I. Introdução
Neste artigo apresentam-se elementos que permeiam novas reflexões sobre a gestão da terra no contexto das cidades moçambicanas, a partir da valorização de abordagens que enaltecem a colaboração entre os principais atores, Município e Autoridades Comunitárias, como requisito fundamental para orientar a forma de ocupação do território.
Modelos colaborativos de gestão da terra são aqui entendidos como processos baseados na valorização do envolvimento de diversos autores-atores na percepção dos problemas prevalecentes, na formulação de um pensamento coletivo crítico e na identificação de respostas consensuais para os problemas do território em consideração.
As cidades moçambicanas têm sido caraterizadas pela prevalência e reprodução de situações que revelam um caráter precário da forma de ocupação do território. A ocorrência destes problemas têm sido associado à falta de planeamento ou ordenamento do território, sem, no entanto, relacionar com a atuação dos atores com ingerência no acesso à terra.
A ocupação indiscriminada da base biofísica para edificação de habitações é um problema “de barbas brancas”, como se pode constatar dos relatórios do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (United Nations Human Setlements Programme [UN-Habitat], 2007) e Banco Mundial (2009), bem como dos estudos efetuados por Jenkins (2001), Negrão (2004) e Caomba (2018). Estes autores são unânimes quanto ao reconhecimento de que a reprodução de problemas de ocupação desregrada do meio físico revela dificuldades de controlo e orientação da ocupação da terra por parte do Estado. Destes autores, somente Jenkins (2001) centra-se na análise da relação entre os mecanismos de acesso à terra e o desenvolvimento urbano.
Um estudo efetuado por Lage e Mazembe (2017) aponta que o fenómeno da rápida urbanização em Moçambique não tem sido acompanhado por estratégias e programas específicos de desenvolvimento urbano. Ademais, os meios de comunicação social têm reportado situações de demolição de casas erguidas em áreas consideradas “impróprias”, no caso concreto dos Municípios da Cidade de Maputo e da Cidade de Matola, bem como municípios que agendam seguir o exemplo, no caso dos Municípios da Cidade de Tete e Pemba. Estes problemas, de construção de habitações em áreas “impróprias” e demolições, ocorrem em unidades administrativas de bairro onde existe a figura de Autoridade Comunitária, que intervém na alocação de parcelas de terra. Esta situação remete à reflexão sobre o papel das Autoridades Comunitárias no processo de gestão da terra e sua relação com o Município.
A prevalência da ocupação indiscriminada dos espaços de um sítio motivou a elaboração do presente trabalho, no intuito de refletir sobre a gestão da terra no contexto das cidades moçambicanas visando ancorar uma proposta de gestão colaborativa entre os atores com ingerência no acesso à terra.
Considera-se que há necessidade de criar espaços de reflexão crítica com o envolvimento ativo dos atores com poder de influência na adjudicação de parcelas de terra. A função principal destes atores deve ser de identificar as causas dos problemas inerentes à forma de ocupação do território, bem como o desenho de soluções focalizadas em objetivos de ordenamento territorial.
Entende-se que a gestão territorial voltada para a sustentabilidade do padrão de urbanização exige uma adequada articulação e concertação entre os principais atores com influência no acesso à terra. Aqui reside a importância teórico-metodológica do trabalho, na medida em que a proposta está focada na valorização da abordagem colaborativa como estratégia de orientação da forma de ocupação do território, envolvendo os principais agentes com ingerência no acesso à terra.
Do ponto de vista setorial, a proposta apresentada afigura-se relevante e oportuna, na medida em que pode influenciar na valorização de abordagens colaborativas e participativas como recurso metodológico de auxílio ao planeamento e gestão territorial.
Considerando os aspectos anteriormente expostos, e com auxílio dos resultados de estudos empíricos, este artigo tem por objetivo principal apresentar fundamentos para uma gestão colaborativa da terra entre o Município e as autoridades comunitárias, valorizado como mecanismo de auxílio à orientação da forma de ocupação do território.
