I. Introdução
Garantir a segurança alimentar global é um desafio indiscutível do século XXI. A agenda da segurança alimentar global exige esforços internacionais urgentes baseados em estratégias eficazes para enfrentar os desafios complexos de cada região associados, por exemplo, à mudança no padrão de consumo alimentar, às alterações climáticas e ao abandono e/ou a intensificação do uso dos solos (Foley et al., 2011; Rocha et al., 2022; Wu et al., 2014). Especificamente, os sistemas agrícolas são a principal fonte biogeofísica que garante os benefícios nutricionais e a segurança alimentar e ainda uma variedade de serviços ambientais, culturais e sociais, especialmente quando a agricultura é praticada de forma sustentável (Scown et al., 2019; Stephens et al., 2018). São, portanto, indispensáveis para garantir a segurança alimentar futura e alcançar as metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), e.g., na redução da pobreza (ODS 1) e no aumento do bem-estar da população (ODS 3) (Avtar et al., 2020; Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura [FAO], 2017; Viana et al., 2022).
Apesar do uso agrícola ainda ser predominante na Europa (48%), entre 1900 e 2010, aproximadamente 38% destes solos foram perdidos para outros usos, enquanto apenas cerca de 29% foram ganhos (Fuchs et al., 2015). A mesma tendência tem sido observada em Portugal, onde ocorreram mudanças substanciais na dinâmica dos sistemas agrícolas nas últimas décadas (Freire & Lains, 2015, 2017; Medeiros, 2009). Em 1875, estimava-se que os solos de uso agrícola cobriam cerca de 21% de Portugal continental; de 1902 a 1907, houve um aumento para 35% (Medeiros, 2009). Estes continuaram a aumentar com a campanha do trigo, que começou com a legislação de 1889 e a política do trigo em 1929. Em 1956, estimava-se que esta proporção aumentou para 54% dos solos (Medeiros, 2009).
Em Portugal, para além das características naturais e socioeconómicas que têm impactado as zonas rurais e as atividades agrícolas ao longo do último século, os solos de uso agrícola estiveram quase sempre condicionados às principais tendências das políticas públicas e das autoridades nacionais (Ferreira, 2001). Uma das políticas e medidas foi a adesão de Portugal à União Europeia, em 1986, que marcou o início da aplicação da Política Agrícola Comum (PAC). Desde então, a evolução da agricultura portuguesa tem estado intrinsecamente ligada à evolução da PAC, nos seus pressupostos básicos e nos instrumentos de aplicação prática. De acordo com os dados oficiais da Direção-Geral do Território (DGT), entre 1995 e 2007, cerca de 4,3% dos solos de uso agrícola foram perdidos para outros usos. Até 2015, a tendência foi uma diminuição destes solos: os últimos dados de 2018 indicam uma cobertura de cerca de 41% dos solos de Portugal continental (DGT, 2018).
Assim, um dos principais desafios atuais dos sistemas agrícolas está associado às constantes transformações registadas nas últimas décadas, desde a alteração do uso destes solos por outros tipos de uso (Foley et al., 2011; Radwan et al., 2019), ao abandono destes solos (Castillo et al., 2021; MacDonald et al., 2000), e ao seu uso intensificado (Lambin et al., 2000; Olesen et al., 2011). Todas estas transformações indiretamente influenciam a produção global de alimentos e os objetivos da segurança alimentar global. Como resultado, os sistemas agrícolas enfrentarão numerosos desafios nas próximas décadas, e a capacidade destes no apoio à segurança alimentar global será determinada pela sua eficiência, sustentabilidade e equidade (Kastner et al., 2012; Nelson et al., 2010). Por esta razão, a capacidade de integrar abordagens geoespaciais da investigação geográfica para mapear, monitorizar, quantificar e modelar as dinâmicas dos sistemas agrícolas torna-se fundamental para a antecipação de mudanças futuras e projeção de estratégias robustas a longo prazo de forma a gerir os desafios iminentes. Neste artigo, explora-se os avanços no desenvolvimento e integração de análises espaciais, dados geoespaciais e modelos no campo dos sistemas agrícolas, sintetizando a diversidade disciplinar do conhecimento científico disponível e indicando o caminho para atuais e futuras investigações.
