1. INTRODUÇÃO
A relação entre a música e a matemática tem sido considerada há milhares de anos (Sanders, 2012). Nos ensinamentos de Pitágoras (cerca de 500 a.C.) e dos seus seguidores, a música e a aritmética não eram disciplinas separadas, os números eram considerados a chave de todo o universo espiritual e físico. O sistema dos sons e ritmos musicais, sendo regido pelo número, exemplificava a harmonia do cosmos e correspondia a essa harmonia (Grout & Palisca, 2014). No tempo dos gregos antigos, a matemática e a música estavam fortemente conectadas. A música era considerada uma disciplina estritamente matemática, lidando com relações numéricas e proporções (Beer, 2005).
A música, no contexto do Quadrivium .curriculum da escola pitagórica), era colocada ao mesmo nível da aritmética, geometria e astronomia, constituindo as artes matemáticas. Essa interpretação negligenciou os aspetos criativos da performance musical. A música era a ciência do som e da harmonia (Beer, 2005).
Nos anos 90, um estudo de Rauscher et al. (1994) fez renascer o interesse pelos benefícios não-musicais decorrentes da exposição musical quando indicou que uma breve exposição (10 min.) a uma sonata de Mozart gerava um aumento a curto prazo das capacidades de raciocínio espacial. É nesta altura que surge o designado “Efeito Mozart”, que deu fundamento à construção de diversas crenças relativamente à relação existente entre o domínio da música e a cognição. Jones e Zigler (2002) mencionam um estudo de Rauscher et al. (1997) realizado com crianças em idade pré-escolar (entre os 3 e os 5 anos) que tiveram aulas particulares de piano de 10 minutos por dia durante 6 meses. Os investigadores verificaram que o grupo de piano apresentou melhores resultados numa tarefa de montagem de objetos que requeria competências espácio-temporais, do Weschler Preschool and Primary School Test of Intelligence (WPPSI), comparativamente às crianças que beneficiaram de aulas de informática, canto ou sem aulas. Perante os resultados obtidos, os investigadores descreveram estas mudanças na capacidade espácio-temporal como “de longo prazo”, uma vez que eram igualmente evidentes tanto nas crianças que foram testadas em menos de um dia após a última aula, como naquelas que foram testadas um dia após o término. No entanto, a definição excecionalmente limitada de “a longo prazo” aplicada a um contexto de 10 minutos e um ou dois dias tornou a conclusão puramente especulativa.
Jones e Zigler (2002) citam ainda outros investigadores que tentaram replicar o “Efeito Mozart”, para distinguir a superioridade induzida pela música em testes e subtestes cognitivos, sem sucesso (cf. Kenealy & Monseth, 1994; Newman et al., 1995; Steele et al., 1997, 1999; Stough et al., 1994; Wilson & Brown, 1997). Posteriormente, o “Efeito Mozart” foi muito criticado, já que foram várias as limitações apontadas ao método de estudo utilizado. Já O’Hanlon (1981) tinha salientado que os estados de humor poderiam influenciar o desempenho de tarefas quando o indivíduo, de alguma forma, era exposto a um estímulo monótono. Assim, este efeito poderia ter surgido a partir da existência de diferenças de humor ou excitação, e não da exposição a Mozart (Schellenberg, 2001).
Mais recentemente o estudo da música ganhou interesse adicional na educação, tendo em consideração estudos neurocientíficos que demonstram efeitos positivos no desenvolvimento do cérebro e, concomitantemente, no desempenho académico. Alguns autores, como Beer (2005), Kravanja (2008) e Wright (2009), referem que existem numerosas ligações entre a música e a matemática, tais como as relações numéricas, as proporções, os números inteiros, os logaritmos, as operações aritméticas, a trigonometria e a geometria, que se encontram relacionados com elementos musicais como a melodia, o ritmo, os intervalos, as escalas e a harmonia.
