I. Introdução
O presente comentário de autor tem como objetivo central propor elementos teóricos que possibilitem o aprofundamento da discussão geográfica da problemática da qualidade do ar, dando luz ao debate entre este problema ambiental e os conceitos de Risco e Vulnerabilidade. O fenómeno de poluição atmosférica é discutido por Ayoade (1986) como sendo a introdução de quaisquer substâncias num dado meio diferentes de seus componentes naturais, a ponto de afetar o meio de forma danosa, podendo ter origem natural ou antrópica. Ou seja, considera-se que o ar de um dado sítio é poluído quando lhe é introduzida uma série de substâncias distintas da sua própria natureza e que trazem malefícios ao meio e àqueles que o habitam.
A má qualidade do ar observada em grande parte dos centros urbanos contemporâneos não é um problema da modernidade, com registros de problemas relatados por consequência de curtumes na Grécia Antiga e de fundições de prata e matadouros no Império Romano (Fellenberg, 1980).
Todavia, é inegável o papel da revolução industrial como indutor deste problema ambiental. A partir desta época, as cidades, alavancadas por intensos processos de êxodo rural, crescem cada vez mais em cada vez menos tempo. Mendonça (1993) reitera esta ideia, trazendo os processos de industrialização, iniciados neste período, como os grandes desencadeadores de uma degradação do meio ambiente entre as quais encontram-se aqueles ligados à atmosfera, como a má qualidade do ar.
Assim, gera-se um fenômeno desencadeado pelo modo de vida urbano corrente e fruto direto das emissões de gases oriundas da necessidade de energia que abastece dito sistema, mas que também sofre influências de variáveis naturais como o clima, principalmente, agindo em conjunto com o relevo e a vegetação, por exemplo, e adquirindo um caráter sobretudo geográfico.
Alguns problemas atuais ligados à qualidade do ar foram expostos pela Organização das Nações Unidas (ONU) no relatório denominado Ambient Air Pollution: A Global Assesment of Exposure and Burden of Disease, publicado em 2016. Segundo este, cerca de 92% da população global vive atualmente em áreas onde os níveis de qualidade do ar ultrapassam os limites mínimos estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde.
Sob o ponto de vistalegal, no Brasil, seis são os compostos que, introduzidos ao meio, podem ser denominados de poluentes: Monóxido de Carbono (CO), Fumaça, Dióxido de Nitrogénio (NO2), Ozônio Troposférico (O3), Material Particulado PM10 e PM2,5, e Dióxido de Enxofre (SO2).
A lei vigente no Brasil teve sua última atualização em novembro de 2018 (quadro I), a partir da Resolução Nº 491/2018 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), que, por sua vez foi uma revisão da Resolução Nº 003/1990 também do CONAMA, sofrendo revisões que a aproximaram das legislações internacionais vigentes. A revisão atual prevê evoluções em seus próprios parâmetros, tornando-se mais rígida com o passar do tempo.
II. A problemática da qualidade do ar
Tratando o Clima Urbano de maneira sistêmica, Monteiro (1976) dedica parte de seus postulados ao que denomina de sub-campo físico-químico do Clima Urbano que se ocupa da poluição atmosférica. Os problemas ligados a este campo têm em sua gênese unicamente a atividade humana. É fundamental destacar a posição do autor ao mencionar a necessidade de grande acuidade na coleta dos dados e também de um levantamento detalhado das fontes emissoras. Há que compreender que o problema da qualidade do ar é determinado inicialmente pela fonte emissora e, posteriormente, potencializado pela circulação atmosférica. Atribuir a poluição do ar de uma cidade apenas a uma consequência das situações climáticas seria, portanto, um equívoco.
Ainda segundo Monteiro (1976), a atmosfera possui uma capacidade “autolimpante”, em função de seu dinamismo e sua capacidade difusora de ar. Constatado tal fato, novamente nos voltamos à necessidade de que a ação dos tomadores de decisão deva ser feita exclusivamente sobre os pontos emissores. Com base em tais premissas, podemos conceber o estado da qualidade do ar de um dado sítio como fruto da relação entre fatores espaciais e temporais com pesos distintos agindo sob esse mesmo sítio (fig. 1).