II. Contexto histórico da modelação dos sistemas agrícolas
Os sistemas agrícolas são considerados sistemas naturais modificados pela atividade humana com o principal propósito de suportar a produção de gado e produtos agrícolas (desde alimentos para consumo humano, alimentos para consumo animal, para produção de fibras e energia) (Dillon & McConnell, 1997). Um sistema agrícola pode ser considerado como um sistema adaptativo complexo com um conjunto de componentes interconectados, incluindo componentes físicos, culturais, sociais, comportamentais, políticos e económicos, e todos interagem não linearmente no espaço e no tempo (Dillon & McConnell, 1997; Verburg et al., 2015). Assim, elementos como não-linearidade, espácio-temporalidade, emergência, auto-organização e auto-similaridade podem ser usados para descrever os sistemas agrícolas (Antle et al., 2017; Müller et al., 2020).
Dadas as características complexas dos sistemas agrícolas e a sua importância para a vida humana, um número crescente de investigadores, a partir de diferentes perspetivas disciplinares, têm dedicado os seus estudos a esta temática (Jones et al., 2016). Embora, em 1826, von Thünen tenha desenvolvido um dos primeiros modelos relacionados aos solos de uso agrícola e à importância da localização espacial (também conhecida como teoria da localização), um novo progresso importante no desenvolvimento e aplicação de modelos no campo dos sistemas agrícolas só ocorreu na década de 1950. Durante esta década, Earl Heady (1957) publicou um dos primeiros trabalhos sobre modelação de sistemas agrícolas onde tentou maximizar as decisões em escala e avaliar os efeitos das políticas públicas. Posteriormente, Dent e Blackie (1979) publicaram um livro que incluía modelos agrícolas económicos e biológicos. Nesta mesma década, o International Biological Program (IBP) incentivou cientistas de diferentes disciplinas a contribuir para o desenvolvimento e aplicação de modelos no campo dos sistemas agrícolas (Worthington, 1975). No final da década de 1960, Duncan et al. (1967) desenvolveram um modelo de simulação da fotossíntese da copa de diferentes produtos agrícolas (milho, algodão e amendoim). Em 1974, a FAO desenvolveu um modelo de avaliação do uso do solo integrando variáveis relativas ao solo, clima, vegetação e de carácter socioeconómico (FAO, 1976). Entre 1982 e 1986, foram desenvolvidos nos Estados Unidos diferentes modelos para simular a produção de grandes culturas como o milho e o trigo (CERES-Wheat, CERES-Maise) (Wilkerson et al., 1983). Na década de 1990, foram desenvolvidos modelos agrícolas e económicos para estudar o impacto potencial das alterações climáticas nos sistemas agrícolas (Curry et al., 1990; Rosenzweig & Parry, 1994).
Entre as décadas de 1990 e 2000, foram apresentados modelos matemáticos direcionados para as doenças das culturas agrícolas, dos animais e de pragas de insetos (Delgado et al., 2016; Freer et al., 1997; Jones et al., 2003). Tanure et al. (2015) desenvolveram um modelo matemático para a gestão dos solos de uso agrícola. Recentemente, Jones et al. (2016) elaboraram uma síntese da história da modelação dos sistemas agrícolas e das necessidades de investigação atuais e futuras. Os mesmos autores também analisaram o estado atual da modelação dos sistemas agrícolas, com foco na aplicabilidade de diferentes modelos (Jones et al., 2017). Em ambos os trabalhos, os autores concluíram que a modelação dos sistemas agrícolas tem sido promovida para diferentes fins em todas as disciplinas das ciências agrícolas e que o reforço das abordagens de modelação está relacionado principalmente com o desenvolvimento de técnicas matemáticas e estatísticas (Jones et al., 2016, 2017).
