1. INTRODUÇÃO
1.1. O CUIDADO INFORMAL
As tendências europeias demográficas, económicas e sociais, nomeadamente, o envelhecimento populacional, o aumento da esperança média de vida, o crescimento global das doenças crónicas, a entrada das mulheres no mercado de trabalho e as estruturas familiares mais reduzidas e menos capazes de responder às necessidades do trabalho familiar não remunerado (Bruhn & Rebach, 2014; Colombo et al., 2011; Soeiro et al., 2020; Comissão Europeia et al., 2018), trazem novas exigências aos serviços de cuidado de longo-prazo. A combinação destes fatores, que rompem com o modelo de reprodução enraizado nas sociedades europeias, aponta para uma “crise dos cuidados” (Soeiro et al., 2020, p.12). Em resposta, os discursos e políticas europeias reconfiguram-se e centram-se na responsabilidade cívica quanto ao autocuidado e ajuda aos/às outros/as, de forma a compensar os cortes nos cuidados domiciliares residenciais e hospitalares (Broese van Groenou & De Boer, 2016; Pavolini & Ranci, 2008).
Em Portugal, estima-se que mais de um milhão de pessoas prestam cuidados informais a outras com problemas de saúde ou velhice (Movimento dos Cuidadores Informais, 2021). Dados nacionais mostram que mais de 85% dos/as cuidadores/as cuidam de familiares (Instituto Nacional de Estatística, 2019), cerca de dois terços prestam assistência dez ou mais horas semanais e 61% são mulheres. O relatório divulgado pela Entidade Reguladora de Saúde, em 2015, concluiu que Portugal apresentava, simultaneamente, a taxa mais elevada de cuidados informais domiciliários da Europa e uma das taxas mais baixas de cobertura de cuidados formais (Entidade Reguladora da Saúde, 2015). Em 2016, estimou-se que o valor do trabalho realizado por cuidadores/as informais, tendo por referência o salário mínimo mensal, atingiu quase 4 mil milhões de euros anuais (Soeiro et al., 2020).
Apesar da dimensão significativa dos cuidados informais no país, foi apenas em 2019 que os/as cuidadores/as, que viviam até então numa espécie de “clandestinidade legal” (Soeiro et al., 2020, p. 50), viram iniciar-se o seu processo de reconhecimento legal. Neste ano foi aprovado o Estatuto do Cuidador Informal (Lei n.º 100/2019, de 6 de setembro), que regula os direitos e os deveres do/a cuidador/a e da pessoa cuidada, estabelecendo as respetivas medidas de apoio.
Internacionalmente eram já diversos os debates acerca da necessidade de priorizar o cuidado informal nas políticas e práticas nacionais, nomeadamente através da divulgação do relatório Caring and Post Caring in Europe, publicado em 2010 (Life After Care, 2010). Em Portugal, esta discussão assumiu contornos mais relevantes em 2015, através do movimento social dos/as cuidadores/as informais (Soeiro & Araújo, 2020), perante a escassez de políticas públicas na área do cuidado informal.
Apesar da existência de algumas respostas socias em Portugal, nomeadamente através da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados e das Instituições Particulares de Solidariedade Social, as políticas e práticas portuguesas colocavam frequentemente os/as cuidadores/as informais num modelo de organização social e económica que não respondia às suas necessidades, ao mesmo tempo que promovia desigualdades (Soeiro et al., 2020).
O Estatuto do Cuidador Informal assume-se como uma tentativa de responder a estas lacunas, no entanto, são várias as fragilidades apontadas. Salienta-se, por um lado, a exclusão de cuidadores/as sem laço familiar com a pessoa cuidada e, por outro lado, o facto de, no primeiro ano de operacionalização das medidas de apoio, estas terem sido restritas a projetos-piloto experimentais, distribuídos por 30 concelhos. A par destas discussões, surgiram tensões entre perspetivas que tendem a manter os cuidados na esfera familiar, enquanto outras apontam a necessidade da democratização e socialização dos cuidados, defendendo a partilha de responsabilidades entre as famílias e a sociedade (Soeiro et al., 2020).
O crescente questionamento público e académico das medidas de apoio aos/às cuidadores/as debruça-se sobre questões económicas e sociais (Soeiro et al., 2020), raramente problematizando dimensões da aprendizagem no campo do cuidado informal, embora seja evidente a necessidade responder aos desafios e mudanças trazidas pela responsabilidade de assumir um novo papel, inesperado e exigente.