Metodologicamente, o trabalho guia-se de um enfoque predominantemente qualitativo, com auxílio da análise documental e bibliográfica, o uso de recursos cartográficos, bem como da realização de trabalhos de campo para observação direta da realidade sócio-espacial e a realização de entrevistas semiestruturadas aplicadas aos Chefes do Agregado Familiar, autoridades comunitárias e gestores do Município.
O artigo começa por apresentar reflexões sobre a influência do Município e das Autoridades Comunitárias na forma de ocupação do território e, posteriormente, os pressupostos para uma gestão colaborativa da terra.
A cidade de Lichinga ocupa uma pequena área ocidental da província nortenha de Niassa, cuja coordenada geográfica referente à parte central da cidade é de 13o18’00 de Latitude Sul e 35o14’45’’ de Longitude, com uma superfície de 258km2, correspondente a 0,20% da superfície total da província (fig.1).
II. Mecanismo de acesso à terra, atores e formas de ocupação do território
Parte-se da premissa de que a forma de ocupação do território está largamente relacionada aos mecanismos de acesso à terra adoptados. A forma de ocupação do território expressa à espacialidade da produção do espaço prevalecente e as possibilidades de sua apropriação.
Induzir sustentabilidade na forma de ocupação do território diante da prevalência de diversos mecanismos de acesso à terra constitui um dos desafios das autarquias em Moçambique. Mais do que uma preocupação linear com a rápida urbanização, Grostein (2001) chama a atenção para a importância de incluir a forma de ocupar o território como uma das variáveis para aferir a sustentabilidade desse processo.
A partir de Carlos (2007), entende-se que o conteúdo da produção do espaço da cidade é determinado pelas possibilidades de uso e apropriação da terra. Particularmente, no contexto de Moçambique em que a terra é propriedade do Estado e “não” pode ser vendida, a realidade socioespacial expressa as possibilidades de acesso à terra. Aqui reside a importância de incluir o acesso à terra como componente fundamental para relacionar com a forma de ocupação do território.
Quais são as possibilidades legais de aquisição de Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT) nas áreas administrativamente consideradas de cidade?
1. Mecanismos legais de acesso à terra na cidade
Considerando que o território da cidade não é estático ao longo do tempo, considera-se importante valorizar a variedade de normas e práticas existentes no campo. Por conseguinte, afigura-se também fundamental não olvidar o papel das autoridades comunitárias na gestão de terras nas cidades.
Em Moçambique, o quadro jurídico-legal estabelece diferentes modalidades de acesso à terra para as “áreas rurais” e “áreas urbanas”, definindo dois regulamentos da Lei de Terras (Lei n.º 19/97): por um lado, o Regulamento da Lei de Terras, voltado para o campo ou “áreas rurais” e, por outro, o Regulamento do Solo Urbano, voltado para a cidade ou “áreas urbanas”. Neste trabalho não se discutirá a distinção dos conceitos de área rural/urbano versus cidade/campo.
A Lei de Terras (Lei n.º 19/97), aprovada em 1997, define que a terra é propriedade do Estado, e que as pessoas somente adquirem o Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT). Segundo o artigo 12 desta Lei de Terras, o DUAT pode ser adquirido por: i) comunidades locais e pessoas singulares, que ocupam a terra segundo as normas costumeiras; ii) por ocupação de boa fé, quando o nacional ocupa a terra há pelo menos 10 anos, ou iii) por atribuição pelo Estado a pedido de um requerente.
Quando o DUAT é adquirido por ocupação (costumeira ou de boa fé) não há obrigatoriedade de registo, neste sentido, o registo serve somente para formalizar este direito. Portanto, observa-se que o quadro legal reconhece e formaliza os direitos por ocupação segundo as práticas e normas costumeiras de aquisição da terra, concretamente nas áreas “rurais”. Por conseguinte, as estruturas tradicionais de gestão de terra e recursos naturais desempenham papel fundamental na aquisição do DUAT por via costumeira.
Por outro lado, o Regulamento do Solo Urbano (Decreto n.º 60/2006) visa orientar o uso e aproveitamento da terra nas áreas de cidades e vilas. Contudo, importa sublinhar que o Regulamento do Solo Urbano não inclui a ocupação costumeira como modalidade de acesso ao DUAT nas cidades e vilas.