Até agora, diversos estudos têm sido conduzidos abordando os efeitos que o estudo da música pode exercer no desenvolvimento cognitivo e, concomitantemente, no desempenho académico. No entanto, os resultados desses estudos têm sido considerados inconclusivos ou contraditórios. Para além disso, nenhum dos estudos focou os efeitos musicais nas competências matemáticas (Catterall et al., 1999; Costa-Giomi, 1999; Fitzpatrick, 2006; Moreno et al., 2011; Morrison, 1994; Schellenberg, 2011; Schlaug et al., 2005; Schneider & Klotz, 2000; Southgate & Roscigno, 2009; Wetter et al., 2009). Porém, os trabalhos de Miendlarzewska e Trost (2014), Ramalho (2014), Luís (2013) e Moura (2012) apresentaram uma perspetiva diferente.
Por um lado, atribuíram à formação musical efeitos de transferência diretos e indiretos, preparando uma base para uma variedade de competências que promoviam o desenvolvimento cognitivo. Por exemplo, as crianças que aprendem música apresentam uma melhor memória verbal, capacidade de aprender uma segunda língua, capacidade de leitura e funções executivas. O entrainment do ritmo foi explicitamente proposto como o mecanismo que apoia o desenvolvimento de funções executivas para efeitos de treinamento da música e da dança (Miendlarzewska & Trost, 2014).
Quanto aos estudos conduzidos a nível nacional, Ramalho (2014) estudou os efeitos, ao nível das funções executivas e da reprodução de estruturas rítmicas de crianças, de uma metodologia de iniciação musical aplicada em crianças em idade pré-escolar, num período de 3 anos. Fizeram parte do primeiro grupo de intervenção 21 crianças e do segundo grupo 19, com um grupo de controlo de 31 crianças. Os resultados revelaram que a iniciação musical teve impacto significativo e positivo nas funções executivas e no desenvolvimento da capacidade rítmica. Para além disso, quanto maior for tempo de aprendizagem, maior é o desenvolvimento, quer das funções executivas, quer da capacidade rítmica. Concluiu-se que 1 ano após o término da intervenção, não existiu retrocesso nos benefícios obtidos a partir da aprendizagem inicial de música.
No estudo longitudinal conduzido por Luís (2013), foram estudados alunos desde o 7.º ao 9.º ano, quanto à influência da aprendizagem musical no próprio desenvolvimento musical, para além de observar o efeito de preditores no desempenho matemático (nível socioeconómico, inteligência e variáveis cognitivo-motivacionais). A amostra abrangeu 112 alunos do ensino especializado de música e do ensino regular. Os alunos foram avaliados a partir da avaliação sumativa na disciplina de matemática e dos resultados no exame nacional de matemática. Os resultados revelaram que os alunos que frequentavam o ensino formal de música apresentaram um desempenho matemático superior relativamente aos alunos sem este tipo de ensino, sustentando também a hipótese de que o número de anos de aprendizagem musical contribui para o aumento do desempenho matemático.
Já Moura (2012), analisou os contributos da participação em projetos artísticos e musicais (Clubes de Música) no desempenho académico de alunos que frequentavam o 2.º ciclo do Ensino Básico. A amostra era composta por 379 alunos e, destes, 77 participavam em Clubes de Música. Os resultados revelaram uma relação positiva entre a frequência de atividades extracurriculares (frequência do Clube de Música) e o desempenho académico no geral e individualmente em Língua Portuguesa, Matemática e Educação Musical. Foi observada, simultaneamente, uma relação também positiva entre a frequência do Clube de Música e o desenvolvimento de competências musicais.
Por sua vez, o estudo de Pereira (2012) menciona que a música enquanto atividade extracurricular não explica, só por si, outro tipo de benefício cognitivo não musical. Neste estudo foram analisadas as diferenças cognitivas entre o estudante profissional de música e o estudante de ensino regular, tendo em consideração os dois ambientes distintos em que estão inseridos. A amostra foi composta por 190 alunos, com idades compreendidas entre os 12 e os 22 anos. Destes, 119 frequentavam o ensino regular e 71 o ensino profissional. Os resultados revelaram uma relação positiva entre a música e as capacidades cognitivas melhoradas (abstrata, numérica, espacial e mecânica), à exceção do domínio verbal, em ambiente profissional. O tempo de experiência de ensino musical foi também associado a melhores capacidades cognitivas, sendo que à medida que os alunos vão evoluindo nos seus estudos musicais maior é a hipótese de melhorarem significativamente as suas capacidades cognitivas.