1.2. CUIDADO INFORMAL, EDUCAÇÃO INFORMAL E FORMAÇÃO EXPERENCIAL
As mudanças causadas pelo cuidado informal, nomeadamente as alterações nas rotinas dos/as cuidadores/as requerem respostas de curto, médio e longo prazo que permitem a adaptação às novas exigências individuais, de pares e sociais (Kalavina et al., 2019; Pierce et al., 2006). Estas respostas, que são entendidas neste trabalho como experiências com potencial de aprendizagem, podem ser compreendidas à luz da educação de adultos. Parte-se, por isso, de um quadro teórico que entende esta área do conhecimento no seu sentido mais amplo, que vai para além das modalidades da educação formal e não formal e reconhece que os processos educativos estão presentes ao longo da vida e se estendem a contextos tipicamente não educativos - educação informal (Pain, 1996).
A aprendizagem por meio das experiências, especialmente no contexto da educação permanente, tem sido debatida e a sua importância destacada, especialmente em sociedades em que os discursos se focam na necessidade de se aprender ao longo da vida (Landry, 1989). A valorização das experiências e da educação informal traz consigo conceitos como a formação experiencial e a aprendizagem experiencial que, embora sejam frequentemente usadas como sinónimos, filosófica e epistemologicamente são distintas. Embora conscientes das suas diferenças e situando este trabalho na conceção do termo formação experiencial (Courtois, 1995), os termos aprendizagem e aprendizagem experiencial surgirão ao longo do manuscrito nos seus sentidos mais amplos.
Entendendo a formação experiencial como uma atividade que coloca o sujeito em interação consigo próprio, com os/as outros/as e com o ambiente que o rodeia, gerando aprendizagem (Josso, 1991), compreende-se que respostas dos/as cuidadores/as às novas exigências podem construir-se como aprendizagens. A experiência, a tentativa-erro e o ensaio parecem ser a base das respostas dos/as cuidadores/as às novas exigências, ocorrendo estas de forma desordenada e apresentando a capacidade de se renovarem continuamente, uma vez que a vida individual e social é imprevisível e está em contínua mudança (Pain, 1996). Estes processos de descoberta, improvisação e aquisição de novos conhecimentos, em que existe “tensão e rutura com os quadros de referência” (Cavaco, 2001, p. 53), poderão desencadear diferentes aprendizagens individuais e coletivas que devem ser reconhecidas, consideradas e apoiadas por profissionais e serviços. Para além disso, a aquisição de conhecimentos psicomotores, cognitivos, afetivos e sociais (Cavaco, 2003) resultam do contexto em que os indivíduos vivem, englobando todos os fatores e espaços de socialização, nomeadamente a família, bem como relações sociais, económicas, culturais e políticas que produzem efeitos formativos. Nesse sentido, os sistemas sociais e educativos devem contribuir para o acesso equitativo a apoio social e informação, de forma a sustentar e potenciar a formação experiencial de cuidadores/as, contribuindo para o desenvolvimento das suas competências e autonomia (Baker et al., 2009; Bernstein, 1996). Neste sentido, é essencial problematizar direções de investigação, práticas e políticas que criem condições e recursos formativos que facilitem o cuidado e diminuam a sobrecarga dos cuidadores/as.
2. NOTA METODOLÓGICA
Através de um enquadramento interpretativo e reflexivo, apresentar-se-á uma análise das dimensões educativas/formativas do Estatuto do Cuidador Informal (ponto 3), assim como das perceções de cuidadores/as informais acerca deste documento legal e dos seus processos de aprendizagem (ponto 4). A segunda análise parte das experiências e perceções da primeira autora enquanto inquiridora e entrevistadora de cuidadores/as informais, através da mobilização das notas dos diários de bordo, realizados ao longo das entrevistas com cuidadores/as informais. De forma a ilustrar e sustentar os argumentos apresentados serão mobilizados excertos ilustrativos das entrevistas realizadas.
As entrevistas a cuidadores/as informais foram realizadas no âmbito do projeto “CARESS - Saúde psicossocial de cuidadores de sobreviventes de AVC: Experiências, necessidades e qualidade de vida”. Neste projeto foram realizados questionários a 387 cuidadoras e 56 cuidadores informais de sobreviventes de Acidente Vascular Cerebral (AVC). Cerca de 18 meses após a ocorrência do AVC, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 25 cuidadoras e 13 cuidadores informais destes sobreviventes (Tabela 1).