Considera-se que a exclusão da possibilidade de aquisição do DUAT segundo ocupação costumeira na cidade limita a implementação do Regulamento do Solo Urbano, na medida em que se distancia da realidade de determinados territórios, no caso específico da cidade de Lichinga onde as estruturas tradicionais (no caso concreto de régulos) exercem papel importante na gestão de terras. Ademais, como se sublinha, o território da cidade não é estático e, por conseguinte, pode expandir para o campo, como se observa na cidade de Maputo.
Em 2007 foi aprovada a base legal específica sobre as atividades de planeamento e ordenamento do território, concretamente a Política de Ordenamento do Território (Resolução n.º 18/2007) e a Lei de Ordenamento do Território (Lei n.º 19/2007). Segundo o artigo 6 da Lei de Ordenamento do Território, compete ao Estado e às Autarquias Locais promover, orientar, coordenar e monitorar de forma articulada o ordenamento do território. Embora esta Lei defina a obrigatoriedade de elaboração dos instrumentos de ordenamento territorial, grande parte dos municípios em Moçambique não dispõem planos de estrutura urbana, como é o caso do Município da Cidade de Lichinga. Portanto, embora exista um quadro legal para orientar a organização do meio físico com vista ao seu aproveitamento harmonioso e sustentável, observa-se nas cidades moçambicanas a ausência da aplicação de instrumentos de ordenamento do território, acompanhado da reprodução da ocupação espontânea e informal, particularmente em áreas susceptíveis a inundações e em encostas íngremes.
Admite-se que a ausência de instrumentos de ordenamento do território influencia negativamente a organização do meio físico e a melhor distribuição das atividades humanas no território.
A figura de autoridades comunitárias é legalmente referenciada como ator ativo com influência na adjudicação de terras no campo. Quais são as atribuições legais conferidas às autoridades comunitárias no que diz respeito à gestão de terras?
Segundo o Regulamento do Decreto n.º 15/2000 (República de Moçambique, 2000), que estabelece as formas de articulação dos Órgãos Locais do Estado (OLE) com as Autoridades Comunitárias, entende-se por autoridade comunitária as pessoas que exercem certa forma de autoridade sobre uma determinada comunidade ou grupo social, tais como chefes tradicionais, secretários de bairro ou aldeia e outros líderes legitimados como tais pelas respectivas comunidades ou grupo social. Os Chefes tradicionais são as pessoas que assumem e exercem a chefia de acordo com as regras tradicionais da respectiva comunidade. Os secretários de bairro ou aldeia são as pessoas que assumem a chefia por escolha feita pela população do bairro ou aldeia a que pertençam. Este regulamento aborda as Autoridades Comunitárias como entidades existentes nas “áreas rurais”, e não nas “áreas urbanas”.
Com base do artigo 4 do Decreto n.º 15/2000, as autoridades comunitárias articulam com os órgãos locais do Estado nas atividades ligadas ao uso e aproveitamento da terra; paz, justiça e harmonia social; elevação cívica e elevação de espírito patriótico, entre outras atividades.
Do anteriormente exposto, embora o Regulamento do Solo Urbano não inclua, observa-se que a ocupação costumeira constitui um dos mecanismos de acesso à terra.
Por conseguinte, e em corroboração com Jenkins (2001) e Negrão (2004) nos espaços administrativamente designados por cidade há quatro possibilidades de adquirir o DUAT, nomeadamente: i) através dos sistemas de direitos costumeiros (com as autoridades comunitárias como um dos como atores ativos na adjudicação de parcelas de terra, para além do Município/Estado); ii) por adjudicação directa do Estado (que tem como ator ativo-chave o Estado/Município, contudo não dispensa as autoridades comunitárias); iii) pela ocupação de boa-fé; e iv) por transações de direitos pela via do mercado (intervêm tanto o Estado/Município como as autoridades comunitárias, embora com papéis diferentes).
Portanto, cada forma de acesso à terra corresponde a determinados atores ativos, daqui a importância de refletir sobre a relação entre os mecanismos de acesso à terra e a forma de ocupação do território, informações fundamentais para identificar lacunas que afetam a gestão territorial.
