1. INTRODUÇÃO
A reflexão que se apresenta neste texto baseia-se numa síntese das investigações levadas a cabo pelo seu autor (postas em diálogo com estudos de outros autores sobre o mesmo assunto), que agora são objeto de uma sistematização e proposta de teorização.
O tema deste artigo leva ao mapeamento sobre quem são aqueles que trabalham na educação de adultos e à problematização da existência ou não de profissionais nesta área da educação, cujo foco da discussão está centrado numa das dimensões mais relevantes das profissões e das ocupações: a existência ou não de uma formação académica prévia e respetivo conhecimento que enquadrem a atividade e sejam exigência para o exercício da mesma.
Os estudos que têm sido realizados sobre o assunto na educação de adultos dizem-nos que não existe essa formação e conhecimento prévios enquanto exigência para aí se laborar e que aos contextos de trabalho chegam pessoas com as mais diversas formações iniciais e respetivos conhecimentos de partida (Jarvis, 1991; Merriam & Brockett, 2007; Soares & Pedroso, 2016). O que não quer dizer que não possa haver uma ou outra exceção de acesso a tais locais de trabalho com base numa formação académica mais ou menos residual em educação de adultos, como veremos.
Sendo assim, julgou-se pertinente discutir a seguinte questão: não havendo uma formação académica e um conhecimento prévio exigido que prepare aqueles que trabalham na educação de adultos, como é que eles aprendem e desenvolvem os saberes necessários para efetuarem as suas funções?
O texto encontra-se estruturado em três grandes momentos. Começamos por realizar uma contextualização da educação de adultos que permite lançar a questão enunciada, fazendo referência a quem são os atores que trabalham neste campo, dando realce à problemática da sua formação e à existência ou não de profissões no setor em análise. De seguida, procura-se responder à questão colocada, evocando os contextos de trabalho como espaços potenciais de aprendizagem e de construção de saberes para os adultos que são eles próprios “profissionais” da educação de adultos. Olhar estes espaços de trabalho nesta perspetiva é olhar para a própria educação de adultos de um outro ângulo, é olhar para a educação dos adultos que trabalham na educação de adultos, dando realce aos espaços não formais e informais de educação no seu processo de construção de aprendizagem e saber.
Termina-se com uma nota final, que é uma reflexão sobre a intermitência que caracteriza a educação de adultos em muitos países e como esta realidade afeta todo um património de aprendizagens e saberes que se pode construir em determinado momento, mas que, precisamente fruto de tal intermitência, muitas vezes se perde, o que dificulta todo o processo de profissionalização do setor. Nesta nota final responde-se à questão colocada no título deste artigo, deixando claro que os contextos de trabalho são importantes, mas não suficientes para a construção da profissionalidade, uma vez que é essencial, nesse processo, a formação académica e profissional. Nela, discute-se ainda o que entendemos dever ser a base das aprendizagens, saberes e práticas dos que trabalham na educação de adultos.
2. O QUE CARACTERIZA OS TRABALHADORES DA EDUCAÇÃO DE ADULTOS
Sem que se pretenda realizar um exercício exaustivo, nesta secção dá-se conta de algumas das características daqueles que trabalham na educação de adultos, com o objetivo de enquadrarmos a questão colocada anteriormente.
Não há muitos anos, pelo menos em Portugal, quando se refletia sobre quem trabalhava na educação de adultos pensava-se quase exclusivamente nos professores e nos formadores de adultos, o que não quer dizer que não existissem outros atores implicados nela, apenas que a visibilidade maior era daqueles (Loureiro, 2020).
Com o relevo que outras formas de educação de adultos passam a assumir, para além da escolar e da formação profissional, ou com a forma parcialmente diferente com que em alguns casos estas funções passaram a ser realizadas (Fantinato & Moreira, 2016), foi surgindo em vários contextos geográficos um conjunto cada vez maior e diverso de novos atores: os profissionais de reconhecimento, validação e certificação de competências; os mediadores; os técnicos de orientação; entre muitos outros (Alves et al., 2018; Barros & Silva, 2020; Guimarães, 2016; Loureiro, 2009; Research voor Beleid, 2008). Esta realidade não tem retirado o protagonismo aos professores e formadores de adultos que, ainda assim, continuam a ser dos que mais atenção têm merecido por parte dos investigadores. Tal explicar-se-á pelo facto de serem aqueles que no setor da educação de adultos mais têm mantido as suas funções e a sua atividade ao longo dos anos.