Identificação | Sexo | Idade | Relação com o/a sobrevivente | Horas de cuidado por dia* |
---|---|---|---|---|
E01 | Feminino | 52 | Filha | 1 |
E02 | Feminino | 61 | Cônjuge | 3 |
E03 | Feminino | 56 | Cônjuge | 3 |
E04 | Feminino | 65 | Cônjuge | 3 |
E05 | Feminino | 72 | Cônjuge | 3 |
E06 | Feminino | 24 | Filha | 1 |
E07 | Feminino | 43 | Filha | 1 |
E08 | Feminino | 55 | Cônjuge | 3 |
E09 | Feminino | 27 | Filha | 3 |
E10 | Feminino | 47 | Filha | 1 |
E11 | Feminino | 56 | Irmã | 1 |
E12 | Feminino | 64 | Cônjuge | 3 |
E13 | Feminino | 27 | Cônjuge | 2 |
E14 | Feminino | 61 | Cônjuge | 3 |
E15 | Feminino | 69 | Cônjuge | 3 |
E16 | Masculino | 67 | Genro | 3 |
E17 | Feminino | 52 | Filha | 3 |
E18 | Feminino | 47 | Nora | 3 |
E19 | Masculino | 80 | Cônjuge | 3 |
E20 | Masculino | 72 | Cônjuge | 3 |
E21 | Masculino | 75 | Cônjuge | 3 |
E22 | Masculino | 57 | Cônjuge | 3 |
E23 | Masculino | 77 | Cônjuge | 3 |
E24 | Masculino | 80 | Cônjuge | 3 |
E25 | Masculino | 68 | Filho | 1 |
E26 | Masculino | 31 | Neto | 3 |
E27 | Feminino | 61 | Filha | 3 |
E28 | Masculino | 65 | Cônjuge | 3 |
E29 | Feminino | 52 | Nora | 3 |
E30 | Masculino | 71 | Cônjuge | 3 |
E31 | Masculino | 43 | Filho | 1 |
E32 | Masculino | 67 | Cônjuge | 3 |
E33 | Feminino | 49 | Filha | 1 |
E34 | Feminino | 39 | Filha | 3 |
E35 | Feminino | 64 | Cônjuge | 3 |
E36 | Feminino | 56 | Filha | 2 |
E37 | Feminino | 54 | Filha | 2 |
E38 | Feminino | 48 | Filha | 1 |
Legenda: *1: três a oito horas; 2: mais de oito horas; 3: 24 horas.
As entrevistas foram realizadas no domicílio dos/as participantes ou telefonicamente, segundo a disponibilidade dos/as mesmas, com uma duração média de 48 minutos. O guião da entrevista foi desenvolvido com base numa extensa revisão da literatura e numa análise preliminar dos resultados dos questionários. O presente trabalho incluiu todas as entrevistas realizadas (n=38) considerando-se as seguintes dimensões do guião: 1) processos de aprendizagem após o AVC; 2) conhecimento acerca dos direitos dos/as cuidadores/as e do Estatuto do Cuidador Informal; 3) desafios e necessidades, assim como estratégias para ultrapassá-las; e 4) perceções sobre suporte social e assistência. Os excertos mais ilustrativos foram mobilizados neste trabalho. Em todas as entrevistas foram registadas notas em diários de bordo que incluíam dados descritivos, assim como perceções acerca das opiniões, expectativas e necessidades dos/as participantes. Para este trabalho, todas as notas da primeira autora relativas ao Estatuto do Cuidador Informal e/ou acerca dos processos e/ou recursos educativos foram mobilizadas (ponto 4).
Este trabalho foi enquadrado nos princípios éticos do Instrumento de Regulação Ético-Deontológica: Carta Ética da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (2021) e nos princípios de “ética da hospitalidade” assentes em valores como o acolhimento, a proximidade, a responsabilidade e a bondade (Baptista, 2012, p. 39). Foi assegurada a integridade, confidencialidade, privacidade e o respeito pelos direitos dos/as participantes e, após ser fornecida informação clara, transparente e detalhada do estudo, foi obtido o seu consentimento informado. Para além disso, garantiu-se a confidencialidade e anonimato de todos os materiais, assim como a minimização das possíveis consequências negativas da participação no estudo (British Educational Research Association, 2018; Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, 2021).
3. O ESTATUTO DO CUIDADOR INFORMAL: O LUGAR DA EDUCAÇÃO
O cuidado informal português é orientado pelo Estatuto do Cuidador Informal, aprovado em setembro de 2019, com o intuito de regular os direitos e os deveres do cuidador e da pessoa cuidada, estabelecendo medidas de apoio que promovem a “manutenção das pessoas cuidadas no domicílio” (Lei n.º 100/2019, de 6 de setembro, p. 10). Os termos e condições de implementação dos projeto-piloto preconizados neste estatuto foram regulados em 2020 (Portaria n.º 64/2020, de 10 de março) e, em 2022, foram estabelecidos os termos e as condições do reconhecimento do estatuto de cuidador informal, bem como as medidas de apoio aos/às cuidadores/as informais e às pessoas cuidadas (Presidência do Conselho de Ministros, 2022).