Um determinante é um fator chave sem o qual a problemática não se desenvolveria. Tratam-se como fatores determinantes a má qualidade do ar, a presença intensa de fontes emissoras, sejam elas, naturais (pólen, cinza vulcânica, etc.), fixas (indústrias, queima de lenha, queima de lixo, etc.) ou móveis (veículos automotores).
Já a condicionante seria um fator não relacionado com a origem do problema em si, mas que surge como um agente que o modera ou regula a sua evolução (Landsberg, 1981). No caso, falamos de condicionantes ligados à dispersão da poluição (dinâmica de ventos, turbulência, convecção etc.), transformação dos poluentes (reações químicas), ou de remoção de poluição (deposição, precipitação, umidade do ar, etc.). Os outputs ou consequências desta relação são, portanto, os riscos ligados à qualidade do ar.
A partir da figura 1 pode-se perceber a multidisciplinaridade deste tema. Aproximações a partir da engenharia, química, física, urbanismo e até sociologia são diversas, mas o diálogo entre essas áreas do saber a respeito do tema ainda é escasso. Mesmo abordagens de cunho mais teórico, como a que se pretende neste trabalho, também são poucas.
Analisando a produção científica da comunidade geográfica brasileira entre os anos de 1992 e 2014, Castelhano (2016) destacou três eixos norteadores dos estudos envolvidos com a temática da qualidade do ar: saúde humana, climatologia e planejamento urbano, pese embora, além do limitado número de publicações, a pouca interação entre ditas áreas. A análise da qualidade do ar sob a égide dos eixos norteadores mencionados e analisados isoladamente, disfarça a complexidade de dito fenómeno e limita suas perspetivas de mitigação. Assim, este texto busca promover uma visão integrada e geográfica do fenómeno da poluição atmosférica.
Para tanto, foi realizada uma revisão da literatura pautada por pesquisas em portais de periódicos, sites de busca específicos como Google Scholar e anais de congressos. Admitindo que a produção científica a respeito de tal fenómeno é vasta, foram analisados trabalhos anglófonos e lusófonos que abordassem diferentes espectros da problemática e pudessem ilustrar a importância de abordar a temática da qualidade do ar a partir dos conceitos de riscos e vulnerabilidades inerentes à ciência geográfica.
Enquanto ciência que estuda a relação dos fenômenos, naturais ou sociais com o espaço, a geografia mostra-se como uma área do conhecimento que possibilita uma análise integrada e abrangente da dinâmica da poluição atmosférica. visto que tal ciência, dentre aquelas consideradas ciências humanas, se propõe a estreitar laços com o quadro natural do planeta e manter relação com inúmeras outras áreas do conhecimento (Mendonça, 1993).
1. Os riscos sob a ótica da qualidade do ar
Marandola Jr. e Hogan (2004) apontam como risco uma situação no futuro que envolva incerteza e insegurança ante a um perigo. Os autores referem que estar em risco, seria, portanto, estar suscetível à ocorrência de um desastre ou perigo (hazard).
Esteves (2011) dialoga com diversos conceitos de riscos, apontando de forma genérica, que os conceitos convergem para a ideia de situação ou possibilidade de perigo, conhecida ou não, atingir indivíduos ou coletivos, além de apresentar uma forma momentânea ou permanente.
Os riscos têm seu espectro dividido em três categorias que se podem sobrepor: riscos naturais, riscos sociais e riscos de ordem tecnológica (Castro et al., 2005). Os naturais seriam aqueles com gênese inteiramente ligada a processos físicos da própria natureza (deslizamentos, furacões, tornados, etc.). Riscos tecnológicos são aqueles que emanam de estruturas tecnológicas (vazamento de produtos químicos, radioativos, etc.). Por fim, os riscos sociais seriam aqueles que resultam diretamente da ação do ser humano enquanto indivíduo e sociedade (assalto, guerras, saúde, etc.; Esteves, 2011, Marandola Jr. & Hogan, 2004).