Alguns autores têm concluído que a estes novos atores corresponde uma população que pode ser considerada jovem, altamente qualificada e que apresenta alguma preponderância do sexo feminino (Guimarães, 2009; Guimarães & Barros, 2015; Loureiro, 2009; Paulos, 2015).
Tendo por base a teoria do discurso pedagógico oficial de Bernstein (1993), podemos identificar os que trabalham no campo da produção do conhecimento científico da educação de adultos (os investigadores e teóricos), os que fazem parte do campo da recontextualização do conhecimento pedagógico oficial, que deslocalizam, transformam e relocalizam o conhecimento científico neste campo do discurso (por exemplo, aqueles que trabalham nos ministérios da educação dentro desta área) e os que estão no campo da reprodução do conhecimento oficial, isto é, em contacto direto com os adultos que se encontram em processos de educação e formação (Loureiro, 2009).
A este propósito e sobre a ação destes últimos atores, convém refletir sobre o risco muito real que, em vários contextos (associativo, escolar, entre outros), correm sobre a perda cada vez maior da sua autonomia. Na verdade, o que refere Lima (2011) a propósito da política educativa, da organização escola e do trabalho dos professores, aplica-se cada vez mais a uma parte muito significativa da educação de adultos. Também ela é objeto de políticas nacionais e transnacionais que ditam uma regulamentação monolítica excessiva, uma burocratização cada vez mais evidente do trabalho destes atores, que faz com que muitos atuem nas suas organizações com base no que Mintzberg (2003) designa de burocracia mecânica, que privilegia, entre outros aspetos, a rotina, a padronização do processo de trabalho, a perda de autonomia, em vez de atuarem com base no que o mesmo autor chama de burocracia profissional, ou seja, como profissionais com autonomia assente no seu conhecimento que enforma as suas decisões (Mintzberg, 2003, 2007). Independentemente deste traço que caracteriza a atuação de muitos, sem dúvida que a diversidade de atores é um atributo marcante deste setor educativo (Zarifis & Papadimitriou, 2014, 2015), o que fez com que Romans e Viladot (1998) afirmassem que no meio de tanta diversidade o que surge, muitas vezes, como denominador comum é o de trabalharem com pessoas consideradas adultas. A maior parte deles vai trabalhar para a educação de adultos sem que nunca tivesse pensado antecipadamente em tal possibilidade (Loureiro, 2010; Paulos, 2020), o que não deixa de ser normal, uma vez que como, na esmagadora maioria dos casos, “não há uma formação académica prévia específica na área de educação de adultos é expectável que esse não seja um campo de trabalho esperado” (Loureiro et al., 2011, p. 68). Na verdade, esta constatação, que retirámos a propósito de uma investigação sobre o trajeto profissional de técnicos com formação académica elevada no terceiro setor em Portugal, veio confirmar a que havíamos realizado antes no âmbito de outro estudo efetuado no norte do país (Loureiro, 2009). Esta situação ocorre em muitos outros países, como, por exemplo, na Dinamarca ou na Suécia, onde vários formadores de adultos são-no não porque tivessem pensado em tal possibilidade laboral, mas porque não conseguiram emprego nas suas áreas de formação académica (Andersson et al., 2013).
É possível encontrarmos situações laborais muito diferenciadas entre aqueles que trabalham na educação de adultos. Uns exercem as suas funções em exclusivo, outros participam de forma episódica, acumulando esta atividade com outras; há quem o faça de forma voluntária e há muitos cuja situação laboral é precária, situação destacada por diversos autores (Andersson et al., 2013; Guimarães, 2016; Milana & Skrypnyk, 2016; Paulos, 2020; Research voor Beleid, 2008; Zarifis & Papadimitriou, 2014). Num estudo recente, aqui trazido apenas para dar um exemplo dessa precaridade, realizado na Irlanda acerca dos diplomados em Educação Contínua da Universidade de Maynooth, que se debruçou sobre as suas tentativas de desenvolverem uma carreira como educadores de adultos, verificou-se que nem metade desses diplomados conseguiu realizar qualquer ocupação no setor, dos que conseguiram apenas 10% desenvolve a sua atividade a tempo integral, muitos dos quais com contratos temporários, o que não lhes confere qualquer segurança profissional futura (O’Neill & Fitzsimons, 2020).
