do fim de um mundo, de um planeta onde os humanos possam viver -, abriu um espaço enorme para o entendimento da Natureza como entidade “exterior” à condição humana; os próprios humanos vêem-se a si próprios como os causadores dessa enorme perturbação. O transgénico, manipulando e produzindo novos organismos vivos, desafia essa Natureza enfurecida e o seu poder de auto-regulação: produzindo um OGM, os humanos estão a “fazer de Deus”, a criar monstruosidades, como Victor Frankenstein no celebrado romance de Mary Shelley (1818).
A partir daí é impossível adivinhar o rumo natural das coisas se a fragmentação e a hiperespecialização do conhecimento científico e tecnológico - são as ciências que, em boa parte, produzem conhecimento e representações da e sobre a natureza - estão constantemente alargando e complexificando a realidade cada vez mais subdividida nessas especializações.
Por isso, o mito da auto-legitimação da verdade ou da objectividade do conhecimento científico se transforma, ora em cristalinas teses e conclusões, ora parece uma vozearia que o próprio campo científico não controla (Bijker et al., 1989):
porque outros dispositivos e interesses de difusão de informação se interpõe por motivações económicas, políticas, agendas mediáticas e outros poderes;
porque, e além disso, o acréscimo do conhecimento e a crescente complexidade associada, estão a reposicionar o estatuto e a autoridade científica e tecnológica numa rede móvel de emissores de discurso com diferentes interesses e posicionamentos sociais, éticos ou políticos. A legitimidade absoluta do conhecimento científico e das suas instâncias de validação entram em choque e em crise de autoridade.
Os transgénicos pertencem a uma sócio-natureza muito diferente da natureza-natural ou da wilderness como primeiras-naturezas mais ou menos fantasiadas, despolitizadas e povoadas de sentimentos. Se, hoje, as polémicas em torno da natureza já são altamente problemáticas e contraditórias (Swyngedouw, 2010), podemos imaginar a dimensão imensa do ruído em torno dessas naturezas expandidas provocadoras de uma nova biodiversidade tão disruptiva quanto a situação que aconteceu na Europa quando passou a conhecer milhares de espécies vivas e outros elementos naturais vindos dos Novos Mundos e da Terra Incógnita. Os “selvagens” conhecidos nas Américas e noutras paragens, provocaram discussões sobre o ser e o tornar-se humano à luz dos contextos culturais europeus de então (Pagden, 1982): o homem natural (um humano da idade dourada, antes de ser expulso do Éden), o bom selvagem (inocente e puro, contra-modelo de uma civilização pervertida), o canibal (supremo barbarismo que só a civilização poderia superar), o primitivo… conviviam: “estamos à vontade para os chamar bárbaros tendo em conta as regras da razão, mas não a nossa condição que os ultrapassa em toda a espécie de barbárie” (de Montaigne, n.d.).
Fora da biologia, o transgénico é a metáfora do compósito, do instável, do inclassificável à luz dos sistemas de classificação conhecidos. Na economia capitalista, é uma arma poderosa tantas vezes fora do controlo do Estado e da imposição de mecanismos de segurança e defesa alimentar, ao serviço dos interesses mais variados. Na ética é questão maior que interroga os próprios conteúdos do humano (ou do transhumano). Na política é um desafio novo sobre o modo como reunir uma assembleia (mundial?) onde seja legítimo discutir e decidir sobre a profundidade e a radicalidade das transformações, bem como dos seus efeitos sobre a polarização social e a exclusão.
Como assunto comum construído de polémicas e atravessado por interesses sociais diversos e antagónicos, a paisagem também é transgénica. Seguem-se algumas “fotografias faladas” sobre processos que aceleram essa condição transgénica.