2. Relação entre mecanismos de acesso à terra e a forma de ocupação do território
Sublinha-se a pertinência de refletir sobre os mecanismos de atuação dos atores com ingerência no acesso à terra, na medida em que condicionam a forma de ocupação do território. Assim, assume-se como premissa que os problemas inerentes à forma de ocupação do território resultam da ausência ou deficiente articulação entre as Autoridades Comunitárias (régulos e secretários do bairro) e o Município no controlo do acesso à terra e orientação da ocupação do território.
Moçambique é financeiramente um dos países mais pobres do mundo. Segundo o relatório do desenvolvimento humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), referente ao ano de 2020, é o nono país menos desenvolvido do mundo, na posição 181º no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), entre 188 países, com um IDH de 0,456 (PNUD, 2020). Esta realidade condiciona a definição de estratégias de gestão territorial a aplicar.
Especificamente, e a partir de fontes bibliográficas e documentais, a análise temporal da urbanização e gestão da terra em Moçambique possibilita identificar traços característicos, concretamente antes e depois da independência de Moçambique.
Por um lado, o período colonial, antes de 1975, marcado pela dualidade de processos socioespaciais, de cunho mais racial, do qual se distinguia a “cidade de cimento” e a “cidade de caniço”. A “cidade de cimento” era reservada aos cidadãos de raça “branca”, onde se concentravam os principais investimentos, de ocupação precedida de uma planificação e, particularmente, cujo regime fundiário era semelhante ao então existente em Portugal. Em oposição, estava a “cidade de caniço”, com escassez de infraestruturas e serviços básicos, reservada aos nativos ou população negra, sendo predominantemente de ocupação espontânea, cujas casas eram edificadas com base em material precário e, particularmente, predominavam sistemas consuetudinários de acesso à terra.
Por outro lado, o período pós-independência, cuja primeira parte (entre 1975 e 1992) inicialmente marcada pela fuga de quadros e redução das capacidades técnicas de gestão territorial, como resultado da nacionalização da terra, em 1976, acompanhada da ocorrência da guerra civil (1976-1992), fatores que no seu conjunto não possibilitaram orientar e controlar a forma de ocupação do território, diante de uma forte migração campo-cidade, em busca de melhores oportunidades de vida. Um marco importante neste período foi a realização da 1ª Reunião Nacional sobre Cidades e Bairros Comunais, de 26 de fevereiro a 3 de março de 1979, no qual, pela primeira vez foi assinalada a necessidade de planificar a cidade em observância às necessidades da população. Nesta parte, verificou-se a reprodução da ocupação espontânea e informal para implantação de habitações, diante da ausência de instrumentos de ordenamento territorial. A segunda parte do pós-independência, de 1992 até então, é assinalada, positivamente, pela disponibilização de um quadro legal que cria condições jurídicas fundamentais para disciplinar a ocupação do território e, negativamente, pela prevalência dos problemas apontados, relacionados com a forma de ocupação do território, e o fortalecimento de mecanismos informais de acesso à terra.
Diversos autores reconhecem que a velocidade da urbanização em Moçambique tem sido muito superior à capacidade de intervenção das entidades públicas responsáveis pelo desenvolvimento urbano (Banco Mundial, 2009; Jenkins, 2001; Lage & Mazembe, 2017; Negrão, 2004). Como resultado, Lage e Mazembe (2017) estimam que 70% da ocupação nas cidades são assentamentos informais. A figura 2 possibilita apreender como expandiu a cidade de Lichinga entre 1960 e 2021, com destaque para a distinção entre a área planificada no período colonial e a ocupação indiscriminada em 2021.
Com base no Instituto Nacional de Estatísticas (INE), a população da cidade de Lichinga passou de 41 000 habitantes, em 1981, para 213 317 habitantes, em 2017. Segundo dados de projeção da população, espera-se que a cidade de Lichinga tenha 560 871 habitantes em 2040, isto é, irá duplicar o tamanho da sua população em cerca 20 anos.