Recentemente, Viana et al. (2022) apresentaram os resultados de uma revisão da literatura focada na relação entre o funcionamento dos sistemas agrícolas e o aumento da segurança alimentar, procedendo à sistematização dos principais campos de pesquisa e à apresentação de uma síntese da diversidade disciplinar e temática do conhecimento científico publicado em revistas de referência entre 1991 e 2019 (fig. 1). A análise revelou que a maioria dos artigos (77% dos 260 artigos) foi publicada entre 2010 e 2019, espelhando a recente relevância adquirida pelas temáticas agrícolas e alimentares, juntamente com análises em Sistemas de Informação Geográfica (SIG), incluindo abordagens na área do mapeamento, monitorização, quantificação, modelação e simulação das dinâmicas dos sistemas agrícolas. Os autores verificaram que os países desenvolvidos da América, Europa e Oceânia têm recebido menos atenção dos cientistas do que Ásia (36%) e África (20%), onde decorreu a maior parte dos estudos de caso, o que indica que as questões alimentares nestes continentes tendem a ser vistas como fulcrais. Durante os cerca de 30 anos estudados, a maior parte da investigação esteve centrada em seis campos principais: mudanças no uso do solo (28%), eficiência dos sistemas agrícolas (27%), mudança climática (16%), motivações do agricultor (12%), agricultura urbana e periurbana (11%) e adequação do solo (7%). Nos anos 1990, os campos mais proeminentes foram a eficiência dos solos agrícolas, agricultura urbana e periurbana e impactos das mudanças climáticas. Mas, durante a primeira década do século XXI, os outros campos começaram a ganhar proeminência. Os autores constataram que cada campo de pesquisa é diversificado e altamente importante para o desenvolvimento global de longo prazo, fornecendo abordagens disciplinarmente transversais para diferentes contextos geográficos.
III. Contexto atual da modelação das alterações dos solos com uso agrícola
As alterações dos solos de uso agrícola que observamos hoje são o resultado direto de uma combinação de fatores sociais, económicos e ambientais associados, por exemplo, às mudanças climáticas, inovações tecnológicas, prioridades ecológicas e políticas, etc., todos variando em diferentes escalas espaciais e temporais com implicações de longo prazo para o meio ambiente e o bem-estar da sociedade (Llerena-Montoya, et al., 2021; Marcos-Martinez et al., 2017; Müller et al., 2020; van Vliet et al., 2015). Assim, o estudo das alterações dos solos de uso agrícola pode ser apoiado por modelos que integrem estes múltiplos fatores e feedbacks complexos associados, considerando que o tempo é intrínseco ao conceito de alterações, e que estas alterações na sua componente temporal são graduais (Agarwal et al., 2002). Como resultado, nas últimas décadas aumentou o número de estudos utilizando diferentes abordagens e técnicas científicas aplicados a sistemas agrícolas (Viana et al., 2022), permitindo auxiliar a gestão deste recurso, resultando num planeamento mais eficaz e em decisões políticas mais informadas (Cao et al., 2019; Foley et al., 2011; Weiss et al., 2020).
Muitos modelos de alterações do uso do solo baseados na teoria geográfica e nas reconstruções de acontecimentos passados têm sido aplicados como ferramentas para extrapolar alterações nos solos de uso agrícola, particularmente, para analisar as alterações que ocorreram no passado usando perspetivas de longo prazo (cruzando diferentes anos, décadas ou séculos), e, assim, permitindo obter perspetivas históricas que podem ajudar a relevar soluções mais eficazes para os desafios atuais e futuros associados à produção de alimentos (Faísca et al., 2021; Viana et al., 2021). Os eventos históricos podem ser transformados em dados históricos que, por sua vez, podem ser utilizados para melhorar a exatidão de modelos de simulação ou estabelecer bases de referência para que diferentes disciplinas científicas possam realizar análises mais informadas (Boivin & Crowther, 2021; Winkler et al., 2021). Modelar as alterações dos solos de uso agrícola com recurso a modelos de alterações do uso do solo permite obter uma avaliação espacial mais detalhada e plausível das transformações nestes sistemas contribuindo para uma maior compreensão da sua segurança a longo prazo e possíveis implicações globais (Foley et al., 2011; Kelly et al., 2013; Radwan et al., 2019). Além disso, a capacidade de mapear e monitorizar as dinâmicas dos solos de uso agrícola permite fornecer informações espaciais e temporais mais precisas que contribuem para uma gestão eficaz destes solos e promovem o seu uso adequado, eficiente e racional (Akpoti et al., 2019).