1. Urbanização
The basic nature of urban realities - long understood under the singular, encompassing rubric of “cityness” - has become more differentiated, polymorphic, variegated and multiscalar than in previous cycles of capitalist urbanization. Even though the phrase, ‘the city’, persists as an ideological framing in mainstream policy discourse and everyday life, the contemporary urban phenomenon cannot be understood as a singular condition derived from the serial replication of a specific sociospatial condition (e.g., agglomeration) or settlement type (e.g., places with large, dense and/or heterogeneous populations) across the territory. Indeed, rather than witnessing the worldwide proliferation of a singular urban form, ‘the’ city, we are instead confronted with new processes of urbanization that are bringing forth diverse socioeconomic conditions, territorial formations and socio-metabolic transformations across the planet. (Brenner & Schmid, 2015, p. 152; fig. 1)
2. Urbanização periférica
At the core of my contribution are two arguments. First, I argue that peripheral urbanization consists of a set of interrelated processes. It refers to modes of the production of urban space that (a) operate with a specific form of agency and temporality, (b) engage transversally with official logics, (c) generate new modes of politics through practices that produce new kinds of citizens, claims, circuits, and contestations, and (d) create highly unequal and heterogeneous cities. Second, I argue that peripheral urbanization not only produces heterogeneity within the city as it unfolds over time, but also varies considerably from one city to another. Thus, as a model, peripheral urbanization must remain open and provisional to account for variation and for the ways in which the production of the cities it characterizes is constantly being transformed. It is important to stress that peripheral urbanization does not necessarily entail the growth of cities towards their hinterlands. In other words, it does not simply refer to a spatial location in the city - its margins - but rather to a way of producing space that can be anywhere. (Caldeira, 2017, p. 4; fig. 2)
3. Paisagem Tecnológica
Na verdade, a paisagem cerealífera alentejana e a paisagem de vinho do Douro, que mudaram às mãos de engenheiros e agrónomos no século XIX, poderão bastar para contar a história do Portugal agrícola de oitocentos. Ao seguir o trabalho de engenheiros e agrónomos na construção do caminho-de-ferro e na definição de uma estratégia de luta contra a filoxera - o mais destacado protagonista não-humano do meu trabalho -, pretendo mostrar de que se fez e como se compôs uma paisagem tecnológica. Na verdade, o Douro é um excelente exemplo da modernização portuguesa. Não obstante ser um ambiente agrícola dependente do trabalho manual, o território do vinho dos finais do século XIX, depois de civilizado pela ciência e tecnologia, revelava poucas parecenças com o espaço produtivo de inícios de oitocentos. (Coelho de Macedo, 2012, p. 13; fig. 3)
4. Desruralização
Ao mesmo tempo que os territórios rurais se transformam, modificam-se igualmente as representações e os discursos sociais (e também institucionais) que sobre ele se constroem. Uma tripla visão e narrativa parecem ter emergido daquelas transfor mações: i) o rural como espaço de crise e de abandono; ii) o rural como espaço produtivo e de produtividade, e iii) o rural como espaço reconfigurado e, de certo modo, revalorizado. Na primeira perspetiva, os territórios rurais são qualificados como menos desenvolvidos e plenos de necessidade de mudança. Na segunda, estes territórios surgem como palcos de modernização e desenvolvimento agrícola. Finalmente, na terceira visão, o campo é entendido crescentemente como repositório de valores culturais tradicionais e de recursos naturais fundamentais que devem ser protegidos e preservados. (…) Na sequência da difusão destas imagens e representações do rural e da ruralidade, por outro lado, podemos estar perante o fim do rural como espaço dotado de especificidades e como representação associada a territórios particulares. (Figueiredo, 2018, p. 2; fig. 4)
5. Paisagens elétricas
Energy needs space. It exploits space as a resource, a site of production, a transportation channel, an environment for consumption, and a place for capital accumulation. Whether oil pipelines, dams, solar panels, nuclear plants, or wind parks, all industrial energy systems deploy space, capital, and technology to construct their geographies of power and inscribe their technological order as a mode of organization of social, economic, and political relations. Popular taxonomies of energy have tended, however, to blur distinctions between different modes and instead emphasize a renewable/non-renewable binary that dismisses continuities between the conventional and its alternatives in an anticipation of a future beyond oil. Although essential to the production of energy, space has played a role in the myth of ecologically benign economic growth, because the creation of value in energy regimes has long internalized benefits and accrued them to the urban center while “externalizing” costs-sliding them to the periphery, out of sight. (Ghosn, 2009, p. 7; fig. 5)
6. Capitalismoceno
We must insist on the importance of culture in justifying the theoretical and political superiority of the term Capitalocene. Strictly speaking, the Anthropocene is cultureless: it is the result of “man” and technology, or “man” insofar as he develops and wields technology. Politics proper (as opposed to “governance”) does not enter the Anthropocene discourse since social relations are presumed to possess no effective materiality. (…) For the great irony of the Anthropocene discourse is that it was developed to explain the merger of “man” and “nature,” yet at the conceptual level has split them further apart than ever. What culture, world-ecology, and the Capitalocene show is that the battle against the capitalist production of climate change must be waged at several levels simultaneously. (Hartley, 2016, p. 163, 165; fig. 6)
The Anthropocene argument shows Nature/Society dualism at its highest stage of development. And if the Anthropocene - as a historical rather than geological argument - is inadequate, it is nevertheless an argument that merits our appreciation. New thinking emerges in many tentative steps. There are many conceptual halfway houses en route to a new synthesis. The Anthropocene concept is surely the most influential of these halfway houses. No concept grounded in historical change has been so influential across the spectrum of Green Thought; no other socioecological concept has so gripped popular attention. (…) Like globalization in the 1990s, the Anthropocene has become a buzzword that can mean all things to all people. Nevertheless, reinforced by earlier developments in environmental history, the Anthropocene as an argument has gradually crystallized: “Human action” plus “Nature” equals “planetary crisis”. (…) Thus, our question incorporates but moves beyond the degradation of nature thesis: How does modernity put nature to work? How do specific combinations of human and extra-human activity work - or limit - the endless accumulation of capital? Such questions - these are far from the only ones!- point toward a new thinking about humanity in the web of life. (Moore, 2016, p. 3)