Do ponto de vista educativo/formativo, o Estatuto do Cuidador Informal (Lei n.º 100/2019, de 6 de setembro) centra-se em três eixos principais: informação, formação e trabalho. Ao longo do documento são apresentados direitos, deveres e medidas de apoio formativas que têm como objetivo comum a manutenção da pessoa cuidada, reforçando a importância do desenvolvimento de “capacidades e competências” que assegurem “boas práticas” de cuidado no domicílio. É atribuído aos/às cuidadores/as o dever de “participar nas ações de capacitação e formação” de forma a “desenvolver[em] a capacidade funcional máxima e autonomia” das pessoas cuidadas (Lei n.º 100/2019, de 6 de setembro, p. 10-11). Os serviços de saúde, em colaboração (esporádica) com os serviços da segurança social, são os principais responsáveis pela formação e informação dos/as cuidadores/as, incluindo a definição dos conteúdos e formas de organização. Profissionais das áreas da justiça, educação, emprego e formação profissional e forças de segurança são entendidos como “complementares” e deverão ser acionados “sempre que se justifique” (Lei n.º 100/2019, de 6 de setembro, p. 12).
Para além do aconselhamento, informação, e formação por parte de profissionais, estão previstos no Estatuto: “Grupos de autoajuda (...), dinamizados por profissionais de saúde numa ótica de entreajuda e partilha de experiências, constituídos por pessoas que vivem ou vivenciaram situações e ou dificuldades similares, minimizando o seu eventual isolamento”. (Presidência do Conselho de Ministros, 2022, p. 26). Estes grupos de autoajuda deverão promover “a) a informação, apoio e encorajamento; b) a autoestima, confiança e estabilidade emocional; c) a intercomunicação e relações de suporte positivas; e d) a minimização do isolamento” (Presidência do Conselho de Ministros, 2022, p. 26).
De forma geral, o Estatuto do Cuidador Informal prevê a prestação de informação e formação de cuidadores/as, com foco nas necessidades das pessoas cuidadas. Tendo por base a responsabilização dos/as cuidadores/as para o desenvolvimento de capacidades e competências de cuidado, as medidas propostas parecem assentar em estratégias de aprendizagem vertical (e.g., através de formações esporádicas) (Tardif, 2002) e de cariz biomédico, realizadas por profissionais de saúde. No entanto, verificam-se intenções de minimizar o cariz instrumentista, diretivo e unidirecional das medidas ao, por exemplo, proclamarem “a participação ativa [dos/as cuidadores/as] na elaboração do plano de intervenção específico” de capacitação e formação (Lei n.º 100/2019, de 6 de setembro p. 11).
As fragilidades das lógicas de aprendizagem verticalizadas (Tardif, 2002), assentes em educação bancária e que acontecem de forma pontual (e.g., palestras e atividades meramente informativas) foram já estudadas (Freire, 1968; Masson et al., 2020; Prigol & Behrens, 2020) e, por isso, medidas de apoio a cuidadores/as informais beneficiariam de modelos de Educação para a Saúde de empoderamento (Zimmerman, 1995). Mais do que informar e formar para “boas práticas” de cuidado (Lei n.º 100/2019, de 6 de setembro, p. 10), espera-se que os/as cuidadores/as possam ser suportados ao longo da trajetória do cuidado por equipas interdisciplinares, através de uma interação dialógica e participativa, contribuindo para o desenvolvimento individual e coletivo destes indivíduos. Ao mesmo tempo, a centralização das medidas de (in)formação nos serviços de saúde, especialmente em períodos de crise (e.g., pandemia por COVID-19), pode levar ao assoberbamento do setor e, em consequência, à diminuição de respostas suficientes e adequadas. Adicionalmente, a manutenção da qualidade de vida dos/as cuidadores/as deverá extrapolar o cumprimento das necessidades das pessoas cuidadas. Assim, estratégias de Educação para a Saúde direcionadas e adequadas às necessidades dos mesmos/as, tais como, promoção da saúde mental e higiene de sono, poderão ser essenciais para garantir o bem-estar dos/as cuidadores/as informais e das pessoas cuidadas (Byun et al., 2016; Wiegelmann et al., 2021). Em consequência, poderão igualmente diminuir custos substanciais nos sistemas de saúde e sociais, nomeadamente, através da diminuição de internamentos, de medicação e baixas médicas (Ekman et al., 2021).
