1. Introdução
As políticas educativas em Moçambique promulgam uma educação para a cidadania e um sistema educativo alicerçado em princípios de democracia e unidade, tolerância e respeito pelas diferenças, diálogo e concertação social (Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano, 2020). Advogam medidas de melhoria das condições em que se realiza o ensino no que diz respeito à qualidade do corpo docente, ao apoio pedagógico e à modernização dos recursos e métodos de ensino, sublinhando também a associação entre a formação de professores e a mudança educativa (Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano, 2019). À luz desta perspetiva, a formação inicial de professores deve favorecer a conexão entre o que se aprende na universidade e a realidade das escolas, promovendo a transferência de conhecimentos e o fomento da inovação e da investigação.
No âmbito da formação inicial, existe pouco conhecimento sobre o impacto da supervisão nas pedagogias escolares e no desenvolvimento profissional dos futuros professores. Alguns estudos realizados no contexto moçambicano propõem uma supervisão reflexiva e inovadora, identificando alguns traços dessas características nas práticas estudadas, mas também constrangimentos e limitações, desde logo porque o campo da supervisão está pouco consolidado no país e a formação especializada em supervisão é escassa, mas também porque as condições em que a supervisão é exercida são precárias e as escolas apresentam problemas como a insuficiência de professores qualificados, a escassez de recursos ou a existência de turmas muito numerosas (cf. Assique, 2015; David, 2017; Greia, 2013; Marra, 2011, 2018; Novele, 2016).
Neste cenário, importa continuar a estudar e problematizar o papel da supervisão na promoção da inovação pedagógica. Foi com este propósito que se realizou um estudo de caso incidente no estágio de um curso de formação inicial de professores de Francês como língua estrangeira (FLE) da Universidade Licungo (UniLicungo)1. O estudo partiu da seguinte questão geral de investigação: Em que medida a supervisão no contexto do estágio pode favorecer a formação reflexiva dos futuros professores de FLE e a experimentação de metodologias de ensino de FLE alinhadas com tendências didáticas atuais? Numa abordagem interpretativa, foram inquiridos por questionário os atores de estágio e foram analisados dois manuais de Francês adotados nas escolas onde se realizava o estágio, com incidência no tipo de atividades de aprendizagem neles propostas.
No ponto seguinte, apresentam-se alguns pressupostos teóricos acerca de uma supervisão de natureza transformadora e de uma educação em línguas que vise o desenvolvimento de competências comunicativas e interculturais, no quadro de um ensino centrado no aluno e promotor da sua autonomia. Segue-se a apresentação da metodologia do estudo e um recorte dos seus resultados, incidente na natureza das atividades de ensino de FLE e na promoção de competências profissionais de apoio à mudança educativa. Embora o estudo se reporte a um contexto particular, os seus resultados podem ser transversais a outros contextos, nomeadamente em Moçambique, e também contribuir de forma mais vasta para o debate acerca da relação entre supervisão e pedagogia.
2. Enquadramento teórico
A supervisão pedagógica no contexto do estágio dos cursos de formação inicial de professores tem como finalidades centrais o desenvolvimento profissional dos estagiários e a renovação das práticas educativas nas escolas. Assim, importa considerar as conceções de educação e de formação que subjazem às práticas supervisivas e que determinam a sua direção e impacto.
Numa perspetiva transformadora, a supervisão orienta-se para a promoção de pedagogias escolares de natureza humanista e democrática, assentando num conjunto de princípios de ação como a indagação crítica, a intervenção crítica, a democraticidade, a dialogicidade, a participação e a emancipação (Vieira, 2009, Vieira et al., 2010; Vieira & Moreira, 2011). O ambiente formativo deve ser estimulante, incentivando o questionamento e a reconstrução das práticas, e alinhando-se com desenvolvimentos do campo da didática. Isto requer que os supervisores abandonem uma postura autoritária e de reprodução de modelos educativos, adotando uma postura colaborativa, reflexiva e de abertura à inovação (Alarcão, 2014; Alarcão & Canha, 2013). No caso da educação em línguas, e em consonância com tendências didáticas presentes na literatura especializada, importará que as práticas supervisivas promovam uma abordagem comunicativa, intercultural e promotora da autonomia dos alunos enquanto utilizadores e aprendentes da língua.