No caso dos riscos ligados à qualidade do ar, Branco e Murgel (2004) os diferem em três grupos ligados aos seus efeitos: estéticos, tóxicos e irritantes. Efeitos estéticos são as consequências que os poluentes em suspensão na atmosfera causam nas estruturas físicas construídas, provocando desgaste de materiais, perda de cor ou, apenas, sujando as estruturas (Reyes et al., 2011; Venkat Rao et al., 2014).
Venkat Rao et al. (2014) dão o Taj Mahal como um exemplo clássico deste risco. Num estudo recente, os autores atribuem a sujeira e amarelamento do mármore branco que compõe a parte externa do mausoléu à poluição oriunda do crescimento das indústrias e aumento do tráfego de veículos na cidade de Agra (fig. 2).
Camufo (1986) aponta os altos níveis de dióxido de enxofre na atmosfera como os principais responsáveis pela deterioração observada em monumentos históricos em cidades da Europa. Apesar de não afetarem diretamente a saúde humana, tais efeitos põem em risco o património que, além de compor parte importante da história da humanidade, também são parte da nossa própria identidade e cultura. Os efeitos irritantes e tóxicos pululam o espectro dos problemas ligados à saúde. Os efeitos irritantes são menos danosos, causando ardência e incómodo principalmente nas mucosas e olhos (Murgel & Branco, 2004). Em situações extremas, a utilização de máscaras de proteção pelos citadinos busca diminuir tais riscos (fig. 3), como já acontece.
Os efeitos tóxicos são aqueles que trazem consequências extremas à saúde em virtude de envenenamento por gases tóxicos, atingindo os sistemas respiratórios, cardiovascular e nervoso, dependente do poluente e do seu nível de concentração. Foi o caso do evento ocorrido em 1948 na cidade de Donora, estado da Pensilvânia, Estados Unidos. Uma intensa nuvem de material particulado e dióxido de enxofre pairou sob a cidade, matando cerca de 20 pessoas e deixando centenas em estado grave. O caso é icônico por ter sensibilizado a opinião pública e forçado o congresso americano a votar suas primeiras leis no âmbito da qualidade do ar (fig. 4).
Os efeitos tóxicos podem, por vezes, não ser imediatos, de modo que seus efeitos sob nossos organismos podem levar certo tempo a ser sentidos. A respeito disso, Saldiva (2012) realiza uma comparação entre a inalação de poluentes atmosféricos com o hábito de fumar. Segundo o autor, pessoas que vivem em cidades de grande porte acabam sendo vítimas de um “tabagismo urbano compulsório”. Uma pessoa que leva uma hora para se deslocar para o seu trabalho e outra hora para voltar, teria um pulmão equivalente ao de uma pessoa que fumasse 20 maços de cigarros por ano, sem sequer aderir ao hábito do fumo.
A concepção da figura 1 remonta a uma compreensão ampla da poluição atmosférica. Vasta é a literatura que trabalha sobre a poluição atmosférica enquanto risco tecnológico. A relação entre a proximidade a fontes emissoras e altos registros de poluentes pode ser encontrado em trabalhos como Awan et al. (2011) no Paquistão; Chow et al. (1994) na região Sul do estado da Califórnia, nos Estados Unidos da América; Romero et al. (1999) para o Chile; Sulaiman et al. (2017) na região do Vale do Klang na Malásia; e Gutjahr (2002) analisando o polo petroquímico de Paulínia, no estado de São Paulo, Brasil. Num estudo de caso realizado na cidade de São Paulo, Chiquetto et al. (2021) reforçam o papel da emissão veícular na poluição atmosférica da cidade ao atestar que, durante uma paralisação da classe de caminhoneiros, os níveis de poluentes como CO e NO decaíram cerca de 50% no município.
Todos estes trabalhos têm em comum o fato de determinarem uma relação direta entre proximidade de fontes, sejam elas industriais, ou móveis (veículos automotores) como hotsposts de poluição de atmosférica. A complexidade do fenómeno, todavia, impede-nos de realizar tal conclusão, uma vez que os fatores que incidem sobre a proximidade de populações às fontes emissoras, e igualmente, a intensidade de tais emissões, encontram-se ligados a outras ordens.