Neste contexto, o cuidado informal beneficiará de discursos e medidas que potenciem a cidadania, a participação e a visibilidade de cuidadores/as, baseadas na escuta ativa, empoderamento e reconhecimento das necessidades e direitos dos/as cuidadores/as (Pais et al., 2012). O investimento em metodologias participativas, não extractivistas (Fasanello et al., 2018), que reconheçam o valor da educação permanente (Pain, 1996) e que evitem a escolarização da formação experiencial, pode igualmente representar uma mais-valia para os/as cuidadores/as informais. Em concreto, a formação por pares, assim como as redes de serviços de proximidade com equipas interdisciplinares que garantam um acompanhamento a curto, médio e longo prazo e adequado às diferentes realidades, poderão ser estratégias formativas que potenciem o bem-estar e qualidade de vida dos/as cuidadores/as.
4. CUIDADO INFORMAL PORTUGUÊS: PERCEÇÕES DE CUIDADORES/AS INFORMAIS DE SOBREVIVENTES DE ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL
Num contexto em que se iniciam os primeiros projetos-piloto experimentais com cuidadores/as informais e em que o debate público acerca deste tema se adensa, conhecer de que forma as atuais propostas políticas e práticas no campo do cuidado informal são entendidas e ressignificadas pelos/as cuidadores/as constitui uma ferramenta útil. Por um lado, potenciará a compreensão do alcance e impacto destas propostas; por outro lado, contribuirá, também, para (re)pensar a operacionalização das medidas e dos serviços educativos e sociais de apoio ao/à cuidador/a.
4.1. O ESTATUTO DO CUIDADOR INFORMAL: OS HIATOS ENTRE O TEXTO E A PRÁTICA
Os efeitos nefastos do cuidado informal na saúde física e mental dos/as cuidadores/as têm sido frequentemente estudados (Barbosa et al., 2020; Brown & Cohen, 2020; Kaschowitz & Brandt, 2017; Lindt et al., 2020) e reconhecidos pelas políticas nacionais e europeias, através de medidas que tentam aliviar a sobrecarga do cuidado. O Estatuto do Cuidador Informal assume-se, especialmente nos discursos políticos, como um contributo nesse sentido ao declarar como direito o “bem-estar e equilíbrio” do/a cuidador/a informal (Lei n.º 100/2019, de 6 de setembro, p. 10 ). No entanto, ao contrário do que acontece com os direitos das pessoas cuidadas, são omissos direitos e/ou medidas que garantam o bem-estar global, nomeadamente ao nível físico e social, existindo apenas menções ao “apoio psicológico” e ao benefício de períodos de descanso para o “bem-estar e equilíbrio emocional” (Lei n.º 100/2019, de 6 de setembro, p. 10).
Também os/as cuidadores/as entrevistados reforçaram a sobrecarga física e emocional associada ao cuidado informal:
“Cansativo, porque exigia muito de uma pessoa só, não é fácil (...) deu-me cabo das costas (...) tenho bicos de papagaio, tenho artroses. (...) e mental. (...) Psicologicamente, digamos assim, porque requeria muito, muita preocupação, muita responsabilidade, porque ficou tudo a meu cargo, desde pagar a renda, a preocupar-se com a data disto, com a data daquilo, com a data de aqueloutro, tudo em datas e depois, tudo à volta.” (E03, cuidadora, cônjuge).
No entanto, foram parcos os momentos em que os/as participantes conseguiram identificar e/ou refletir acerca de eventuais necessidades e direitos, associando-os a questões políticas sobre as quais demonstraram não ter conhecimento e a elas não se querer associar:
“Isso eu não tenho grande conhecimento [sobre direitos de cuidadores/as]. Não, eu isso não, não tenho grande conhecimento, não consigo opinar.” (E06, cuidadora, filha).
“Ai, eu não percebo nada de política, nem quero perceber.” (E28, cuidador, cônjuge).
A força das estruturas sociais, do habitus, do sistema patriarcal e da reprodução social (Bourdieu, 1996; Soeiro et al., 2020) presentes nos discursos, especialmente de cuidadoras, salientaram a perceção do cuidado informal como um dever moral:
“Era o meu marido. O que é que havia de fazer? Que remédio, não é? (...) Tinha por obrigação de, era o pai dos meus filhos.” (E05, cuidadora, cônjuge).
Ao mesmo tempo, os/as cuidadores/as tendem a normalizar as práticas de cuidado, salientando que estas são recompensadas pelo afeto e emoções (Soeiro et al., 2020):
“Mas é gratificante, porque ainda a tenho comigo e isso é o mais importante (…) o estar mais próximo dela, o poder cuidar dela. (...) Apesar de ter esse trabalho, tenho essa sorte de poder estar com a minha mãe.” (E07, cuidadora, filha).
Em consequência, afastam do Estado a responsabilidade por garantir os cuidados diários dos/as familiares, centralizando-os na esfera privada, de forma a evitar a institucionalização das pessoas cuidadas:
“Enquanto eu tiver vida e saúde o Filipe vai ficar aqui [em casa].” (E08, cuidadora, cônjuge).