Com auxílio do mapeamento efetuado por Masquete (2018), a área urbanizada da cidade de Lichinga foi estimada em 638ha, em 1984, tendo quintuplicado passados 22 anos, isto é, em 2016 a área urbanizada correspondia a 2167ha. Portanto, estes dados expressam uma situação de forte crescimento da população, aliada à forte expansão da área edificada e ao padrão de ocupação territorial predominantemente horizontal. Esta realidade acresce aos desafios das entidades com competência em disciplinar a ocupação do território, particularmente para atender as preocupações de dimensão geográfica, num contexto de baixos recursos financeiros por parte destas entidades públicas.
Ademais, a análise da estrutura espacial do uso e ocupação da terra possibilita definir três segmentos com características bem nítidas: a Cidade de Cimento (predominantemente de edificação colonial, com uma estrutura pouco alterada desde o período colonial até então, constituindo a imagem da “herança” do urbanismo colonial); a área suburbana (de ocupação densa, constituída tanto de zonas de ocupação planeada cujos DUATs foram adquiridos a partir da autorização pelo Estado, como também se observam zonas de zonas de ocupação espontânea e desordenada, cujo DUAT foi adquirido tanto por ocupação costumeira como por ocupação de boa fé) e a área periurbana (ocupada maioritariamente por nativos e, como resultado, grande parte dos moradores detém o direito costumeiro de uso e aproveitamento da terra). Trata-se de uma área pouco edificada, portanto, reúne enormes espaços para atender demandas para fins habitacionais, particularmente, correspondendo ao modelo de organização espacial definido por Araújo (2003).
A área suburbana ainda oferece alguns espaços edificáveis, contudo de reduzida acessibilidade diante da concorrência, o que limita a ocupação por segmentos da população de baixa renda. A rede de abastecimento de água potável é escassa na área suburbana e inexistente na periferia. Os poços e furos constituem a principal fonte de água para as populações que residem na área periurbana, bem como parte considerável da população ainda recorre à água dos rios para suprir estas necessidades.
Com auxílio da observação e interpretação de imagens do Google Earth, da observação direta e realização de entrevistas, a configuração sócio-espacial presente nas áreas urbanizadas da cidade de Lichinga possibilita identificar duas realidades bem distintas:
- Novas habitações foram implantadas nas chamadas “zonas de expansão”, precedido de parcelamento e cuja geometria espacial dos arruamentos forma quadras, portanto apresentam arruamentos definidos e uma forma regular. A partir de entrevistas efetuadas a um total de 30 Chefes do Agregado Familiar residentes na área amostral do bairro de Massenger, de forma aleatória e ocasional, observa-se que a aquisição do DUAT foi por adjudicação direta do Estado. Mais, a partir da observação do material de construção utilizado na habitação, constata-se que se tratam de áreas ocupadas por segmentos da população de renda médio-alta (fig. 3a);
- Novas habitações são implantadas nas zonas de expansão, no exemplo do bairro ´Nzinge, particularmente na comunidade de Niassa1, de forma espontânea e a partir de mecanismos informais de acesso à terra. Tratam-se de zonas sem uma geometria regular ou cuja forma é irregular, as parcelas residenciais foram implantadas junto a vias sinuosas, sem arruamentos bem definidos, ou por vezes foram implantadas junto às áreas inundáveis ou declivosas. A partir de entrevistas efetuadas a um total de 30 Chefes do Agregado Familiar, observa-se que prevaleceram mecanismos costumeiros de acesso à terra, legitimados pelas autoridades comunitárias. Em observância ao material de construção utilizado na habitação, assume-se que nessas zonas predomina população de renda médio-baixa (figs. 3b e 3c).
A partir de dados cartográficos sobre o uso e ocupação da terra na cidade de Lichinga, processados com o software ArcGis 10.8, em 2012 a área de edificação não planeada era de 763ha, contra 1543ha de edificação planeada. As áreas de edificação não planeada estavam localizadas tanto junto ao centro da cidade como nas áreas de expansão localizadas na periferia (fig. 4).