Num sentido lato, a emergência de abordagens de modelação do uso do solo tem sido impulsionada pelo aumento da capacidade de computação, pelo desenvolvimento exponencial dos SIG, em particular pelas disciplinas da geocomputação e da teoria de sistemas (tais como a complexidade, a auto-organização e as teorias não lineares), e por métodos avançados de recolha de dados (Albrecht, 2005; Goodchild, 2009; Zscheischler & Rogga, 2015). A necessidade de uma compreensão mais ampla da modelação do uso dos solos motivou uma revisão e categorização do número crescente de abordagens baseadas em SIG. Soesbergen (2016) e Noszczyk (2019) elaboraram revisões da literatura e concluíram que, atualmente, os modelos de simulação ou de interface com a inteligência artificial, em particular a machine learning, e a ligação a disciplinas como a computação e a matemática (e.g., através das redes neuronais artificiais, autómatos celulares, lógica difusa ou modelos baseados em agentes) são as abordagens mais populares. Contudo, este tipo de abordagens requer que haja constante produção e atualização de dados, particularmente com propriedades espaciais e temporais, que permitam a calibração e validação dos próprios modelos (Viana et al., 2023; Weiss et al., 2020). Sem dúvida, as capacidades em expansão destas abordagens baseadas em SIG e, mais especificamente, dos modelos de uso do solo, estão altamente dependentes do tipo de dados, da sua resolução e extensão espacial (van Vliet, 2013; van Vliet et al., 2016). Como resultado, a disponibilidade e qualidade dos dados e, principalmente, dos dados geospaciais, é crucial.
1. O valor dos dados geoespaciais na modelação das alterações do uso do solo
Os avanços nas técnicas de recolha de dados, a maior eficiência no processamento de dados e a disponibilização e aumento do número de bases de dados de domínio público contribuíram para o fornecimento de informações importantes e detalhadas para a monitorização ambiental, avaliação e uso sustentável dos recursos naturais e aplicações de desenvolvimento político, industrial e social (Hendler, 2013; Tiropanis et al., 2014). Os avanços na tecnologia de deteção remota e a crescente disponibilidade de dados georreferenciados gratuitos, recolhidos e produzidos por agências governamentais, redes sociais e dispositivos móveis, contribuíram para o aumento substancial de dados geoespaciais (Yu et al., 2020). Em particular, dados de detecção remota são o tipo de dados mais comumente utilizados na modelação das alterações do uso do solo (Lu et al., 2004; Weiss et al., 2020; Wulder et al., 2012). Por exemplo, as imagens do programa Landsat, com resolução espacial de 30m, são amplamente utilizadas para mapeamento multitemporal, quantificação e avaliação das alterações do uso do solo, devido ao seu extenso período operacional (quase 40 anos de registos) e ao acesso gratuito (Alam et al., 2019; Viana et al., 2019). Em Viana et al. (2019) os autores a partir de uma série temporal derivada de imagens Landsat classificaram uma área de estudo agro-silvo-pastoril localizada no distrito de Beja (Portugal) (fig. 2) e analisaram as principais mudanças ocorridas ao longo de 21 anos.
Também imagens provenientes do sensor MODIS (Moderate Resolution Imaging Spectroradiometer) disponibilizadas ao nível global e anualmente de 2000 a 2020, com resolução espacial de 250, 500 e 1000m, têm sido usadas para detectar alterações no uso do solo (Friedl et al., 2010). Mais recentemente, regista-se um aumento na utilização de imagens dos programas Sentinel-2 e Sentinel-1 devido à sua alta resolução (10m), escala global e de acesso gratuito (Campos-Taberner et al., 2020; Phiri et al., 2020; Schulz et al., 2021).