Assim, esta revisão visa reunir os estudos presentes nas bases de dados internacionais para identificar e refletir sobre a variação dos resultados publicados, nos últimos anos, no campo da formação musical e o efeito de transferência indireta no desempenho académico e cognitivo, bem como diferenças cerebrais estruturais e funcionais entre músicos e não-músicos.
2. MATERIAL E MÉTODOS
Conduzimos uma revisão sistemática bibliográfica com recurso às seguintes bases de dados online. PubMed, Complementary Index, Academic Search Complete, Education Source, Psychology and Behavioral Sciences Collection, Science Direct . PsycArticles. Utilizámos um descritor relacionado com a formação musical, para o qual utilizámos o termo musical training, combinado com descritores ligados ao desempenho académico, em geral e na matemática, com os termos academic achievement, mathematics . academic development, e ao desenvolvimento cognitivo, com os termos brain development e cognitive development. Foi estabelecido um período de 11 anos para a pesquisa, compreendendo trabalhos publicados entre 2007 e 2018, escritos em língua inglesa. A análise inicial implicou uma classificação dos artigos, com base numa seleção mais detalhada de acordo com critérios de inclusão e exclusão, por forma a identificar os estudos relevantes de acordo com o objeto de estudo proposto. Foram incluídos estudos (i) publicados em jornais científicos revistos por pares (peer-reviewed), (ii) realizados com crianças e adolescentes até aos 18 anos, (iii) que incluíram o treino musical nas suas componentes teórica e/ou instrumental. Foram excluídos os seguintes: (i) estudos que utilizaram currículos integrados (p.e., aulas de música e leitura na mesma intervenção); (ii) estudos em que não existiu um grupo de controlo; (iii) estudos com adultos; e (iv) estudos com crianças e adolescentes com dificuldade de aprendizagem específica ou condição clínica. Após este processo de seleção, foi feita uma leitura integral dos trabalhos escolhidos procedendo-se a uma análise detalhada.
2.1. SELEÇÃO DO ESTUDO
Com a pesquisa realizada nas sete bases de dados, utilizando os descritores anteriormente referidos, foram encontrados 1934 trabalhos. As referências duplicadas foram eliminadas e o número de artigos identificados reduziu para 1885 (Figura 1).
Posteriormente, foram analisados os títulos e/ou resumos desses artigos, tendo sido excluídos: (i) artigos que não avaliavam especificamente os efeitos do treino musical nas suas componentes teórica e/ou instrumental na matemática ou no desempenho académico em geral ou nas funções cognitivas ou na plasticidade cerebral; (ii) estudos com crianças e adolescentes com dificuldades de aprendizagem específica ou condição clínica; (iii) estudos com adultos; (iv) estudos em que foram utilizados currículos integrados; (v) estudos em que não existiu um grupo de controlo. A partir desta seleção inicial, foram selecionados 40 artigos para uma leitura completa. No final, foram selecionados 12 estudos que cumpriam na totalidade os critérios estabelecidos previamente.
3. RESULTADOS
Da análise aos 12 estudos selecionados, verificou-se que estes foram conduzidos em oito países e publicados em 11 jornais revistos por pares (Tabela 1). No total, os estudos abrangeram 2541 crianças e adolescentes, com idades entre os 5 e os 17 anos, as quais foram avaliadas relativamente (i) ao desenvolvimento do raciocínio matemático; e/ou (ii) no desempenho académico em geral; e/ou (iii) nas funções cognitivas (memória e atenção); e/ou (iv) na plasticidade cerebral. A maior parte dos autores diferenciou o género, permitindo observar que, no total da amostra, há uma maior percentagem de crianças e adolescentes do género masculino (51%) do que do género feminino.
Todos os estudos são empíricos, cinco longitudinais, um transversal, quatro prospetivos, um retrospetivo e um de ensaio.
Nos 12 estudos, os resultados obtidos em crianças com formação musical (teórica e/ou instrumental) foram comparados a resultados de crianças sem formação musical (grupos de controlo), emparelhados por várias variáveis. É de salientar a existência de mais artigos no ano de 2014 e o facto de haver um período de 2 anos, entre 2010 e 2012, em que não foram encontrados estudos que se enquadrassem na revisão em análise.
As principais características de cada um dos estudos incluídos nesta revisão são apresentados na Tabela 2.