Nesse sentido, são raros os discursos que situam o cuidado informal num paradigma de direitos (Barnes, 2007; Oliver, 2004), o que se traduz no desconhecimento quase unânime acerca do único documento legal regulador do cuidado informal em Portugal (Lei n.º 100/2019, de 6 de setembro).
Portugal, à semelhança de outros países do Sul da Europa, é caracterizado pela criação tardia do Estado-Social, pela doutrina social do catolicismo e pelo modelo de reprodução social familialista (Soeiro & Araújo, 2020). Assim, as normas da reciprocidade, justiça social e da solidariedade (Arts & John, 2001), assim como as expetativas relacionas com os papéis de género, que consideram as mulheres como as principais cuidadoras (Miller, 1990), (re)forçam e naturalizam a chamada das famílias para preencher a lacuna deixada pela fraca provisão de serviços públicos disponíveis e/ou acessíveis. Nesse sentido, dar visibilidade a uma força de trabalho explorada implica questionar a “governação familialista”, assim como os determinantes da dominação, isolamento e construção de disposições conformistas (Soeiro & Araújo, 2020, p. 64). Para isso, discursos políticos vibrantes acerca da responsabilidade civil e dos valores cívicos em torno do autocuidado e da ajuda aos/às outros devem ser cautelosos para não se tornarem forças motrizes para a invisibilidade dos/as cuidadores/as e para a manutenção da precariedade do trabalho não remunerado (Broese van Groenou & De Boer, 2016; Pavolini & Ranci, 2008; Soeiro et al., 2020). Simultaneamente, futuros estudos e serviços deverão fazer parte destes processos ao contribuir para o pensamento crítico e escolhas políticas mais informadas e conscientes no campo do cuidado (McDermont, 2012; Soeiro & Araújo, 2020).
Os/as cuidadores/as que referem conhecer o Estatuto do Cuidador, destacam os meios de comunicação, nomeadamente a televisão, como os principais veículos de informação e esclarecimento sobre o mesmo:
“Vendo pela tv...[o] primeiro contacto que eu tive foi quando eu procurei nas redes sociais e eu ouvi a história (...) e depois começou a aparecer na televisão e pronto, [foi] aí que eu tive acesso, mas foi só aí.” (E08, cuidadora, cônjuge).
“Eu ouço falar às vezes na televisão para reivindicar os direitos, mas pelo que eu me apercebi ainda tem poucos direitos ou ainda nem é reconhecido, nem sei.” (E01, cuidadora, filha).
Nas últimas décadas, os meios de comunicação têm sido apontados como centrais na informação e na influência das atitudes, decisões e comportamentos entre utentes e o público geral (Burzyńska et al., 2015; Rice & Atkin, 2013). Assim, a disseminação de informação clara acerca das medidas de apoio aos/às cuidadores/as, através de canais de comunicação preferenciais e acessíveis (e.g., televisão), dirigidos a esta população, poderá produzir efeitos na literacia de direitos e em saúde. Em termos educativos/formativos, estes discursos apontam para a necessidade de promover a educação cívica e política, contribuindo para a valorização dos direitos de grupos potencialmente vulneráveis, através do investimento em informação acerca do cuidado, da promoção da literacia da saúde e dos direitos, do apoio à formação e da disponibilização de grupos de suporte.
Cuidadores/as que referiram ter conhecimento do Estatuto do Cuidador Informal destacaram os hiatos entre o discurso político e a prática, nomeadamente quanto aos apoios e serviços comunitários dirigidos a cuidadores/as, a falta de informação acerca das medidas e sobre como obter o Estatuto, a sua ineficaz operacionalização, a rigidez dos critérios, assim como a burocratização e morosidade dos processos de obtenção de apoios:
“Acho que é bastante restrito (...) tenho visto a classe média sendo excluída de todos os apoios (...) normalmente são direcionadas para pessoas (...) que nem sequer ganha[m] suficiente para pagar IRS (Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares).” (E30, cuidador, cônjuge).
"[A] busca de apoio enquanto cuidador informal é chato, (...) é difícil (...) até hoje, eu não tive a resposta (...) é cheio de obstáculos e não tem em consideração o outro lado. (...) Eu fiz uma carta, um email para todos os órgãos da Segurança Social, até pra Belém [Presidente da República] eu passei um email, eu recebi uma resposta automática, dois meses depois." (E08, cuidadora, cônjuge).