A par desta realidade e de forma não surpreendente encontramos também trajetórias profissionais diferenciadas, sendo que muitos dos que trabalham na educação de adultos passaram por diversas atividades até entrarem no setor. Foi o que concluiu um estudo realizado em trinta e dois países da Europa - ALPINE (Research voor Beleid, 2008). Ao mesmo tipo de resultado se tem chegado entre nós (Loureiro, 2009; Paulos, 2020) e noutros contextos, como seja, apenas para dar mais um exemplo, o dos países nórdicos (Andersson et al., 2013).
Outra característica extremamente vincada entre quem trabalha na educação de adultos, a que já se fez referência, é a sua formação académica inicial variada. Na verdade, a maior parte destes trabalhadores não tem qualquer formação académica relacionada sequer com a educação de adultos e, desta forma, embora exista um conhecimento teórico, científico e específico sobre a educação de adultos, que se materializa, entre outras formas, na vasta produção sobre ela e também na existência de diversos cursos de formação académica, nomeadamente entre nós em várias Instituições de Ensino Superior, esse conhecimento não é tido de forma prévia pela esmagadora maioria de quem trabalha no setor da educação de adultos antes de a ele aceder, também porque o próprio setor não o exige, já que não há essa regulação deste espaço laboral. Esta falta de regulação (regulação que existe nas atividades profissionais) faz com que, inclusive, ocorra que quem tem formação específica na educação de adultos se veja ultrapassado por outras formações para exercer funções no setor. Esta realidade é problemática e manifesta, entre outros aspetos, a falta de uma das dimensões essenciais das profissões: o poder para regular o acesso ao mercado de trabalho de acordo com um conhecimento proveniente de uma formação específica (Macdonald, 1995; Rodrigues, 1997), embora ela exista.
Assim, aos contextos de trabalho chegam pessoas com as mais diversas formações iniciais e respetivos conhecimentos e saberes de partida, que não os da educação de adultos (Guimarães & Barros, 2015; Jarvis, 1991; Merriam & Brockett, 2007; Research voor Beleid, 2008; Soares & Pedroso, 2016).
Mesmo quando nos referimos àqueles que trabalham há mais tempo na educação de adultos, como sejam os educadores de adultos que exercem as suas funções em contextos formais de educação, uma formação académica específica e prolongada na área não lhes é exigida para aí poderem concretizar a sua atividade (Research voor Beleid, 2008; Soares & Pedroso, 2016; Zarifis & Papadimitriou, 2014). Ocorre ainda que, apesar de existirem várias ações de formação profissional contínua específica, muitos dos que trabalham na educação de adultos não a realizam (Freitas & Silva, 2016; Loureiro, 2020).
Apesar deste ser o panorama geral não quer dizer que não haja uma ou outra exceção de regulamentação parcial do acesso à atividade com base na existência de uma formação académica específica. É o que se passa na Eslovénia, onde os educadores de adultos que trabalham em escolas de ensino fundamental e médio e em faculdades profissionalizantes, financiadas por fundos públicos, têm de ter formação académica superior da qual faz parte uma educação pedagógico-andragógica, que contempla 60 ECTS da formação total (Mikulec, 2019; Schwarz & Mikulec, 2020).
Todos estes aspetos levantam, desde há longa data, questões sobre se há ou não profissionais de educação de adultos (Guimarães, 2016; Jarvis, 1991; Loureiro, 2009; Zarifis & Papadimitriou, 2014). Nas discussões destes e de outros autores, a questão da existência de um conhecimento específico associado ao exercício da atividade é fundamental, concluindo grande parte deles que apesar dos esforços que têm ocorrido no sentido da profissionalização (Lattke & Jütte, 2014; Merriam & Brockett, 2007), ainda não temos uma profissão ou sequer profissões dentro da educação de adultos, no sentido tradicional do termo, mas sim ocupações (Guimarães, 2016; Milana & Skrypnyk, 2016; Zarifis & Papadimitriou, 2014). A verdade é que, se, por um lado, se admite que há os tais esforços de profissionalização, não se pode, por outro lado, ignorar que uma proporção muito significativa dos que aqui trabalham estão em situação laboral muito precária (Guimarães, 2016; O’Neill & Fitzsimons, 2020; Paulos, 2020; Zarifis & Papadimitriou, 2014, 2015).