A partir da revisão, verificou-se que quatro dos estudos mencionam uma influência positiva da formação musical (teórica e/ou instrumental) no desempenho académico em geral (Cabanac et al., 2013) ou em disciplinas tais como o Inglês (Yang et al., 2014) e a Matemática (Hallam & Rogers, 2016; Nutley et al., 2014). Contudo, os estudos de Yang et al. (2014) e Forgeard et al. (2008) não confirmam os resultados acima mencionados quanto às competências matemáticas. No estudo de Yang et al. (2014), as crianças que estudaram música superaram os não-músicos só no desempenho musical e no desenvolvimento da língua inglesa. Contudo, e embora o treino musical pareça estar correlacionado com o desenvolvimento académico final das crianças na língua materna (chinês), na língua inglesa e na matemática, isso não contribuiu de forma independente para o desenvolvimento da língua materna ou das competências matemáticas. Também Forgeard et al. (2008) indicaram que as crianças que aprenderam a tocar um instrumento, durante 3 ou mais anos, superaram os seus pares de controlo em áreas estritamente relacionadas com a música – competências motoras finas e discriminação entre melodias –, mas não ao nível das competências fonémicas, espaciais ou da matemática. O grupo de controlo superou também no desempenho verbal (vocabulário) e no raciocínio não-verbal, tendo sido o treino musical apontado como um preditor destas capacidades.
Por sua vez, Hallam e Rogers (2016) referem ainda que os progressos superiores e melhores resultados académicos têm maior impacto nas crianças que tocam um instrumento há mais tempo.
Observou-se igualmente, nos estudos revistos, uma associação do treino musical a benefícios cognitivos, i.e., melhor desempenho nos testes de raciocínio, memória de trabalho visuoespacial (Jaschke et al., 2018; Nutley et al., 2014) e verbal ao longo do tempo (Nutley et al., 2014), velocidade de processamento (Nutley et al., 2014; Roden et al., 2014; Zuk et al., 2014), capacidades musicais e rítmicas, atenção visual e auditiva (Roden et al., 2014), aumento significativo do Quociente de Inteligência (QI), especificamente, no raciocínio verbal e memória a curto prazo (Kaviani et al., 2014). No raciocínio numérico e visual/abstrato as competências não diferiram entre o grupo que recebeu aulas de música e o que não recebeu (Kaviani el al., 2014).
Não concordante com estes resultados, encontramos o estudo de D’Souza e Wiseheart (2018), em que não foram observados efeitos no desempenho cognitivo, em crianças com idades compreendidas entre os 6 e os 9 anos de idade, após um curto período de aprendizagem musical, em comparação com outros dois grupos (grupo de dança e grupo de controlo). Este estudo contribui para a tese de inconsistência de resultados, já que levanta a questão de se efetivamente o enriquecimento mental pode ocorrer na aprendizagem num curto prazo de tempo. Também não foram encontradas alterações nas competências cognitivas relacionadas com a aprendizagem musical (memória de trabalho, controlo de interferência, troca de tarefas, velocidade de processamento, vocabulário recetivo ou inteligência não verbal) após a intervenção experimental. Deste modo, a ausência de melhoria nas medidas cognitivas rejeita as propostas teóricas anteriores das competências cognitivas essenciais (funções executivas, velocidade de processamento), ou mecanismos de aprendizagem básicos (coordenação multimodal e entrainment do ritmo), como intermediários para um benefício cognitivo.
Também Zuk et al. (2014) focaram a relação entre o treino musical e uma maior ativação cerebral em regiões das Funções Executivas (FE) durante o paradigma de alternância de tarefas, descobrindo que crianças com uma média de 5.2 anos de treino musical revelaram um desempenho aprimorado em vários constructos das FE, em comparação com não-músicos, especialmente nas medidas de flexibilidade cognitiva, nos subtestes de fluência verbal e de Trail Making (através de tarefas de sequenciação visual-motoras), do Teste Delis-Kaplan Executive Function System (DKEFS) e velocidade de processamento, não existindo nenhuma diferença significativa na memória de trabalho entre os dois grupos em estudo. Para além disso, detetaram, através da investigação dos correlatos neuronais de alternância da atenção entre tarefas (switching), que houve uma maior ativação na Área Motora Suplementar (AMS) e no Córtex Ventrolateral Prefrontal (CVLPF) em crianças treinadas musicalmente em comparação com crianças sem treino, através de comparação direta do cérebro e análise de ROI (regions of interest). Estes resultados apoiam a hipótese de que o funcionamento executivo pode ser um dos mecanismos que medeiam o vínculo relatado entre o treino musical e as competências académicas, uma vez que as competências das FE e académicas surgem frequentemente correlacionadas. Neste mesmo estudo, os investigadores notaram ainda uma associação entre vários constructos das FE em crianças com diferentes intensidades de treino musical. No entanto, não foram observadas diferenças ao nível da inibição.