Neste contexto, a existência de serviços de proximidade (de saúde, sociais e educativos) que facilitem a compreensão do Estatuto do Cuidador Informal e medeiem a obtenção dos apoios poderão representar uma mais-valia, especialmente para grupos vulneráveis, tais como cuidadores/as geograficamente isolados, com poucos recursos financeiros, e/ou com redes de suporte vulnerável (Soeiro et al., 2020).
O quadro de desinformação e desconhecimento acerca das medidas e serviços de apoio aos/às cuidadores/as, assim como a burocratização e a dificuldade em identificar necessidades, levaram os/as participantes a raramente ter acedido a medidas ou serviços de apoio (nomeadamente sociais e educativos) proclamados no Estatuto do Cuidador Informal:
"Primeiro, às vezes, nós não temos interesse porque não sabemos que existe. (...) mas lá está também não somos informados sobre uma coisa dessas e depois nem nos passa pela cabeça ir procurar. (...) Sim e achamos que é só aquilo, lá está, porque não temos conhecimento provavelmente daquilo e pensamos que o cuidador só tem que cuidar e é aquilo." (E06, cuidadora, filha).
Assim, compreender as principais razões para a desinformação generalizada acerca dos direitos dos/as cuidadores/as é essencial para a operacionalização das medidas de apoio e para a manutenção da qualidade de vida das famílias. A baixa literacia em saúde (Baccolini et al., 2021), a utilização de meios de comunicação menos acessíveis a faixas etárias mais elevadas (e.g., internet) (Morris & Brading, 2007), assim como a existência de profissionais e serviços (de saúde, sociais e de educação) pouco sensíveis a esta temática (Ambugo et al., 2021) podem ser alguns fatores determinantes na (in)formação legal, cidadã e em saúde de cuidadores/as informais.
4.2. NORMALIZAÇÃO DAS PRÁTICAS DE CUIDADO: DA EXPERIÊNCIA À APRENDIZAGEM
A normalização das práticas de cuidado informal, assim como a desresponsabilização do Estado pela manutenção dos cuidados, a escassez e desconhecimento acerca das medidas e recursos de apoio e a acumulação da prestação de cuidados com empregos a tempo inteiro, parece colocar as aprendizagens dos/as cuidadores/as num plano experiencial e inconsciente, obstaculizando a enumeração de necessidades formativas.
As aprendizagens dos/as cuidadores/as revelaram-se maioritariamente focadas na manutenção das atividades de vida diárias (e.g., alimentação, higiene pessoal) e em cuidados de saúde (e.g., administração de medicação) das pessoas cuidadas:
“Aprendi a manusear com a pega, você começa a aprender a anatomia, dinâmica do corpo, não é? Você vê sinais, então eu, eu fui aprendendo.” (E08, cuidadora, cônjuge).
"No início você se sente muito atrapalhada porque o grau dele de incapacidade é muito grande (...) só que você vai vendo que não é tão difícil, que não é tão complicado (…) você percebe que aquele modo de tomar banho não dá certo, que se você arrumar uma cadeira assim, se você usar o chuveiro dessa maneira, você vai percebendo que se você manter um ambiente aquecido (…) você percebe que alguns tipos de alimentação complica mais a, a ida ao banheiro, então você vai começando a aprender (…). Aprender a dar banho, a fazer a barba, que para nós mulheres é terrível!” (E08, cuidadora, cônjuge).
Estas aprendizagens são descritas como autónomas, naturais, inconscientes, mecanizadas, dependentes das necessidades da pessoa cuidada, dos erros e do tempo decorrente desde que assumiram o papel enquanto cuidadores/as, não existindo menções a processos de educação formal/não formal ou de educação informal por pares. Nenhum/a cuidador/a mencionou ter conhecimento de momentos de “aconselhamento, acompanhamento, capacitação e formação para o desenvolvimento de competências em cuidados”. (Lei n.º 100/2019, de 6 de setembro, p. 11). E apenas uma cuidadora referiu pertencer a um “grupo de autoajuda (…) [para a] partilha de experiências e soluções facilitadoras.” (Lei n.º 100/2019, de 6 de setembro, p. 11).
Dada a centralidade da aprendizagem através das experiências no cuidado informal, compreende-se a importância da existência de percursos educativos (formais/não formais) que considerem o conhecimento dos/as cuidadores/as e que auxiliem os/as mesmos/as a tornarem-se mais conscientes das suas competências, assim como a ganharem autoconfiança e motivação para desenvolverem outras competências. Momentos formativos significativos e desenvolvidos ao longo de toda a trajetória do cuidado podem não só melhorar a experiência de prestação de cuidados, como também potenciar o ingresso em ações de formação profissionais, suscetíveis de apoiar a inclusão social deste grupo e a sua integração no mercado laboral (European Association Working for Carers, 2017). Oportunidades de formação equitativas, não escolarizadas, desenvolvidas ao longo do tempo, adaptadas aos diferentes grupos e com abordagens pedagógicas atrativas (e.g., grupos de trabalho, suporte virtual, formação ativa de competências, formação por pares) contribuirão para a diminuição da frustração e isolamento dos/as cuidadores/as e, consequentemente para o aumento do seu bem-estar (European Association Working for Carers, 2017).