A capacidade de comunicar em sociedades multilingues e pluriculturais implica o desenvolvimento concomitante de competências de comunicação e de diálogo intercultural. A educação em línguas deverá fomentar a capacidade de interação com falantes de outras culturas, mas também contribuir para a construção de sociedades democráticas através da promoção de valores de cidadania como a responsabilidade social, o reconhecimento da diferença, o respeito pela diversidade e a superação de etnocentrismos (Bastos, 2014; Beacco et al., 2009; Byram et al., 2002; Conselho da Europa, 2001, 2009; Kraviski & Bergmann, 2006; Silva & Lima, 2016). Os alunos necessitam de ter conhecimento sobre a diversidade cultural, incluindo aspetos como as relações interpessoais (poder e solidariedade), os valores, as crenças e as atitudes, a linguagem gestual ou as convenções sociais, de forma a eliminar estereótipos sociais, lutar contra o racismo e a xenofobia, e aprender a respeitar o outro, o que conduz à intercompreensão e ao diálogo intercultural. Assim, a dimensão intercultural do ensino de línguas deve ajudar os alunos “à s’engager dans un cadre complexe et multiple de communication que se fonde sur le respect des personnes et égalité de tous en matière de droits de l’homme, ce qu’est précisément la base de toute interaction sociale en démocratie” (Byram et al., 2002, p. 10). Neste sentido, o aluno é entendido como um ator social e um agente ativo da aprendizagem, o que remete para a necessidade de fomentar a sua autonomia.
O conceito de autonomia tem sido definido e operacionalizado de modos diversos (Benson, 2011; Franco, 2013). No quadro de uma visão democrática da educação, Jiménez Raya et al. (2017) definem a autonomia como a “competência para se desenvolver como participante autodeterminado, socialmente responsável e criticamente consciente em (e para além de) ambientes educativos, por referência a uma visão da educação como espaço de emancipação (inter)pessoal e transformação social” (p. 17). Os autores propõem o desenho de abordagens pedagógicas que elevem agência dos alunos enquanto falantes e aprendentes, o que supõe o desenvolvimento da sua competência de comunicação em situações autênticas e da sua capacidade de aprender a aprender, neste caso implicando o seu envolvimento em processos de negociação, tomada de decisão e autorregulação da aprendizagem.
Uma pedagogia para a autonomia é uma prática situada, simultaneamente adequada aos contextos e orientada para a mudança, implicando que o professor seja capaz de problematizar os contextos educativos, identificar eventuais constrangimentos e definir estratégias de superação. Smith et al. (2017) sublinham que, embora a defesa da autonomia na educação em línguas tenha surgido originalmente no contexto europeu e possa ser interpretada no contexto africano como uma prática desajustada ou mesmo de inspiração neocolonialista, estudos realizados nesse contexto sugerem que não é esse o caso e que, na verdade, “it is precisely because the teaching and learning circumstances in developing countries tend to be so challenging that engaging and developing learner autonomy can be a pressing priority for participants concerned” (p. 14). Os autores relatam experiências de promoção da autonomia em situações de poucos recursos e turmas muito numerosas, onde a aprendizagem cooperativa e a metodologia de projeto constituíram soluções pedagógicas para os constrangimentos encontrados, implicando um envolvimento ativo dos alunos e a construção de pedagogias negociadas.
A exploração de uma abordagem comunicativa, intercultural e promotora da autonomia implica a reconfiguração de práticas convencionais centradas no professor e na aquisição de competências linguísticas. Assim, o potencial transformador da supervisão depende não só da visão de educação que a sustenta, mas também da adoção de um posicionamento crítico face aos fatores históricos, estruturais e pessoais que explicam e condicionam a prática educativa, o que supõe a formação de professores informados, reflexivos e capazes de vencer obstáculos e promover a mudança. Para isso podem concorrer estratégias de supervisão que favoreçam a articulação teoria-prática e investigação-ensino, por exemplo através de projetos de investigação-ação que impliquem os formandos na análise crítica dos contextos e na exploração e avaliação de práticas alternativas àquelas que forem consideradas desatualizadas, irracionais ou injustas (Moreira, 2020; Vieira et al., 2020). Sublinha-se, também, a importância da dimensão dialógica da supervisão na problematização e transformação da ação educativa, o que implica que o supervisor crie um ambiente de liberdade e confiança para o estabelecimento de uma comunicação tendencialmente democrática, na qual todos têm o direito de intervir e definir a agenda da reflexão e da ação educativa (Waite, 1995). Para além disso, a reflexão realizada nos encontros supervisivos deverá abranger as dimensões prática, conceptual e ética da pedagogia, reconhecendo-se que as decisões pedagógicas implicam sempre, implícita ou explicitamente, escolhas acerca do que vale a pena aprender, porquê e para quê.