A circulação de veículos privados, por exemplo, considerada uma das principais fontes de poluição atmosférica, possui uma íntima relação com a situação econômica do país e mesmo com a situação cultural que envolve o espaço analisado. Ximenez et al. (2008) evidenciam o intenso crescimento da frota de veículos automotores no Brasil, com recordes de produção e venda nos anos 2007 e 2008 como consequência do bom momento da economia brasileira, fruto de políticas de facilidade de crédito e do crescimento da renda média do brasileiro a partir de programas de distribuição de renda.
O fato do automóvel, nas sociedades ocidentais, ser visto também como objeto de status social e conforto, justifica em partes, o grande número de veículos circulando nas cidades, e evidencia esta relação com a cultura, modo de vida e educação dos citadinos (Steg, 2005). Transportes alternativos e menos agressivos em relação à emissão de poluentes, tais como: bicicletas, transportes públicos ou mesmo caminhadas, são costumeiramente negligenciados pelo poder público, sobretudo em países em desenvolvimento o que inclina os citadinos a buscarem por veículos privados. Steg (2005) salienta que mudanças neste paradigma perpassam pela aquisição de novos hábitos, mas, sobretudo por processos educacionais que impulsionem a quebra destas ideias vigentes. Assim, o automóvel enquanto objeto de status social e conforto, torna-se um item de maior procura neste período de prosperidade econômica. Ximenez et al. (2008) apontam ainda alguns períodos dos anos 1980 e metade da década de 1990 em que as vendas de veículos, no Brasil, apresentaram quedas, em consequência de períodos de economia desaquecida. É ressaltada, pelos mesmos autores, a relação entre crescimento econômico e o aumento nas emissões de poluentes, instigando estudos a estabeleceram com maior nível de detalhe tais relações e propondo à economia um papel importante no entendimento de problemas de ordem ambiental, apresentando desta forma, a possibilidade de encarar a poluição atmosférica também enquanto risco social.
Analisando a situação de Nova Deli e Bombaim, Kandlikar e Ramachandran (2000) atestam o crescimento nas frotas de veículos automores privados no país como fruto de um problema político, ligado às más condições de outras formas de transporte. Analisando as emissões destas duas cidades indianas, os autores relatam novas questões culturais do povo indiano referentes à utilização de fornos de cocção domésticos alimentados a biomassa e carvão, fontes de difícil monitoramento. O levantamento dos autores, todavia, reforça o caráter social do problema, ao atestar um percentual maior de uso de biomassa e carvão em ambientes domésticos das residências classificadas como de baixa renda, enquanto em residências cuja renda é superior, é predominante o uso de fontes de energia com menores emissões diretas como a energia elétrica ou Gás Liquefeito de Petróleo (GLP).
A relação entre renda e poluição do ar também foi apontada por Jimenez e Torrecilla (2007). As autoras atestam que diferentes níveis de SO2 no tecido urbano de Madrid correspondem diretamente a diferentes tipos de aquecedores utilizados pela cidade. De acordo com o estudo, nas áreas onde vivem pessoas com renda mais baixa, os aquecedores são mais baratos e movidos a combustíveis de pior qualidade, gerando, portanto, maiores valores de emissões atmosféricas e influenciando diretamente os níveis de poluição da cidade, revelando-se assim uma relação entre segregação socioespacial e poluição do ar na capital espanhola.
Czernecki et al. (2017) atestaram a influência da queima de madeira e lenha doméstica nas regiões de baixa renda da Polônia. Segundo os autores, nas localidades de renda mais baixa, onde os moradores necessitam de formas mais baratas de aquecimento, os níveis de poluição mostram-se superiores, revelando novamente uma relação entre condições sociais e poluição do ar.