Particularmente em relação à cidade de Lichinga, Caomba (2018) aponta como fatores que influenciaram a ocupação das áreas consideradas ambientalmente frágeis para uso habitacional, especificamente as áreas inundáveis, nomeadamente: a falta de um plano de estrutura urbana, o crescimento do mercado informal de terras, as vantagens da localização das planícies aluviais próxima do centro da cidade, a fraca expansão territorial dos serviços básicos urbanos, de água, energia e de transporte público urbano. Para este autor, os aglomerados habitacionais precários localizados nas áreas inundáveis resultaram da conversão de parcelas de uso agrícola, bem como a adjacência ao centro da cidade e o custo “acessível” de aquisição informal de parcelas de terra figuram como os principais fatores que influenciaram a dimensão geográfica das edificações por este segmento da população.
Os dados e informações apresentadas permitem identificar que existe relação entre os mecanismos de acesso, perfil socioeconômico do Chefe do Agregado Familiar e a forma de ocupação do território. Assim, a população de baixa renda ocupa predominantemente áreas de expansão de ocupação espontânea, não parceladas pelo Município, com recurso a mecanismos informais de acesso à terra ou de ocupação costumeira. Contudo, os mecanismos “informais” e costumeiros são legitimados pelo secretário de bairro ou pelo régulo ao passarem uma Declaração, documento que confere legitimidade como detentor de DUAT. Assim, as Autoridades Comunitárias intervêm efetivamente na alocação de parcelas de terra recorrendo à possibilidade de alocação do DUAT através das normas e práticas da ocupação costumeira, como também intermediam na aquisição do DUAT a partir da autorização de pedido apresentado por singulares, especificamente.
A partir das entrevistas semiestruturadas, realizadas concretamente no sentido de perceber “querendo ter posse de uma parcela de terra, quem deveria contatar primeiro, o Município ou as Autoridades Comunitárias?”, efetuadas tanto às autoridades comunitárias como aos gestores do Município, observa-se uma desarticulação: por um lado, por parte das autoridades comunitárias há uma percepção que o procedimento para aquisição de parcelas de terra parte e deveria partir destes, uma vez que também melhor conhecem a situação de ocupação da zona sob sua influência; por outro lado, os gestores do município reconhecem que as autoridades comunitárias detêm forte ingerência na alocação de parcelas de terra no território sob sua influência, contudo, também apontam que as autoridades comunitárias contribuem para os problemas relacionados com a forma de ocupação, na medida em que tem atuado unilateralmente e “os régulos como são naturais dali pensam que toda a terra é deles”.
O Município detém competência legal para promover e orientar o ordenamento do território. Para tal, o Município deve atuar em articulação com as autoridades comunitárias (Régulos e secretários dos bairros), entre outros atores sociais, no controlo do acesso à terra e na orientação da forma de ocupação do território.
Portanto, do anteriormente exposto percebe-se que o impacto da urbanização é assinalado pelo predomínio da informalidade no acesso à terra, acompanhado da prevalência de assentamentos populacionais em lugares considerados ambientalmente impróprios para viver. Diante das limitações financeiras das instituições públicas em prover infraestrutura de esgotos, drenagem de águas pluviais e estradas de acesso, esta realidade põe em risco os cidadãos que ali vivem (Noronha & Brito, 2010) (fig. 5).
Segundo o relatório da African Development Bank (AfDB), Organisation for Economic Co-Operation and Development (OECD) e United Nations Development Programme (UNDP), centrado nas caraterização da urbanização das cidades africanas, estes autores destacam como fatores relacionados com a insustentabilidade da forma de ocupação do território, nomeadamente: o forte crescimento populacional em contexto de prevalência de sistemas de gestão de terra considerados “fracos”, a coexistência de diferentes sistemas de posse da terra e mercados de terras distorcidos e ineficientes, bem como a ausência do cumprimento do quadro legal sobre (AfDB et al., 2016).
No contexto de Moçambique, Lage e Mazembe (2017) sublinham que as autoridades comunitárias (líderes comunitários ou secretários de bairros) são os atores ativos na ocupação de espaços onde o poder público não tem capacidade de intervir.
Do até então apresentado, observa-se que há uma relação entre os mecanismos de acesso à terra e a forma de ocupação do território. Em todos os mecanismos de acesso à terra, contudo, as autoridades comunitárias e/ou secretários de bairros são os atores ativos que garantem e legitimam a ocupação desses espaços. Portanto, assinala-se a importância de conhecer os atores com maior ingerência na adjudicação de parcelas de terras como condição sine qua non para definir estratégias de orientação da ocupação do território.