Dados de séries temporais regionais derivados do processamento de imagens de satélite e de dados in situ, como é exemplo o programa CORINE Land Cover (CLC), têm sido utilizados numa variedade de estudos para mapear e avaliar as alterações no uso do solo (Feranec et al., 2017). O programa CLC é coordenado pela Agência Europeia do Ambiente e disponibiliza informação cartográfica temática do uso do solo para os 28 estados-membros da União Europeia e outros países europeus (Büttner & Feranec, 2002) para 1990, 2000, 2006, 2012 e 2018. A cartografia é produzida com regularidade por instituições governamentais ao nível nacional, sendo um recurso valioso que fornece informações para, por exemplo, planeamento e gestão do território, mapeamento de serviços de ecossistemas (Alves et al., 2022; Meneses et al., 2018; Viana & Rocha, 2020). Em Portugal, a DGT disponibiliza gratuitamente cartografia temática do uso e ocupação do solo para 1995, 2007, 2010, 2015 e 2018 (COS) (DGT, 2018). Por exemplo, em Viana e Rocha (2020) os autores utilizam cartografia COS disponibilizados pela DGT para quantificar, visualizar e extrapolar as transições espácio-temporais do uso do solo no distrito de Beja, em Portugal (fig. 3).
2. O potencial das fontes históricas na modelação das alterações do uso do solo
A aplicação de metodologias de análise espacial, no contexto dos SIG e no domínio científico da Geografia, tem facilitado a compreensão dos fenómenos relacionados com as dinâmicas naturais e antrópicas. Consequentemente, promover abordagens quantitativas e geoespaciais em áreas do conhecimento distantes do seu contexto científico habitual permite colocar em prática soluções e procedimentos e beneficiar processos e dinâmicas de inter e transdisciplinaridade (Gregory & Ell, 2005). Em particular, a maioria das fontes históricas contém alguma informação geográfica. Questões como: quando ocorreu determinado fenómeno? ou qual foi a extensão espacial do fenómeno? são exemplos que tanto os historiadores como os geógrafos responderiam para complementar e estruturar novos conhecimentos (Goodchild, 2002; Knowles, 2005). De facto, ambos os campos científicos estão divididos entre o espaço e o tempo e, embora os historiadores não possam ignorar o espaço, os geógrafos dificilmente ignoram o tempo. Por este motivo, nas últimas duas décadas, emergiu a disciplina dos “SIG Históricos” [Historical GIS] (HGIS) proveniente das Ciências Sociais e Humanas quando os dois elementos, tempo e espaço, foram reunidos para validar explicações históricas com evidências geográficas empíricas. HGIS é uma disciplina interdisciplinar centrada na utilização de abordagens geoespaciais a diferentes escalas e recorrendo aos SIG como ferramenta analítica para abordar questões históricas (Gregory & Geddes, 2014; Murrieta-Flores et al., 2017).
Gregory (2001) identificou três principais vantagens no uso dos SIG em pesquisas históricas. Primeiramente, as fontes históricas integram informações com base nas suas localizações geográficas. Em segundo lugar, os SIG possibilitam a visualização dessas informações através de mapas ou até mesmo por meio de tecnologias avançadas, como animações de paisagens virtuais. Por fim, os SIG suportam diversas metodologias de análise espacial, reconhecendo a importância da localização geográfica das variáveis no processo de análise.
O desenvolvimento da disciplina HGIS tem-se dividido em investigação à escala local e projetos de escala nacional que estudam os mais diversos temas, em diferentes épocas históricas e regiões no mundo. O conhecimento adquirido com o desenvolvimento desta disciplina parte de uma primeira geração de projetos massivos e de notória vertente nacional, desenvolvidos principalmente a partir de grandes centros de investigação, que objetivavam a elaboração de cartografia temática de base ao nível nacional. Estes projetos procuravam criar materiais de base histórica e disponibilizá-los para fins educacionais e de investigação, bem como ao público em geral (Knowles, 2008). Ao nível dos projetos nacionais espalhados pelo mundo, destaca-se o maior e mais antigo projeto desenvolvido na disciplina HGIS - o The Great Britain Historical GIS (GBHGIS) (Gregory & Southall, 2000). Iniciado em 1994, foi desenvolvido com a missão de criar um SIG com informações históricas da Grã-Bretanha, a partir de fontes documentais, incluindo estatísticas, mapas e documentos históricos, abrangendo a totalidade ou grande parte dos países. Ao mesmo tempo, em alguns departamentos destes centros de investigação, os primeiros avanços foram feitos principalmente por historiadores, que se focaram principalmente em temas de investigação à escala local (Rumsey & Williams, 2002).