Jaschke et al. (2018) analisaram os efeitos das aulas de música estruturada nas subfunções executivas subjacentes ao desempenho académico em crianças do 1.º ciclo escolar. Os resultados mostraram que as crianças que participavam em aulas de música que seguiam uma estruturação e objetivo delineado tiveram um melhor desempenho em tarefas cognitivas, tais como o QI verbal, planeamento e inibição, quando comparadas aos controlos. Nas subfunções executivas primordiais para a perceção, processamento e execução da música também foram encontrados aumentos significativos na inibição e no planeamento, bem como no QI verbal.
Nos estudos que investigaram mudanças estruturais cerebrais entre músicos e não-músicos foram observadas diferenças no volume de massa cinzenta no lobo temporal, situado principalmente nos giros fusiformes temporais e occipitais inferiores e na ínsula, caudado e putâmen, áreas relacionadas com a descodificação de notação musical (Nutley et al., 2014), e mudanças nas áreas cerebrais motoras e auditivas e várias áreas frontais, no peri-cingulado posterior esquerdo e na região occipital média esquerda em crianças, após 15 meses de treino musical (Hyde et al., 2009). No entanto, nenhuma destas mudanças foi correlacionada com melhorias no desempenho motor e capacidades auditivas (Hyde et al., 2009). Para além disso, no estudo de Hyde et al. (2009), apenas foi considerado o efeito da música no desenvolvimento do cérebro, sem ter em consideração o desempenho académico.
4. DISCUSSÃO
A presente revisão sistemática da literatura identificou 12 estudos empíricos publicados nos últimos 11 anos e que contribuem na reflexão sobre a influência da formação musical no desenvolvimento do raciocínio matemático; nas funções cognitivas (memória e atenção); e na plasticidade cerebral. Apesar de existirem estudos com foco no impacto da formação musical nas competências académicas e cognitivas em crianças e adolescentes, nenhum sintetizou diretamente os seus efeitos estritamente nas competências matemáticas.
O desempenho académico em crianças e/ou adolescentes em idade escolar, durante ou após exposição a um treino musical teórico e/ou instrumental, foi avaliado em cinco estudos (Cabanac et al., 2013; Forgeard et al., 2008; Hallam & Rogers, 2016; Nutley et al., 2014; Yang et al., 2014). Contudo, se por um lado não há dados suficientes a suportar que a formação musical melhora as competências académicas, no geral, e as competências matemáticas, em específico (Forgeard et al., 2008; Yang et al., 2014), por outro não há também evidências a apoiar que o treino musical (teórico e/ou prático) não tem efeito nestas proficiências (Cabanac et al., 2013; Hallam & Rogers, 2016; Nutley et al., 2014). A variabilidade de resultados pode ser atribuída aos diferentes modelos de estudo e diferentes instrumentos de avaliação utilizados. Para além disso, na matemática, cada estudo analisa um domínio diferente, podendo essa ser outra razão para não se encontrar consenso nos vários resultados (Cabanac et al., 2013; Forgeard et al., 2008; Hallam & Rogers, 2016; Nutley et al., 2014). Um outro ponto de discussão será o período de intervenção, na medida em que pode ser um forte indicador de efeito ou da sua falta, uma vez que alguns dos estudos envolveram apenas intervenções educacionais com duração inferior a 1 ano (Forgeard et al., 2008; Kaviani et al., 2014).