III. A abordagem colaborativa na gestão da terra
A partir da realidade observada nas cidades moçambicanas, assume-se que a fraca articulação entre as entidades municipais e autoridades comunitárias na alocação de parcelas de terra influencia na forma de ocupação do território, constituindo, assim, um dos principais fatores para a prevalência e reprodução da ocupação indiscriminada da base biofísica. Neste sentido, como estratégia de orientação da forma de ocupação do território, propõe-se a adoção de uma abordagem colaborativa e participativa, correspondendo à valorização do envolvimento ativo dos autores-atores do “problema” na análise da realidade e desenho de estratégias consensuais com vista a melhor forma de ocupação do território, ao que corresponde a observância do que a base biofísica nos sugere e ao que a base político-legal nos orienta.
A presente proposta tem por base a estratégia Desenvolvimento Territorial Participativo e Negociado (DTPN) da FAO (Food and Agriculture Organisation, 2005) e as propostas colaborativas e participativas de Franco (2011).
Segundo a FAO (2005), a estratégia Desenvolvimento Territorial Participativo e Negociado (DTPN) é baseada em reflexões sobre a gestão de recursos naturais, incluindo o ordenamento do território. Esta estratégia centra-se na promoção de um processo de tomada de decisões consensuais pelos atores do território, estimulando a busca de soluções para as questões do desenvolvimento territorial, considerando a base sociopolítica em vez de tão-somente aspectos técnicos e econômicos.
Na estratégia DTPN, os diagnósticos territoriais colaborativos são fulcrais na medida em que possibilitam a promoção de diálogo entre os atores, cujo fim é a definição das atividades que irão possibilitar o desenvolvimento territorial, que permitam a realização de projetos ambientais, sociais, econômicos e culturais dos atores, reconhecendo-os como promotores do próprio desenvolvimento.
Assim, o resultado da estratégia DTPN é a definição do pacto social territorial, formulado pelo conjunto de atores e pode compreender um plano de desenvolvimento territorial ou um plano de gestão de recursos naturais.
Para Franco (2011), a importância das abordagens participativas e colaborativas reside na possibilidade de favorecem a aprendizagem e o desenvolvimento prático de diagnósticos entre os diversos atores, bem como a definição de planos de intervenção para a construção de agendas socioambientais locais. Assim, perante a prevalência de processos que resultam na degradação da qualidade ambiental de um dado território, Franco (2011) realça a importância da consolidação de propostas colaborativas e participativas, como estratégia que leva em consideração a existência de interlocutores e participantes sociais relevantes e ativos, que, guiando-se de um processo de diálogo informado mútuo, reforça um sentimento de corresponsabilização.
As abordagens colaborativas e participativas são aqui entendidas como processos de construção de estratégias de intervenção a partir do conhecimento da realidade do território, coletivamente. É assim que Franco (2011) realça que as propostas colaborativas e participativas favorecem a aprendizagem e o desenvolvimento prático de diagnósticos coletivos e, particularmente, permitem refletir sobre os problemas associados à forma de ocupação do território e, conjuntamente, explorar as possibilidades e perspectivas de intervenção.
Perante os problemas relacionados com a forma de ocupação do território observada nas cidades moçambicanas, no geral e, em particular, na cidade de Lichinga, sublinha-se a importância de uma abordagem de gestão territorial em que os principais atores com ingerência no acesso à terra, concretamente o Município e as autoridades comunitárias, realizam diagnósticos colaborativos e participativos sobre a forma de ocupação do território, identificando coletivamente os desafios locais e, por conseguinte, definindo ações que devem ser implementadas por estes autores-atores para reverter os problemas. Por conseguinte, em termos metodológicos, esta abordagem propõe:
- Levantamento coletivo das áreas-problema3, concretamente quanto à forma de ocupação do território, particularmente localizadas nas “zonas de expansão urbana”;
- Identificação coletiva dos mecanismos de acesso à terra adoptados nas áreas-problema, considerados como as causas imediatas do problema inerente a forma de ocupação do território;
- Reflexão coletiva sobre os desafios locais decorrentes das formas de acesso à terra adoptados e dos problemas da ocupação do território;
- Apresentação de estratégias de atuação consensuaispara orientar a forma de ocupação do território, fundamentada no controlo do aceso à terra e na orientação da ocupação do território.