Em Portugal, destaca-se o trabalho desenvolvido no Instituto de História Contemporânea, que iniciaram em 1993 a criação do primeiro “Sistema de Informação Geográfica aplicado à História de Portugal” (SIGMA), presente no site “Atlas, Cartografia Histórica” (www.fcsh.unl.pt/atlas) (Alves & Puig, 2010). Outro exemplo é o do projecto português "Agricultura em Portugal: alimentação, desenvolvimento e sustentabilidade (1870-2010)" que procurou explorar abordagens complementares na análise da evolução dos sistemas agrários e rurais em Portugal. Neste projeto, a utilização dos SIG foi crucial para, a partir de fontes históricas (e.g., Anuários Estatísticos e Estatísticas Agrícolas guardados na Torre do Tombo e nos Arquivos Distritais), contruir bases de dados com séries quantitativas contínuas anuais entre 1850 e 2018 desagregadas ao nível regional sobre a produção de diferentes produtos agrícolas. Uma das mais importantes contribuições do projeto para o conhecimento científico foi a produção de uma longa série espácio-temporal com valores de produção anual para vários cereais (e.g., milho, trigo e arroz). A disponibilização desta série possibilitou o desenvolvimento de análises aplicando diferentes metodologias para obtenção de novas perspetivas geográficas e históricas da produção agrícola regional portuguesa (Faísca et al., 2021; Viana et al., 2021; Faísca et al., 2023). Por exemplo, recorrendo a esta série Viana et al. (2021) analisaram a evolução da produção agrícola em Portugal (fig. 4) e avaliaram os seus padrões e tendências espácio-temporais (fig. 5), permitindo uma leitura cruzada abrangente das características gerais da distribuição regional da produção durante um período de 169 anos.
Numa nota mais geral, analisar o passado usando perspetivas de longo prazo (cruzando diferentes anos, décadas ou séculos) permite obter perspetivas históricas que podem fornecer informações espacio-temporais mais precisas e contribuir para uma gestão mais eficaz do uso do solo. Como os fenómenos ocorrem em múltiplas escalas espaciais e temporais, a capacidade de avaliar ocorrências passadas pode fornecer soluções mais eficazes para os fenómenos atuais e futuros que a sociedade enfrenta (Boivin & Crowther, 2021). Na verdade, a tecnologia SIG tem desempenhado um papel significativo na reconstrução de fontes históricas permitindo extrair, analisar e comparar informações passadas com as mais recentes e inspirando novos cenários de compreensão ao procurar no espaço a evolução temporal de eventos histórico-geográficos, através, sobretudo, da construção de argumentos visuais e tipologias textuais, recorrendo a mapas e diagramas representativos dos processos espaciais. Como as fontes históricas estão disponíveis em diversos formatos (e.g., analógico e tabular), é possível transformar os mesmos em dados geoespaciais. Por exemplo, dados históricos provenientes de registos estatísticos regionais (e.g., censos) e representações visuais do território como documentos analógicos antigos (e.g., mapas Perry 1882-84, Carta Agrícola e Florestal, 1965, cadastros) (fig. 6) apresentam também um grande potencial para serem utilizados na modelação das alterações do uso do solo (Viana, Encalada, et al., 2019; Yang et al., 2017; Sequeira et al., 2022; Nunes et al., 2023). Por exemplo, Brown et al. (2005) utilizaram registos históricos, para extrair informações sobre tipos de culturas agrícolas, rendimentos e práticas de gestão dos solos e georreferenciaram os locais mencionados nos registos criando conjuntos de dados espaciais que fornecem novas perspetivas sobre a distribuição e a intensidade das atividades agrícolas no passado.
Contudo, a utilização de fontes históricas para detetar, por exemplo, padrões e tendências espácio-temporais, bem como para modelar eventos futuros, apresentam alguns desafios relacionados com a sua transcrição e transformação em dados normalizados, detalhados e estruturados. Por exemplo, mapas históricos podem carecer de detalhes ou precisão espacial, especialmente para regiões remotas ou menos documentadas.
Torna-se, portanto, necessário encontrar abordagens que permitam normalizar as diferentes fontes de informação e reconstruir quantitativamente os dados dos diferentes períodos.