No que diz respeito às funções cognitivas, os resultados obtidos nos estudos de Guo et al. (2018) e D’Souza e Wiseheart (2018) não são unânimes a identificar os benefícios cognitivos do treino musical, nomeadamente no que se refere à velocidade de processamento e à capacidade verbal. No estudo de Guo et al. (2018), os autores, após medirem as funções cognitivas antes e depois da aplicação de um programa de treino musical durante 6 semanas, apenas conseguiram observar uma melhoria na memória de trabalho de crianças entre os 6 e os 8 anos. D’Souza e Wiseheart (2018), para além de não observarem alterações nas competências cognitivas relacionadas com a aprendizagem musical, também não encontraram benefícios na memória de trabalho, ao contrário do que se verificou no estudo de Guo et al. (2018), na troca de tarefas, no controlo de interferência e na inteligência não-verbal. Ao nível do raciocínio, memória de trabalho visuoespacial e verbal, ao longo do tempo, e capacidades musicais e rítmicas, flexibilidade (ex.: fluência verbal), raciocínio verbal e memória a curto prazo, os estudos são coincidentes quanto à influência positiva que a formação musical exerce sobre estas funções (Jaschke et al., 2018; Kaviani et al., 2014; Nutley et al., 2014; Roden et al., 2014; Zuk et al., 2014). No que diz respeito à influência positiva da educação musical, a longo prazo, em competências cognitivas como a inibição, os resultados de Jaschke et al. (2018) contradizem os de Guo et al. (2018) e Zuk et al. (2014), tendo em consideração que em ambos os estudos não foram observados efeitos significativos.
Relativamente à atenção, Roden et al. (2014) mostram uma relação entre o treino musical e as capacidades de atenção auditiva. No entanto, estes resultados não são diretamente comparáveis com estudos que focam a relação entre o treino musical e a atenção visual.
Em dois estudos, Nutley et al. (2014) e Hyde et al. (2009), que avaliaram mudanças estruturais cerebrais entre crianças músicas e não-músicas, foram encontradas novas evidências para plasticidade cerebral estrutural induzida pelo treino musical na primeira infância. De acordo com Hyde et al. (2009), estas descobertas revelam que o treino musical pode em apenas 15 meses, na primeira infância, levar a mudanças cerebrais estruturais que divergem do desenvolvimento típico do cérebro, podendo a plasticidade ocorrer em regiões do cérebro que controlam funções primárias importantes para tocar um instrumento musical, e também em regiões do cérebro que podem ser responsáveis pelo tipo de integração sensoriomotora multimodal que provavelmente está subjacente à aprendizagem instrumental. Para além disso, o facto de não terem sido encontradas diferenças cerebrais estruturais entre os dois grupos em estudo, antes do início do treino musical, revelou que o desenvolvimento diferencial dessas regiões cerebrais é mais induzido pela prática instrumental do que pelos preditores biológicos preexistentes de musicalidade.
Na mesma sequência, Nutley et al. (2014) realçaram igualmente uma diferença na densidade de massa cinzenta no cérebro, em áreas relacionadas à descodificação de notação musical.
5. CONCLUSÃO
Apesar de já existirem estudos a analisar os efeitos da formação musical (teórica e/ou instrumental), a nível académico, cognitivo, estrutural e funcional do cérebro, poucos são os que demonstram a existência clara de uma relação entre a educação musical e as competências académicas, especialmente na matemática. No que se refere aos benefícios da primeira sobre a segunda, ainda não se verifica consenso na literatura.
Com esta revisão sistemática é possível identificar a necessidade de utilização de métodos de investigação homogéneos, com recurso a testes padronizados, para a obtenção de resultados robustos que permitam ser incorporados de forma confiável neste domínio científico. O período de intervenção também deve ser tido em consideração, visto que poderá ser um forte indicador de um efeito positivo ou negativo. A intervenção deverá ter a duração de pelo menos 1 ano, de forma a mostrar resultados claros, sendo que estudos aleatórios controlados que se estendam por um período de tempo mais alargado, com diversas medições a partir da linha de base, tenderão a desenvolver um método de pesquisa mais fiável.
A par do aumento de estudos com foco no impacto da formação musical nas competências académicas e cognitivas, em crianças e adolescentes, será essencial a condução de mais investigações que isolem especificamente a componente matemática, de forma a poder medir os efeitos da formação musical diretamente nestas competências.