Poderemos afirmar que a supervisão representa, fundamentalmente, um campo de discussão e renovação contínuas da pedagogia escolar, implicando uma reflexão crítica acerca de condições, pressupostos e implicações da ação educativa, assim como o desenvolvimento de um ensino centrado no aluno e da capacidade de fazer face aos obstáculos encontrados. Como afirma Vieira (2009), a supervisão situa-se entre o que a educação é e o que deve ser, explorando possibilidades e reconhecendo a lentidão inerente aos processos de mudança, o que requer atitudes de resiliência face aos obstáculos e de persistência na busca de melhores práticas.
3. Contexto e metodologia do estudo
O estudo reporta-se ao estágio da Licenciatura em Ensino de Francês da UniLicungo, a qual se destina à formação de professores de FLE da 9ª à 12ª classes (designação local para os anos de escolaridade) do Ensino Secundário Geral, que vai da 8ª à 12ª classes. O Francês foi introduzido nos currículos da 9ª à 12ª classes a partir de 2008, sendo obrigatório para todos os alunos da 9ª à 10ª classes e para aqueles que prosseguem cursos de letras na 11ª e 12ª classes. Trata-se de uma língua oficial em cerca de 50% dos países africanos, de grande importância política e diplomática, embora o Inglês ocupe maior espaço nos currículos como disciplina obrigatória da 6ª à 12ª classes. As orientações oficiais para o ensino de FLE recomendam uma pedagogia centrada no aluno e no desenvolvimento da sua competência linguístico-comunicativa e sociocultural, valorizando o uso da língua para fins comunicativos e académicos, e como instrumento de promoção da cultura do seu país e de outros países.
A licenciatura tem a duração de quatro anos e o currículo integra três componentes de formação: formação geral, que visa proporcionar uma formação para o exercício de uma cidadania responsável e ativa, implicando uma atitude de interrogação constante que facilitará o desenvolvimento de atitudes e valores fundamentais para o convívio social; formação educacional, cujo propósito é dotar os estudantes de uma base científica e metodológica para o ensino; e formação específica, constituída por disciplinas que permitem a aquisição de conhecimentos especializados sobre as áreas do saber e o seu ensino. O estágio integra esta última componente e realiza-se no 1º semestre do 4º ano, em escolas públicas e privadas com as quais a universidade estabelece protocolos de cooperação, sob a orientação de um professor da escola, designado como tutor, e um supervisor da universidade. O estágio visa a socialização do estagiário na profissão e o desenvolvimento das suas competências profissionais, competindo-lhe observar a realidade local do estágio, incluindo a observação de aulas do tutor e dos colegas, lecionar cerca de 30 aulas em turmas do tutor e participar em encontros supervisivos com o tutor e o supervisor, destinados a analisar e avaliar a sua prática.
A partir da questão de investigação atrás enunciada, o estudo teve como objetivos: identificar práticas supervisivas e pedagógicas no contexto do estágio em FLE; compreender em que medida a supervisão favorece a reflexão profissional e a inovação no ensino de FLE; e identificar potencialidades e constrangimentos das práticas pedagógicas e supervisivas desenvolvidas. A investigação configurou um estudo de caso educacional (Bassey, 1999), cuja finalidade é compreender um fenómeno de interesse educativo num contexto natural, caracterizando contornos desse fenómeno e avançando possibilidades de mudança. Foi adotada uma metodologia mista - quantitativa e qualitativa -, de forma a obter uma “visão mais abrangente e uma compreensão mais profunda do fenómeno em estudo” (Paranhos et al., 2016, p. 391). Recorreu-se ao inquérito por questionário aos atores do estágio e à análise de dois manuais adotados nas escolas, procedendo-se à triangulação de fontes e métodos para reduzir o risco de enviesamentos e elevar a confiabilidade dos resultados (Fuch et al., 2018). O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética da Universidade do Minho (parecer CEICSH 048/2019) e a sua realização foi autorizada pela instituição onde foram recolhidos os dados e na qual a primeira autora exerce funções profissionais, o que facilitou o acesso aos participantes no sentido de explicar o estudo e solicitar a sua colaboração. Garantiu-se o consentimento informado dos participantes, o seu anonimato e a confidencialidade da informação recolhida.