Neste seguimento, destaca-se o projeto AgroecoDecipher - Análise geográfica das tendências agroecológicas através de fontes históricas e inteligência artificial. Especificamente, este projeto com carácter exploratório procura encontrar soluções que permitam reunir e melhorar a qualidade e precisão de fontes agroecológicas históricas na forma e estrutura de dados atualmente em uso pelos modelos de simulação. O projeto utiliza como base estatística e espacial a informação disponível nos Inquéritos Agrícolas e Florestais do Plano de Fomento Agrário (fig. 7), publicados em diferentes anos da década de 1950.
Estes inquéritos possuem informação histórica (em formato textual, tabular e cartográfico) relacionada com as características edafoclimáticas, agroecológicas e fisiográficas (e.g., clima, solo, água, uso do solo, redes rodoviárias) de cada município de Portugal continental, reunindo informação sobre quase todos os aspectos da economia rural de Portugal e incluindo uma descrição detalhada dos usos agrícolas e florestais e a sua adequação. Extrair estas informações detalhadas pode contribuir para reconstruir as condições e tendências agroecológicas históricas e entender os possíveis comportamentos complexos e as dinâmicas entre diferentes variáveis que descrevem os sistemas agrícolas em Portugal. Ao reconstruir as tendências agroecológicas possibilita-se a análise da correlação entre os impactos das atividades humanas com as mudanças climáticas e ambientais, fundamental para melhor entender problemas relacionados com a segurança alimentar, estabilidade social, biodiversidade, clima e uso sustentável do solo.
IV. Notas finais
A relevância da agricultura e da alimentação nos debates atuais tem ganhado um novo destaque, levantando diversas questões que estimulam a investigação científica. Num ambiente científico globalizado, o desafio diário para um investigador é acompanhar e manter-se atualizado da produção académica dos pares. A heterogeneidade dos estudos relacionados com os sistemas agrícolas exige uma sistematização interdisciplinar e abrangente das diferentes direções da investigação, abordagens metodológicas, escalas de análise e dados de referência utilizados.
Este artigo apresenta uma reflexão dos avanços no desenvolvimento e integração de análises espaciais, dados geoespaciais e modelos no campo dos sistemas agrícolas, possibilitando avaliar os impactos que as técnicas de modelação e tecnologias geoespaciais podem ter na investigação que estão a realizar. A análise presente visou proceder a uma revisão das contribuições de diferentes estudos sobre sistemas agrícolas, apresentando uma síntese da diversidade disciplinar do conhecimento científico disponível e indicando o caminho para atuais e futuras investigações.
Num sentido mais lato, o avanço da tecnologia SIG, o desenvolvimento de ferramentas e técnicas mais eficientes e a recolha e disponibilidade de dados facilitam o desenvolvimento de novos conhecimentos mais formalizados sobre os sistemas agrícolas em múltiplas escalas espaciais e temporais e contextos geográficos. No entanto, em termos de implicações práticas, a aplicação de análises espaciais, dados geoespaciais e modelos de simulação na investigação dos sistemas agrícolas varia de acordo com os objetivos e o uso pretendido, estrutura dos modelos, disponibilidade de dados e ainda a existência de dados geoespaciais adequados e precisos. Resumidamente, destaca-se a importância das seguintes estratégias metodológicas: i) padronização e normalização de dados; ii) integração de múltiplas fontes de dados; iii) validação e avaliação dos dados e iv) aplicação de tecnologias avançadas.
Conclui-se que, com a integração de conceitos, métodos e ferramentas SIG, existe uma oportunidade prática para modelar os sistemas agrícolas em resposta a cenários de por exemplo alterações climáticas ou de reforma política, principalmente quando desenvolvidos de uma forma espacialmente explícita, integrada e em multi-escala. Por sua vez, esta realidade poderá ajudar a fornecer informações significativas para a formulação, planeamento, gestão e investimento de políticas de longo prazo, que são essenciais para enfrentar os desafios globais de produção e segurança alimentar, antecipar mudanças futuras e projetar estratégias robustas a longo prazo para gerir os desafios iminentes do presente século.