O espectro natural dos riscos ligados à qualidade do ar, encontra-se conectado aos fatores que influem diretamente os índices de dispersão dos agentes contaminantes. Entende-se que a circulação atmosférica neste sentido adquire um papel chave, o que pode ser visto em trabalhos recentes como Castelhano e Mendonça (2019) ou Requia et al. (2019), que apresentam os cenários de mudanças climáticas globais como possíveis desencadeadores de alterações nos montantes de poluição atmosférica; e Anjos (2017) que cita o papel da brisa marinha na cidade costeira de Aracaju, nordeste do Brasil, na dispersão de poluição atmosférica. Tais estudos admitem o clima não como fator gerador da poluição, mas, em determinadas situações, como aquele responsável pela sua concentração e portanto, potencializando um risco previamente existente.
A literatura aqui apresentada não é inovadora. De fato, suas conclusões podem ser encontradas em trabalhos que caracterizam cenários urbanos e a poluição por todo o planeta. Todavia, a partir de tais constatações a respeito dos efeitos da má qualidade do ar, sua estrutura e sistema, e partindo do conceito de Marandola Jr. e Hogan (2004), os riscos ligados à qualidade do ar definem-se como híbridos. A sua geração deve-se a um fator tecnológico, no caso, as emissões atmosféricas, mas fatores naturais e sociais adquirem o papel de potencializadores de tal situação, deflagrando, portanto, seu caráter híbrido.
Para facilitar a compreensão da definição da poluição atmosférica enquanto risco híbrido, observemos um estudo de caso (fig. 5).
As oscilações temporais médias dos valores de material particulado 10 (PM10), em diferentes escalas, foram coletadas em 2017 em estações oficiais de monitoramento da qualidade do ar em quatro localidades do Brasil, com diferentes classificações climáticas: Porto Alegre, capital e maior cidade do estado do Rio Grande do Sul, no extremo sul do estado; São Paulo e Rio de Janeiro, as duas maiores cidades do país e ambas na região Sudeste; e Candeias, cidade localizada na região metropolitana de Salvador, capital da Bahia. À excepção de Candeias, as demais cidades são consideradas grandes centros urbanos, aglomerando comércio e serviços, com dinâmicas típicas de grandes cidades de países em desenvolvimento. Candeias, por sua vez, é uma importante cidade industrial do nordeste brasileiro, contando com cerca de 87 mil habitantes, sede da segunda maior refinaria de petróleo do Brasil, e onde se localiza o Porto de Aratu. O quadro II sintetiza informações pertinente ao estudo de cada localidade em questão. Optou-se pela análise do ano de 2017 por critérios de disponibilidade e qualidade na série de dados.
* Fonte: Normais Climatológicas do Brasil (1980-2010). Instituto Nacional de Meteorologia ([INMET], 2020)
** Fonte: População Estimada por Município (2020). Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2021)
*** Fonte: Secretaria Nacional de Trânsito (2020)
A gênese dos valores apresentados encontra-se nas emissões, fixas ou móveis que nos remetem aos riscos tecnológicos. Segundo Freitas e Gomez (1997), se por um lado, o avanço científico propiciou inúmeros avanços e melhorias na qualidade de vida, por outro fizeram surgir uma nova gama de riscos, entre eles os riscos químicos ligados à qualidade do ar. Tal fato é também mencionado por Saldiva (2012) ao atestar a importância de iniciativas como o Programa Controle de Emissões Veiculares (PROCONVE) na diminuição das emissões atmosféricas por parte dos automóveis, mas simultaneamente, no aumento da venda de veículos particulares.
Admite-se, todavia, a existência de um caráter cíclico no âmbito da oscilação mensal (fig. 5D) nos níveis de poluição condicionados pela circulação atmosférica, portanto uma característica natural. Os meses de junho a agosto, por exemplo, tendem a ser aqueles em que a concentração de material particulado é maior em cidades do centro-sul do Brasil como as do Rio Grande do Sul (RS), São Paulo (SP) e Rio de Janeiro (RJ), devido às especificidades climáticas de áreas cujo inverno é seu período seco. Candeias, localizado na Bahia (BA), nordeste brasileiro, por outro lado, apresenta outra ciclicidade, novamente, condicionada pela circulação atmosférica, vide que sua estação chuvosa se inicia em abril, perdurando até agosto.