Foram inquiridos por questionário todos os atores do estágio em 2019 - 8 supervisores, 19 tutores e 41 estagiários. O questionário aos estagiários foi administrado presencialmente numa fase final do estágio, numa das suas aulas e com a colaboração de um dos seus professores. Os questionários aos supervisores e tutores foram enviados e devolvidos por correio normal, após um contacto pessoal da investigadora. Os questionários, compostos por perguntas de resposta fechada e aberta, apresentavam um conteúdo semelhante de forma a triangular as perspetivas dos atores. Integravam uma referência ao projeto e uma declaração de consentimento informado, uma secção inicial de caracterização geral dos participantes e questões sobre: competências de ensino promovidas; tipo de atividades didáticas desenvolvidas; uso e adequação do manual adotado; foco da reflexão nos encontros supervisivos; experiência de estágio e medidas de melhoria do seu funcionamento.
Responderam aos questionários os 8 supervisores, 16 dos 19 tutores e 39 dos 41 estagiários. Os estagiários tinham entre 20 a 25 anos de idade, a maioria (26) era do sexo masculino e uma boa parte (23) possuía alguma experiência anterior de ensino de Francês (entre 1 e 4 anos). A Tabela 1 apresenta alguns dados de caracterização dos supervisores e tutores. Apenas um dos supervisores e três dos tutores possuíam formação em supervisão pedagógica.
Foram, ainda, enviados e recolhidos por correio eletrónico dois questionários breves de resposta aberta ao coordenador do estágio e ao diretor do curso, obtendo-se a sua perspetiva acerca de problemas do curso e do funcionamento do estágio.
Os manuais são documentos oficiais utilizados nas escolas, constituindo instrumentos que regulam e moldam as práticas de ensino e de aprendizagem. Foram analisados dois manuais de FLE adotados no contexto do estudo, um destinado às 9ª e 10ª classes e outro destinado às 11ª e 12ª classes, a fim de compreender se as atividades neles propostas favorecem uma abordagem comunicativa, intercultural e promotora da autonomia. Procedeu-se a uma análise interpretativa das atividades com base num guião construído para o efeito, tendo-se obtido dados qualitativos e quantitativos acerca da organização dos manuais, do tipo de atividades propostas e das competências exploradas.
4. Resultados do estudo
Dada a extensão dos resultados, apresenta-se um recorte incidente nas atividades de ensino de FLE e no papel da supervisão na promoção de competências profissionais que apoiem a mudança educativa. São apresentados resultados parciais da análise de manuais e dos questionários aos supervisores, tutores e estagiários. Optou-se por apresentar os resultados globais dos questionários (n=63), assinalando-se algumas diferenças de resposta entre formadores e formandos. As respostas dos supervisores e tutores são apresentadas de forma agregada (n=24), dada a semelhança de perceções observada.
Os questionários apresentavam uma listagem de atividades comunicativas, interculturais e promotoras da autonomia dos alunos enquanto aprendentes da língua. Pedia-se aos inquiridos que assinalassem as atividades cuja realização foi incentivada no estágio e aquelas que consideravam mais importantes para inovar o ensino de FLE, ainda que não tivessem sido realizadas. Foi também analisada a sua presença nos dois manuais escolares, num universo de 517 atividades. A Tabela 2 compara os dados da análise de manuais com as perceções do total de inquiridos acerca da realização e importância das atividades.
Todas as atividades estão presentes nos dois manuais, à exceção de atividades de avaliação do ensino (por ex., questionários de opinião ou questões de reflexão), predominando as atividades interculturais (42.7%) e as atividades comunicativas (38.9%), seguidas das atividades de promoção da autonomia (20.4%).