Não havendo tal enquadramento do setor, mais concretamente não existindo no geral a exigência de uma formação específica e de um conhecimento a ela associado para se laborar na educação de adultos, há uma questão que nos preocupa: como aprendem e constroem o seu saber aqueles que trabalham na educação de adultos?
Procuramos, de seguida, dar resposta a esta questão centrando-a na potencialidade que os contextos de trabalho podem ter nesta matéria.
3. OS CONTEXTOS DE TRABALHO COMO FONTES DE SABER E APRENDIZAGEM
As discussões em torno dos locais de trabalho como espaços de saber e de aprendizagem são vastas: umas centram-se em casos particulares de profissionais ou trabalhadores como, por exemplo, os médicos (Hargreaves, 2000) ou os educadores de adultos (Fenwick, 2004; Guimarães, 2016; Loureiro, 2005, 2010, 2020; Loureiro & Caria, 2013; Usher & Bryant, 1992), outras têm alertado para o caráter coletivo dos processos de aprendizagem e construção de saber (Wenger, 2001), para o relevo da experiência em tais processos (Kolb, 1984), entre muitas outras matérias. A presente reflexão centra a discussão em torno de quatro fontes, mecanismos e formas de manifestação da aprendizagem e da construção de saber em local de trabalho, tendo plena consciência que o processo é mais vasto. A razão de fundo desta opção tem a ver com o facto de terem sido estas as principais fontes e mecanismos detetados nas investigações que realizámos sobre a matéria. São elas: a formação profissional contínua; a construção e reconstrução da aprendizagem e do saber; a transferência das aprendizagens e do saber, sua circulação e coletivização; e a dimensão temporal da aprendizagem e do saber. Tais mecanismos estão intimamente ligados entre si. As reflexões que fazemos dizem respeito, sobretudo, àqueles que trabalham integrados em equipas.
3.1. A FORMAÇÃO PROFISSIONAL CONTÍNUA
Uma das formas pelas quais os contextos de trabalho podem ser educativos, proporcionarem aprendizagens e apropriação e transformação de saberes é através da formação profissional contínua que promovem, que facilitam aos seus profissionais. Mas esta não é a única forma de ela ocorrer, é também possível que essa formação se faça a partir de processos de procura individual. As modalidades da formação são variadas, podendo ir desde a participação em seminários até à frequência de cursos.
Estes podem ser momentos relevantes de aprendizagem e de construção ou reconstrução do saber, porque podem permitir o contacto com conhecimento teórico ou com procedimentos técnicos (Sainsaulieu, 2001; Wenger, 2001) que estejam relacionados com questões, com problemas que preocupam quem frequenta a formação. Se assim é, o que normalmente ocorre é a incorporação, através de exercícios reflexivos, desses elementos na prática. Estes processos são de extrema importância e ajudam a provar que a prática quando mediada por outros elementos, nomeadamente o conhecimento teórico, pode ser melhorada e, mais do que isso, permitem perceber também que o saber e a aprendizagem profissional não são apenas resultado da prática e da experiência e até da “simples” reflexão sobre ela (Caria et al., 2014).
Na verdade, a reflexão na e sobre a prática, a experiência, é um processo importante na aprendizagem e construção de saber, mas não basta refletir sobre a experiência, é necessário combinar essa reflexão, ou inserir nessa reflexão elementos externos à própria experiência, como sejam, por exemplo, os tais elementos teóricos (Dewey, 1971). Como defende Kolb (1984), para que a experiência seja educativa ela precisa de passar por processos de transformação.
Os resultados dos estudos que temos levado a cabo junto daqueles que trabalham na educação de adultos (Loureiro, 2010; Loureiro & Caria, 2013) e também de outros atores do terceiro setor (Caria et al., 2014) mostram que estes consideram que a formação que têm realizado tem contribuído, na maior parte das vezes, para aprendizagens e construção de saberes úteis para o exercício das suas funções.