Assim, assume-se que a presente proposta de intervenção, envolvendo o Município e as Autoridades Comunitárias, com foco no controlo do acesso à terra, possibilita melhorar a forma de ocupação do território. Para tal, o conhecimento dos mecanismos de acesso à terra nas áreas-problema constitui uma das condições fundamentais.
O levantamento das áreas-problema pode ser efectuado com auxílio de imagens de satélite e complementado pela estratégia da caminhada diagnóstica. O uso de imagens de satélite pelos intervenientes irá auxiliar na leitura da dinâmica do uso e ocupação da terra no período em análise e o levantamento de problemas relacionados com a forma de ocupação, prevalecentes nas áreas de expansão no período em análise. Dada as limitações financeiras para os atores efetuarem diagnósticos a partir das observações de campo, o uso de imagens de satélite constitui uma mais-valia, como refere Santos e Bacci (2011), já que estas favorecem a construção de uma visão ampla e integrada do território e seus problemas.
A partir de Franco (2011), a caminhada diagnóstica consiste na realização de marchas coletivas e intencionais, efetuadas pela equipe constituída pelas autoridades comunitárias e pelos agentes e funcionários do Município, voltada para o conhecimento da realidade que prevalece no território. O resultado da caminhada é a criação de espaços de diálogo entre os principais atores com ingerência no acesso à terra, considerados como autores-atores, em que refletem sobre a realidade socioambiental que observam no local e, assim, definem ações consensuais para a melhoria dos problemas identificados.
A percepção dos mecanismos de acesso à terra adoptados nas áreas-problema constitui uma das etapas fundamentais de auxílio à redefinição de estratégias de gestão da terra. Portanto, o resultado desta ação inclui maior consciencialização do Município e das Autoridades sobre os problemas decorrentes dos mecanismos de acesso à terra adoptados.
Posteriormente, em secções de reunião em gabinete, os atores sociais envolvidos no diagnóstico refletem sobre as causas dos problemas relacionados com a forma de ocupação do território nas áreas-problema e identificam, conjuntamente, os desafios locais, especificamente os relacionados com a sua atuação como agentes com influência na alocação de parcelas de terra.
Portanto, assume-se que a materialização da proposta de gestão colaborativa da terra tem o potencial de possibilitar disciplinar a forma de ocupação do território.
IV. Considerações finais
Nesta fase considera-se importante reafirmar que cidade é produzida por uma multiplicidade de sujeitos que devem ter sua ação articulada e coordenada, a partir de um pacto que corresponda ao interesse público e voltado para atender a todos.
A prevalência e reprodução da ocupação indiscriminada da base biofísica ocorre em contexto em que não há articulação entre o Município e as autoridades comunitárias quanto ao controlo e orientação da ocupação da terra. As autoridades comunitárias constituem atores válidos que intermediam todos processos de aquisição do DUAT, quer via autorização quer via ocupação, ou ainda na formalização dos mecanismos informais.
A partir de evidências empíricas, constata-se que a reprodução de problemas decorrentes da forma de ocupar o território é influenciada pelos mecanismos de acesso à terra prevalecente. É diante desta percepção que se apresenta esta proposta de gestão territorial guiada por uma abordagem colaborativa e participativa, envolvendo o Município e as autoridades comunitárias, enquanto agentes com forte poder na alocação de parcelas de terra.
A proposta é norteada pela realização do diagnóstico colaborativo sobre a forma de ocupação do território, seguido da análise da sua relação com os mecanismos de acesso à terra adoptados nas áreas-problema. Defende-se que esta abordagem metodológica possibilita a construção de estratégias de intervenção mais consensuais, baseadas na compreensão da realidade local, no qual, diante da identificação dos problemas e desafios locais, são traçados responsabilidades e recomendações estratégicas para os principais autores-atores, concretamente o Município e Autoridades Comunitárias, com vista à optimização da forma de ocupação do território. Contudo, a falta de ensaio prático desta proposta constitui uma das principais limitações.