As atividades comunicativas e interculturais, globalmente mais presentes nos manuais e mais percebidas nas práticas, são ligeiramente menos valorizadas quanto ao seu potencial inovador face às atividades de promoção da autonomia, provavelmente por serem reconhecidas como fazendo já parte integrante das práticas regulares de ensino de FLE e, por isso mesmo, não serem encaradas como prioritárias na mudança educativa. Importa sublinhar, contudo, que as atividades dos manuais relacionadas com a cultura, embora se centrem por vezes em experiências do quotidiano e temáticas universais e de interesse social, como a ecologia, os direitos humanos ou a paz, visam sobretudo a aquisição de conhecimentos sobre a cultura francesa a partir de textos sobre costumes, eventos ou personalidades. Predomina, assim, uma perspetiva monocultural, sendo escassas as atividades que implicam a comparação entre a cultura local e outras culturas (3.5%). Alguns inquiridos apontaram lacunas dos manuais quanto a recursos de apoio ao desenvolvimento de competências comunicativas (sobretudo no âmbito da oralidade) e culturais, indicando o uso de materiais complementares, incluindo materiais autênticos. Nos questionários, pedia-se para assinalarem a frequência com que o manual era usado nas aulas. Cerca de metade dos formadores e de um terço dos estagiários afirmaram que era usado “às vezes”, o que parece confirmar o recurso a materiais didáticos complementares.
Quanto às atividades de promoção da autonomia dos alunos enquanto aprendentes da língua, à exceção da aprendizagem cooperativa, as percentagens de resposta acerca da sua realização são relativamente baixas (entre 23.8% no caso da autoavaliação e 30.7% no caso dos projetos) e a sua presença nos manuais é reduzida, embora o seu potencial inovador seja valorizado pela maioria dos inquiridos. Os manuais apresentam indicações de apoio à produção de diferentes tipos de texto (por ex., como escrever uma carta informal), concorrendo para desenvolver a competência discursiva dos alunos e o seu conhecimento metacognitivo das tarefas linguísticas propostas, sobretudo no âmbito da escrita. Contudo, não existem atividades centradas na consciencialização e experimentação de estratégias de aprendizagem (por ex., estratégias de leitura, de interação ou de aquisição de vocabulário), atividades de autoavaliação ou atividades de avaliação do ensino pelos alunos. As atividades de projeto, sendo aquelas onde existem mais oportunidades de gestão da aprendizagem pelos alunos, representam apenas 5.1% das atividades e ocorrem apenas num dos manuais (por ex., elaboração de cartazes sobre a proteção do planeta, construção de um guia turístico ou construção de anúncios publicitários). A sua realização é apontada apenas por 39.7% dos inquiridos, embora 60.2% lhes atribuam importância para a inovação do ensino de FLE.
Os resultados apresentados sugerem que os manuais e as práticas de estágio podem desenvolver a autonomia dos alunos enquanto utilizadores da língua, mas não tanto enquanto aprendentes da língua. Apesar disso, as opiniões dos inquiridos acerca das capacidades desenvolvidas pelos estagiários apontam para uma aproximação a um ensino centrado no aluno, como se pode observar na Tabela 3 2: um ensino ajustado às características dos alunos, motivando-os para uso da língua e implicando participação, cooperação e regulação da aprendizagem.
Nota: Elaboração Própria. DT: Discordo Totalmente; D: Discordo; C: Concordo; CT: Concordo Totalmente; M: Média (1-4).
Embora um ensino centrado no aluno não dependa exclusivamente das atividades didáticas, podendo também ser fomentado, por exemplo, através do diálogo, do feedback e do apoio aos alunos na resolução de dificuldades, os resultados sinalizam algum desfasamento entre as capacidades profissionais indicadas e a ação pedagógica. Por exemplo, embora mais de metade dos inquiridos tenha concordado que foi desenvolvida a capacidade de ajudar os alunos a autoavaliar-se e a saber como estudar e resolver dificuldades, a realização de atividades de autoavaliação e de atividades para ensinar os alunos a aprender foi assinalada por uma minoria de participantes (15 e 21 dos 63, respetivamente; cf. Tabela 2), e estas atividades são também escassas nos manuais.