Por outro lado, existem exceções em função da composição química dos poluentes, como no caso do Ozônio troposférico que por ser um poluente secundário, isto é, que se forma a partir de reações químicas envolvendo poluentes previamente emitidos, sofre menor interferência das chuvas. Neste caso, a radiação solar apresenta maior influência em seus níveis, de modo que os meses de outubro a dezembro são aqueles em que se observa maior concentração destes poluentes também em Curitiba (Castelhano & Mendonça, 2019).
Os ciclos mensais mencionados não se devem a diferenças nas emissões que tendem a ser relativamente constantes ao longo do ano, mas sim à ação da natureza sobre estas na forma do tempo meteorológico. Observando as figuras 5A, 5B e 5C, que registam a concentração do poluente em outras escalas, atesta-se a existência de ciclos não mais ditados pela natureza do tempo meteorológico, mas sim pela dinâmica da vida social urbana cotidiana de cada localidade. Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, que se caracterizam como grandes metrópoles, apresentam dois picos diários (fig. 5B) após os horários de rush do trânsito e quedas nos valores de poluição atmosférica nos finais de semana (fig. 5C).
Candeias, por outro lado, tem sua poluição atmosférica ligada às emissões fixas industriais. A cidade possui uma frota muito inferior às demais de modo que, no âmbito das emissões atmosféricas, a dinâmica industrial sobressai à veícular. Isto justifica a manutenção dos níveis de PM10 aos finais de semana e uma dinâmica diária com apenas um pico durante o dia, diferente das demais observadas.
A ausência de políticas públicas efetivas no âmbito de transporte público e mobilidade corroboram para o crescimento das frotas e supervalorização do carro próprio ante as alternativas que poderiam figurar melhoras na qualidade do ar, aumentando também a vulnerabilidade da população a tal problema (Castelhano, 2017), configurando igualmente o risco com características sociais. A análise integrada dos fatores supracitados leva-nos a concluir que classificar os riscos ligados à poluição atmosférica como apenas um dos mencionados, não comportaria a complexidade de tal dinâmica, inserindo-os, portanto, como um risco híbrido.
2. Vulnerabilidade socioambiental à poluição atmosférica
Por vulnerabilidade, entende-se a suscetibilidade ou exposição do ser humano, enquanto indivíduo e sociedade, aos riscos, independente do espectro (natural, tecnológico ou social). Esteves (2011) pontua que o risco se diferencia da vulnerabilidade na medida em que o primeiro se situa como o próprio perigo ou problema a ser enfrentado, enquanto o segundo seria a capacidade de resposta ao perigo sob o qual se está exposto.
Para Marandola Jr. e Hogan (2006), a vulnerabilidade pode ser compreendida a partir de três elementos: exposição ao risco; a capacidade de reação e o grau de adaptação diante do risco concretizado.
Esteves (2011) caracteriza a exposição ao risco como um fator multifacetado, variando em função do risco e dos fatores que o compõe. Em relação à capacidade de reação e grau de adaptação, Mendonça (2004) aponta que estes se relacionam com uma série de fatores sociais, econômicos, culturais, políticos e tecnológicos da sociedade moderna, estando também diretamente ligados às condições de pobreza da população.
Ainda sobre o conceito de vulnerabilidade, Marandola Jr. e Hogan (2006) atestam:
No entanto, é fundamental ter em mente a pergunta “vulnerabilidade a quê?” quando se procede a uma investigação. A vulnerabilidade sempre será definida a partir de um perigo ou um conjunto deles, em dado contexto geográfico e social. Não se pode esquecer também de perguntar “onde e quem está/é vulnerável?”. A partir desta delimitação é possível identificar os fatores que podem promover a diminuição da vulnerabilidade, bem como as situações ou elementos que aumentam o risco. (Marandola Jr. & Hogan, 2006, p. 36-37)
A definição das dimensões e escalas temporais e espaciais também são fundamentais na compreensão de vulnerabilidade. A depender do fenômeno estudado, o espaço e o tempo tornam-se basilares na diferenciação dos vários graus de vulnerabilidade de uma população.