A curto-prazo, os/as cuidadores/as destacaram a ajuda dos/as profissionais de saúde, nomeadamente enfermeiros e fisioterapeutas, na resposta inicial às exigências da pessoa cuidada (e.g., aprender a movimentar, alimentar e/ou higienizar o/a sobrevivente). A médio e longo prazo parecem insistir numa lógica de imitação e repetição, suportando-se frequentemente no instinto e nas experiências passadas:
"É que isto da aprendizagem depois já vinha do primeiro AVC dela, a seguir do tumor do meu pai, também fui a cuidadora dele e aprendi a pôr o penso (…) foi uma coisa que tive que aprender, foi uma coisa que me meteu muita confusão. Aliás, com o meu pai, com o meu pai eu aprendi a dar injeções (…) foi a coisa que mais me custou (…) ainda noutro dia peguei em magnésio e dei-lhe magnésio, que ela estava tão em baixo para ver se pelo menos lhe abria o apetite, por autoiniciativa.” (E07, cuidadora, filha).
“Eu vi como é que a fisioterapeuta fazia e agora faço os exercícios iguais todos os dias.” (E035, cuidadora, cônjuge).
Apesar de mostrarem confiança com os cuidados prestados, os/as cuidadores/as não negaram as barreiras e receios, especialmente despoletados pela falta conhecimentos técnicos e de validação profissional:
“Tenho muito receio de não estar a saber medicar, a saber fazer as coisas corretamente.” (E07, cuidadora, filha).
Nesse sentido, e apesar de serem escassas as intervenções que consideram formações ou recursos educativos/formativos como potenciadores de bem-estar e do cuidado, um cuidador destacou a sua pertinência, nomeadamente a existência de formação por pares:
“Aprender a ser cuidador, acho que sim, isso até podia ser uma boa ideia (...) sensibilizar e até dar formação e que pudesse depois até ajudar outros.” (E30, Cuidador, cônjuge).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Num contexto europeu em que a crescente demanda de cuidados e custos de saúde afastam os cuidados formais e aproximam progressivamente os cuidados informais dos/as cidadãos/as, é essencial inscrever na agenda política o reconhecimento do papel dos/as cuidadores/as informais numa ecologia dos cuidados, promovendo a qualidade de vida daqueles que garantem os cuidados. Para isso, é central ultrapassar os desafios salientados pelos/as cuidadores/as, nomeadamente o desconhecimento acerca dos seus direitos, a manutenção da normalização das práticas do cuidado que sobrecarregam as famílias e, ainda, os modelos verticais de aprendizagem centrados nas necessidades biomédicas das pessoas cuidadas. O atual hiato entre as propostas do Estatuto do Cuidador Informal e os discursos dos/as cuidadores/as evidencia a necessidade de repensar e reformular a operacionalização das medidas de apoio, nomeadamente no campo da educação não formal e informal de adultos, para que se supere a lógica de acesso a serviços ou bens e se promova uma ecologia dos cuidados.
A complexidade e a heterogeneidade do cuidado informal, assim como a escassez de pesquisa no campo educativo, requer futura investigação que procure compreender em profundidade as dinâmicas dos processos de formação experiencial dos/as cuidadores/as informais, considerando os seus contextos, vivências, preferências e necessidades específicas. A literacia em saúde e dos direitos deverá ser uma prioridade, a par da promoção de recursos adequados à realidade e necessidade dos/as cuidadores/as. Adicionalmente, informação clara, sensível às perceções dos/as cuidadores/as e baseada em evidência científica, veiculada através de meios de comunicação acessíveis (e.g., televisão) e redes de suporte de proximidade constituiu um recurso indispensável para o suporte dos processos de formação experiencial. Estas medidas serão centrais para o desenvolvimento e/ou manutenção de condições e recursos que facilitem o cuidado e diminuam a sobrecarga dos/as cuidadores/as informais.
Em conclusão, problematizar o cuidado informal no campo da educação não formal e informal de adultos não poderá ser alheio à necessidade de co-reflexão e co-construção. Isto é, a compreensão crítica e holística das implicações (individuais e coletivas) do Estatuto do Cuidador Informal e das suas medidas (ou ausência delas) depende, idealmente, de um debate interdisciplinar e plural que mobilize não só especialistas de vários campos do saber, mas também membros da sociedade civil diretamente interessados.