A capacidade de inovar está fortemente associada às capacidades de reflexão e de investigação pedagógica. A Tabela 4 indica que nem todos os inquiridos concordam que estas capacidades foram desenvolvidas, e apenas 50% dos formadores e 41% dos formandos concordaram que foi desenvolvida a capacidade de experimentar atividades de ensino inovadoras. As capacidades de reflexão, investigação e experimentação de atividades inovadoras foram aquelas onde mais formadores percecionaram dificuldades por parte dos estagiários (última coluna da Tabela). Ainda assim, a maior parte dos inquiridos indicou que foi desenvolvida a capacidade de construir ou adaptar materiais para além do manual e de usar materiais autênticos, assinalando lacunas nos manuais como foi referido anteriormente.
Nota: Elaboração Própria. DT: Discordo Totalmente; D: Discordo; C: Concordo; CT: Concordo Totalmente; M: Média; + Dif: Mais Dificuldades
Relativamente ao âmbito da reflexão no estágio, os questionários apresentavam uma listagem de assuntos relativos a perspetivas do ensino de FLE, aos contextos educativos, a estratégias didáticas e a estratégias de melhoria da prática, incluindo aqui a investigação pedagógica. Os inquiridos deviam assinalar os assuntos sobre os quais refletiram em conjunto nos encontros supervisivos, e também os que consideravam mais importantes na formação, ainda que não tivessem refletido sobre eles. A Tabela 5 apresenta a distribuição geral das respostas, por ordem decrescente dos assuntos percebidos como presentes na reflexão (segunda coluna). Conclui-se que a presença da maioria dos assuntos foi assinalada por menos de metade dos participantes, embora a importância conferida a esses assuntos apresente percentagens de resposta globalmente mais elevadas. Verifica-se, ainda, uma ordenação inversa de resultados quanto à presença e importância dos assuntos, o que sinaliza um desfasamento entre as vivências da reflexão e a importância que lhe é atribuída. Assim, as “estratégias didáticas para desenvolver competências de comunicação” foram o assunto considerado como mais presente (74.6%) e menos importante na formação (28.6%), ao passo que as “estratégias para investigar a prática” foram o assunto considerado como menos presente (25.4 %) e mais importante (74.6%).
A comparação das respostas dos dois grupos mostrou alguma divergência de opinião. As respostas dos formadores acerca da presença dos assuntos nos encontros supervisivos foram globalmente mais expressivas do que as dos formandos, com percentagens de resposta superiores na maioria desses assuntos, o que sinaliza perceções diferenciadas quanto aos assuntos que são abordados em conjunto. Em particular, os formadores apresentaram uma perceção mais favorável do que os formandos acerca da presença da reflexão sobre perspetivas da educação em línguas e sobre os contextos educativos (problemas observados, necessidades de melhoria e condições que dificultam a mudança), e os formandos atribuíram mais importância a esses assuntos do que os formadores, sinalizando a necessidade de refletir mais sobre eles.
A área de maior dissenso entre formadores e formandos reporta-se à comunicação supervisiva. A Tabela 6 indica as perceções dos formadores sobre a importância que atribuíam a algumas dimensões dessa comunicação na experiência de estágio e as perceções dos estagiários sobre o que vivenciaram. Observa-se um contraste entre o nível moderado de concordância dos estagiários sobre o apoio à reflexão, a expressão pessoal e a tomada de decisões (médias entre 2.6 e 2.7) e a importância atribuída a estes aspetos pelos formadores (médias entre 3.4 e 3.8). Esse contraste coloca questões acerca da natureza dialógica da comunicação supervisiva e da sua orientação para a autonomia dos formandos. A maioria dos formadores percecionou dificuldades dos estagiários nos aspetos indicados, à exceção do apoio do tutor à reflexão, parecendo reconhecer que a comunicação supervisiva é complexa e que nem sempre o que valorizam é conseguido na prática.
Fonte: Elaboração Própria. NI: Nada Importante; PI: Pouco Importante; I: Importante; MI: Muito Importante DT: Discordo Totalmente; D: Discordo; C: Concordo; CT: Concordo Totalmente; M: Média.