Podemos elencar também alguns elementos sociais e naturais que podem alterar os graus de vulnerabilidade de uma população ou de um local no que tange a poluição atmosférica e para tanto tomemos a cidade de Cubatão, no litoral paulista, icônica no seio da problemática da qualidade do ar no Brasil.
A cidade se desenvolveu historicamente ao longo do vale do rio Cubatão que nomeia a cidade. Os problemas ligados à poluição do ar surgiram induzidos pelo crescimento do parque Industrial que começou a ser construído nos anos 1950 com a criação da Refinaria da Petrobras “Presidente Bernardes”. Durante os anos 1980, esta foi considerada a cidade a mais poluída do Brasil e das mais poluídas do mundo, tornando-se um ícone no âmbito da falta de planejamento no que tange à poluição atmosférica (Couto, 2003).
A área industrial da cidade delimitada pelo poder público, onde se concentravam indústrias de petróleo, fertilizantes e metais, situa-se inicialmente em uma área de fundo de vale, onde também existia um bairro de população de baixa renda chamada Vila Parisi (Alonso & Godinho, 1984; fig. 6). A partir do início dos anos 1980, uma série de casos de anencefalia, passam a ser registrados na região e noticiados em grandes veículos de comunicação nacionais e internacionais, incentivando pesquisas que passaram a assimilar tal situação à emissão constante de poluentes pelas indústrias locais (Ferreira, 2007). Constatou-se que os níveis de poluentes emitidos eram muito acima da média, com valores que levaram a região a ser conhecida como “Vale da Morte”. Segundo Ferreira (2007), estes fatores levaram à criação do Programa de Controle da Poluição Ambiental de Cubatão por parte do governo estadual de São Paulo (1983), incentivando a fiscalização e monitoramento dos níveis de poluição da região.
Segundo Silva (2008),
O bairro Vila Parisi, atualmente extinto, se localizava a 15km do centro no meio de uma bacia onde as características geográficas favoreceram a concentração de poluentes. As condições de moradia eram muito precárias. O bairro tornou-se o ponto nevrálgico dos problemas da poluição por estar incrustado em meio às indústrias, além de ter sido considerado o “lugar mais poluído do mundo”. (Silva, 2008, p. 14)
Ainda segundo Alonso e Godinho (1984), os eventos de maior repercussão estão todos relacionados com fatores climáticos, como a presença de anticiclones tropicais semi-estacionários por vários dias, tornando a atmosfera estável e impedindo a dispersão dos poluentes.
No caso de Cubatão, a vulnerabilidade ante aos problemas ligados à poluição do ar aumentava em função da localidade. Quanto mais próxima à região industrial, mais vulnerável aos riscos estaria a população. A ausência de políticas públicas efetivas no âmbito da fiscalização e monitoramento até 1983 foi também um fator que colaborou com o aumento da vulnerabilidade desta população.
Aliados a este fator, citamos a tecnologia como outro elemento que pode ter aumentado a vulnerabilidade. A utilização de tecnologias mais limpas poderia evitar ou diminuir os riscos aqui expressos. Já as situações climáticas assim como as feições do vale do Rio Cubatão são fatores naturais que agem sobre a localidade tornando-a mais vulnerável em relação ao problema apresentado.
Somados estes fatores, compreende-se o motivo do local ser conhecido como “Vale da Morte”. A medida tomada para sanar este problema específico também foi deverás polêmica. Os moradores do local foram removidos e realocados em outro bairro denominado Jardim Nova República (fig. 7).
De acordo com Silva (2008),
O Jardim Nova República foi construído num aterro na estrada entre a Via Anchieta e a Rodovia dos Imigrantes, em meio de um mangue poluído. As casas foram construídas com material simples e para abrigar a população que foi “removida” de Vila Parisi. Existem redes de esgoto, pavimentação das ruas, iluminação e água encanada. (Silva, 2008, p. 15)
A medida tomada pelo poder público local diminuiu a vulnerabilidade da população antes aos riscos da poluição do ar, mas não sanou totalmente o problema ambiental da cidade.