A resultados semelhantes têm chegado outras investigações (Fantinato & Moreira, 2016; Paulos, 2020). Fantinato e Moreira (2016) realçam a importância da formação para os professores de matemática do ensino regular que começaram a desempenhar funções como formadores na área de competência chave Matemática para a Vida, nos Centros Novas Oportunidades, em aspetos tão simples como seja todo um conjunto de novos termos associados a procedimentos que lhes eram completamente estranhos. Trata-se de, através da formação, no caso concreto, se passar de forma progressiva a adquirir saberes categoriais e procedimentais (Loureiro, 2010).
Com isto, não se deve concluir que os processos de formação profissional contínua existentes são suficientes para que ocorra uma aprendizagem e uma construção de saber que permita aos que trabalham no campo da educação de adultos realizar convenientemente as suas funções. Para além disso, também não é certo que a esmagadora maioria destes agentes procure e frequente tais processos formativos. Na verdade, há quem pense que não necessita de fazer formação específica na área da educação de adultos para aí trabalhar (Freitas & Silva, 2016) e há quem prefira realizá-la em áreas similares à da formação académica inicial (Research voor Beleid, 2008). Por outro lado, também não se deve concluir que as apreciações realizadas sobre a formação efetuada são sempre positivas, pelo contrário, há casos em que alguns dos que trabalham na educação de adultos são muito críticos acerca da formação recebida.
Mas, como referimos acima, quando o processo de formação proporciona aprendizagens e novos saberes “o que se identificou foi que tais aprendizagens e saberes são transpostos para a ação individual dos que frequentaram as formações e também, a ritmos diferentes, para o que é a ação coletiva das equipas de trabalho” (Loureiro, 2020, p.162).
3.2. A CONSTRUÇÃO E A RECONSTRUÇÃO DA APRENDIZAGEM E DO SABER
A construção e a reconstrução da aprendizagem e do saber ocorrem de diferentes formas em situação (Lave & Wenger, 1999). Acontece pela participação na prática, seja em situações de rotina, seja em situações de incerteza (Schön, 1996, 1998). Tal participação faz-se, comummente, de forma gradual, de uma participação periférica para uma participação mais central (Wenger, 2001). Neste processo gradual tem relevo o que Cornu (2003) designou por visão, ou seja, a observação e audição do que os outros fazem e dizem. Também Paulos (2020) se refere ao significado da observação no processo de formação dos educadores de adultos em contexto de trabalho. Mas, conforme se explicitou na secção anterior, a prática, por si só, pode não ser fonte de aprendizagem e de construção de saber, sendo necessária a existência de processos reflexivos mediados por elementos externos a essa própria prática (Loureiro & Caria, 2013).
Na base dos processos de construção e reconstrução estão diferentes fontes. Há fontes internas e externas. Das internas, faz parte o reportório coletivo do local de trabalho (Wenger, 2001), a experiência-memória (Cornu, 2003), que se manifesta na interação entre os membros das equipas que se constituem nos locais de trabalho. Para além desse há também o reportório individual de cada membro das equipas, que se pode manifestar relevante em alturas de reconstrução da prática, do saber e aprendizagens associadas (Loureiro et al., 2019; Loureiro, 2020).
As fontes externas de aprendizagem e de saber são várias. Pode ser um novo membro de uma equipa que traz para o local de trabalho uma nova forma de fazer um qualquer procedimento, podem ser agentes e agências externas que, ao interagirem com os membros do local de trabalho, vão introduzindo naquele contexto novos saberes e aprendizagens. É o caso da introdução de instrumentos de trabalho, informações e diferentes experiências de fazer determinados procedimentos que, se considerados pertinentes, são apreendidos, adaptados e postos em prática, contribuindo, desta forma, para a reconstrução da aprendizagem e do saber local (Hargreaves, 2000; Loureiro & Caria, 2013).
Pode-se afirmar que existem três mecanismos articulados de construção e reconstrução das aprendizagens e dos saberes nos locais de trabalho: a experimentação, a reflexão e a negociação de sentido da prática. Todos eles identificados nas equipas de educação de adultos estudadas (Loureiro, 2009; Loureiro & Caria, 2013).