Apesar das limitações até aqui identificadas, todos os formadores e quase todos os estagiários reconheceram progressos na prática de ensino ao longo do estágio, assim como a importância do estágio na preparação profissional e na motivação para a futura profissão, o que sinaliza a sua satisfação com a experiência formativa. Numa apreciação global da experiência de estágio, numa escala de 1 (experiência extremamente negativa) a 7 (experiência extremamente positiva), 83.3% dos formadores e 74.4% dos estagiários assinalaram os pontos 6 ou 7 e nenhum assinalou os pontos mais negativos (1 a 3). Ainda assim, em questões de resposta aberta foram apontados constrangimentos ao funcionamento do estágio e propostas de melhoria corroboradas pelo diretor de curso e pelo coordenador do estágio: melhorar a formação prévia ao estágio e aumentar o tempo de prática; promover a formação dos supervisores e tutores; reforçar o acompanhamento regular dos estagiários, o apoio à reflexão e o incentivo à inovação; e fomentar a colaboração entre as escolas e a universidade para a concertação de estratégias formativas. Ao nível das escolas, foi apontada a escassez de recursos didáticos e a existência de turmas muito numerosas3 como fatores que geram dificuldades ao nível da gestão das atividades e das aprendizagens. Estes resultados indicam a existência de condições adversas ao trabalho supervisivo e pedagógico que não são exclusivas deste curso, tendo sido também identificadas em estudos anteriores realizados noutras instituições em Moçambique, referidos na Introdução.
5. Conclusões e recomendações
Retomando a questão de investigação, podemos afirmar que a supervisão no contexto do estágio da Licenciatura em Ensino de Francês na UniLicungo procura favorecer a formação reflexiva dos futuros professores e a experimentação de atividades de ensino que promovam a comunicação, a interculturalidade e a autonomia, embora as práticas pareçam ficar aquém das aspirações dos participantes, traduzidas na valorização de dimensões que reconhecem como menos evidentes ou menos conseguidas na sua experiência.
As atividades mais presentes nos manuais e mais percebidas nas práticas em sala de aula parecem estar globalmente alinhadas com uma abordagem comunicativa e intercultural da educação em línguas. Contudo, parece predominar uma perspetiva monocultural, o que pode indicar um ensino da cultura afastado das experiências e visões do mundo dos alunos e com poucas pontes entre culturas. O diálogo intercultural necessita de ser reforçado no âmbito das atividades comunicativas, promovendo-se de forma mais evidente uma competência comunicativa intercultural, por exemplo através de simulações e dramatizações, ou de interações com falantes de outras culturas (Bastos, 2014; Beacco et al. 2009; Byram et al., 2002; Kraviski & Bergmann, 2006). O facto de os estagiários terem mobilizado recursos para além do manual, incluindo materiais autênticos, pode ser um indicador de inovação. Contudo, o desenvolvimento da capacidade de inovar foi reconhecido apenas por metade dos formadores e menos de metade dos estagiários.
Relativamente às atividades potencialmente promotoras da autonomia dos alunos enquanto aprendentes, os resultados indicam sobretudo uma valorização da aprendizagem cooperativa, a qual pode ser promovida no contexto de estágio como forma de apoiar o desenvolvimento de competências comunicativas e sociais dos alunos, mesmo em turmas numerosas como acontece no contexto moçambicano (David, 2017). Contudo, outras atividades parecem estar mais ausentes dos manuais e das práticas percecionadas: atividades para ensinar os alunos a aprender, atividades de autoavaliação e de avaliação do ensino pelos alunos, ou atividades de projeto. Os inquiridos valorizam estas atividades no sentido de inovar o ensino de FLE nas escolas, o que está de acordo com abordagens recomendadas na literatura (Jiménez Raya et al., 2017; Jiménez Raya & Vieira, 2020), importando encontrar caminhos para elevar a sua presença na formação didática dos futuros professores e no âmbito do estágio.
Os resultados evidenciam a existência de limitações em dimensões importantes de uma supervisão de orientação transformadora, como a reflexão e a investigação das práticas, com efeitos na capacidade de inovar. Relativamente aos assuntos da reflexão nos encontros supervisivos, percebeu-se que, embora sejam diversos, existe um desfasamento entre a reflexão vivenciada e a reflexão que se valoriza para a formação do professor; em particular, será necessário reforçar a reflexão de ordem conceptual e ética sobre pressupostos da educação em línguas e variáveis contextuais que a afetam e exigem a mudança educativa, assim como sobre estratégias de investigação pedagógica. Identificou-se, também, uma discrepância entre formadores e formandos relativamente ao apoio à reflexão e ao sentimento liberdade e confiança dos estagiários para a expressão pessoal e a tomada de decisões, o que parece indicar a necessidade de reforçar a dialogicidade e a democraticidade dos encontros supervisivos, com vista à emancipação profissional (Vieira et al., 2010; Vieira & Moreira, 2011; Waite, 1995). A dimensão da investigação pedagógica parece aquela que carece de maior desenvolvimento futuro, sublinhando-se a necessidade de fomentar o desenho e o acompanhamento de projetos com recurso à investigação-ação, que conciliem a exploração de atividades inovadoras com o desenvolvimento profissional reflexivo dos futuros professores. A investigação-ação não é uma prática comum do contexto do estudo, embora constitua uma das estratégias formativas mais promissoras para o desenvolvimento da agência profissional dos futuros professores na construção de pedagogias centradas no aluno e na aprendizagem (Edwards, 2020; Moreira, 2020; Vieira et al., 2020).