Alguns outros fatores urbanos também podem influenciar no grau de ante a poluição do ar, que, todavia, não agiram no exemplo de Cubatão. Fatores como feições e morfologia urbana que agem sob a dinâmica de ventos (Castelhano & Pinto, 2020) e dificultam a dispersão de poluentes, áreas com limitação de veículos, áreas livres e áreas verdes também são fatores espaciais que influenciarão em uma maior ou menor vulnerabilidade em relação à má qualidade do ar. Aspectos sociais também têm o poder de influenciar nesta vulnerabilidade, como a renda, nível de escolaridade, entre outros.
III. Considerações finais
Objetivou-se neste texto um aprofundamento das questões ligadas a riscos e vulnerabilidades da problemática da poluição atmosférica, visando, sobretudo demonstrar a complexidade de tal questão. A respeito deste fenômeno, e refletindo sobre os pontos aqui abordados, coloca-se em cheque a maneira como o mesmo vem sendo enfrentado. Mostrando-se como um tema de grande complexidade, dinâmica e transversalidade, propôs-se realizar uma abordagem geográfica desta problemática ante os conceitos de riscos e vulnerabilidades.
Recapitulando, os elementos que compõe o conceito de vulnerabilidade por Marandola Jr. e Hogan (2006), a capacidade de reação e o grau de adaptação da população ante este problema, ainda devem ser discutidos.
O crescimento e desenvolvimento das cidades, consequência do intenso êxodo rural e industrialização que o Brasil passou, sobretudo após os anos 1950, tem tornado os ambientes urbanos cada vez mais problemáticos e complexos.
A poluição do ar é um problema socioambiental inerente ao desenvolvimento de qualquer centro urbano e aos seus processos de urbanização, e que não tem sua origem na natureza, mas sim no modelo capitalista industrial urbano e em alguns de seus preceitos mais básicos como a necessidade de mobilização rápida da mão-de-obra, coincidindo na utilização massiva de modos de transporte que envolvam a queima de combustíveis fosseis e da produção em massa de bens de consumo gerando a clássica imagem do caos urbano poluído e confuso.
Para Santos (1993) os processos de urbanização principalmente no terceiro mundo são regidos pelo interesse de uma minoria corporativa e rica (valores de troca) sobrepondo às necessidades de uma maioria pobre (valores de uso), justificando assim, as contradições sociais tão facilmente observadas em qualquer cidade de porte médio ou superior do Brasil e qualquer país pobre. O autor denomina tais processos de Urbanização Corporativa.
O Estado tem um papel ímpar na produção do espaço urbano, refletindo diretamente as dinâmicas da sociedade o qual representa e dispondo de um conjunto de instrumentos legais que poderiam empregar ao espaço (Correa, 1995). Mas a lógica apresentada por Santos (1993) acaba fazendo com que este papel seja suprimido.
Em espaços produzidos segundo esta lógica, as questões ambientais (onde se encontram em seu vasto leque os problemas ligados à qualidade do ar) são comumente deixadas de lado. Enquanto isto, não é difícil encontrarmos ambientes urbanos onde nos transparece o descaso do poder público para com o meio ambiente, notadamente a poluição atmosférica.
Apesar de apresentar momentos em que os níveis de poluição são extremos e uma oscilação regular, a má qualidade do ar é um problema constante, portanto não episódico e fruto direto do crescimento desmedido de qualquer cidade, de modo que a discussão de tal problema sobressai a capacidade de resiliência das áreas em voga, e se foca nas capacidades de adaptação e mitigação das cidades. A caracteristica híbrida de tal risco, conforme mencionado, deve refletir também nas buscas por soluções, não sendo focadas portanto, na ação de um único ator, perpassando, uma ampla reflexão sobre o estilo de vida individual e coletivo das sociedades, incentivado por políticas públicas adequadas e gestão dos ambientes urbanos. Os fatos destacados no texto levam-se a inserir a poluição atmosférica como uma repercussão direta da segregação e desigualdade socioespacial tão latente no mundo capitalista e encontra na ciência geográfica, grande potencial para análises no campo da qualidade do ar, dado seu caráter interdisciplinar e por estudar as relações entre sociais e naturais, tendo o espaço como campo de análise.