O facto de os inquiridos reconhecerem limitações nas práticas pedagógicas e supervisivas revela uma postura crítica e de abertura à mudança. Em contextos adversos, será importante desenvolver uma supervisão situacional (Waite, 1995), o que implica que o supervisor adote uma postura crítica face aos contextos e apoie os estagiários na procura de espaços de ação que possibilitem a mudança, evitando uma atitude de conformismo e resignação face aos obstáculos encontrados. Os constrangimentos situacionais referidos pelos inquiridos, como o curto tempo de prática, a escassez de material didático nas escolas, a extensão das turmas, a escassez de formação em supervisão ou as lacunas na parceria universidade-escolas, podem limitar o impacto da supervisão e merecem reflexão por parte da universidade, abrangendo todos os cursos, na medida em que são fatores transversais à formação inicial. Exige-se uma análise aprofundada das condições da formação e de estratégias que possam colmatar as dificuldades sentidas pelos atores, sendo importante auscultá-los, como foi feito neste estudo, como ponto de partida para um debate interno acerca do que pode limitar e reforçar a qualidade dos processos de desenvolvimento profissional e o papel da supervisão na renovação das pedagogias escolares.
Face à escassez de conhecimento acerca das condições e do impacto da supervisão no contexto moçambicano, neste caso na educação em línguas, torna-se necessário expandir este tipo de estudos e realizar outros que impliquem abordagens mais etnográficas, por exemplo através da observação de aulas e de encontros supervisivos, da análise de documentos produzidos pelos formandos (materiais didáticos, reflexões, relatórios), ou do inquérito aos seus alunos acerca das metodologias de ensino implementadas. Relativamente ao papel dos manuais escolares, embora não se advogue o seu uso exclusivo perante a diversidade e as especificidades dos cenários educativos, reconhece-se a sua importância para os professores e os alunos, sobretudo em contextos de escassez de outros recursos didáticos nas escolas. Propõe-se a sua melhoria progressiva com base em estudos que confrontem as suas propostas com as perceções dos seus utilizadores, analisando as suas potencialidades e limitações na concretização de políticas educativas e linguísticas (trans)nacionais e de avanços realizados no campo da didática de línguas (ver, por ex., Chagas 2023).
Será importante, também, investigar de que forma os currículos de formação, na sua globalidade e enquanto projetos formativos, preparam os estudantes para a adoção de abordagens reflexivas e potencialmente inovadoras, através de atividades que fomentem a integração teoria-prática e investigação-ensino, e que não devem ser exclusivas do estágio. Vieira et al. (2019) sugerem as seguintes atividades: análise dos referenciais ético-conceptuais subjacentes a documentos reguladores das práticas educativas (políticas, currículos, programas, manuais); análise do modo como os contextos escolares podem favorecer ou dificultar a inovação (p. ex.: culturas de trabalho, abordagens pedagógicas e projetos educativos); análise do potencial inovador das práticas educativas (p. ex.: análise de casos ou de projetos de inovação); e exploração de práticas inovadoras e promotoras da reflexão profissional (p. ex.: simulação de estratégias de inovação, projetos de investigação-ação nas escolas, elaboração de diários e portefólios de ensino).
Da qualidade dos processos de formação e de supervisão dependerá, em grande medida, o desenvolvimento de profissionais reflexivos e abertos à mudança. O presente estudo evidencia potencialidades da supervisão, áreas problemáticas e caminhos de melhoria, acreditando-se que é possível que o estágio constitua, cada vez mais, um espaço de compreensão e transformação das práticas educativas no contexto moçambicano.