A experimentação, associada a processos reflexivos pode ocorrer em situações de rotina. Mas é mais visível nas chamadas zonas de incerteza da ação (Jobert, 2001). A experimentação é considerada a base da construção e reconstrução do saber e da aprendizagem da prática, ela é a fonte do saber em construção e pode partir, ou não, do reportório existente nos locais de trabalho, mas acabará sempre por contribuir para o enriquecimento do saber constituído dos profissionais (Loureiro, 2009).
Nas alturas de rotina, a experimentação ocorre quando há zonas da prática que deixam de funcionar como o previsto, o que leva os atores a recorrerem ao seu reportório de saber para experimentar outra forma de fazer para que a situação volte a funcionar. Nas situações mais complexas, o que é comum verificar-se é que o profissional recorra a outros saberes, a outros recursos para além dos seus, iniciando-se, assim, um processo de procura que pode criar um saber novo e um conjunto de novas aprendizagens (Jobert, 2001; Loureiro, 2009).
Assim, a experimentação e a reflexão inerentes à modificação de formas de fazer têm um papel extremamente importante em toda a dinâmica de construção e reconstrução das aprendizagens e do saber. As adaptações e alterações da prática procuram melhorar o procedimento. É a verificação da existência de uma anomalia na prática que leva, a maior parte das vezes, a que se realize a experimentação com a finalidade de melhorar a prática. Esta forma de atuar é um dos principais mecanismos de aprendizagem e construção do saber nos locais de trabalho, cujo processo não é feito simplesmente de justaposições, “faz-se também de retornos a partes do fazer e saber anteriores, é um processo complexo e multidimensional” (Loureiro, 2010, p. 104).
Guimarães (2016), ao abordar as novas ocupações na educação de adultos em Portugal, também salienta a existência de processos de experimentação significativos em algumas das atividades realizadas. O mesmo ocorreu com Paulos (2020), na sua investigação sobre os educadores de adultos envolvidos no processo de reconhecimento e validação de adquiridos experienciais, ao salientar que a formação destes educadores ocorre sobretudo em contexto de trabalho, tendo nela um papel fundamental os processos de tentativa-erro.
A experimentação tem vários graus de profundidade e pode levar: a uma revisão e reorganização do saber adquirido; à construção de uma nova prática e de um novo saber a ser integrado no conjunto de saberes individuais ou coletivos existentes; e a uma busca que exija a integração de conhecimento abstrato na prática, o que passará por um exercício de recontextualização (Loureiro, 2005, 2009).
A realização das alterações passa por três tipos de mecanismos:
as que se fazem com base no reportório de saber coletivo existente […] as que ocorrem com base na criatividade de um ou mais dos membros das equipas de trabalho, sem que haja recurso ao reportório coletivo; e as alterações feitas a partir da introdução e adaptação de formas de fazer e/ou de instrumentos de trabalho exteriores ao local de trabalho em causa (Loureiro, 2020, p. 164).
As transformações, decorrentes da experimentação e processos reflexivos associados, quer tenham maior ou menor grau de profundidade, levam frequentemente à necessidade de um processo coletivo de negociação da prática, do seu significado e dos saberes a ela associados (Wenger, 2001). Este é um processo muito rico de negociação e de renegociação da linguagem coletiva, ou seja, do saber categorial coletivo. E isto ocorre porque, ao introduzir-se uma transformação na prática, essa linguagem coletiva é “abalada”, passando a existir a necessidade de se iniciar um processo de renegociação dessa linguagem e dos saberes a ela associados. Este processo faz com que se reaprenda e realimente o saber coletivo das equipas de trabalho (Loureiro, 2010). O que está em causa é, portanto, a prática em si mesma, o seu significado e respetiva linguagem.
Quando estes processos ocorrem nos locais de trabalho, podemos defender que estamos perante atores que se afastam da racionalidade técnica instrumental, do tecnicismo da prática (Freire, 2000), aproximando-se de um tipo de atuação assente numa epistemologia da prática profissional que reflete na e sobre a prática, fazendo uso de elementos externos a essa mesma prática, como, por exemplo, do conhecimento teórico (Schön, 1996, 1998; Usher & Bryant, 1992; Freire, 2001). Estaremos perante educadores críticos, que não se deixam aprisionar pela estreiteza de uma burocracia monolítica (Freire, 1993), estaremos perante a “práxis verdadeira”, que sendo reflexão e ação transformadora é igualmente origem de conhecimento consciente e criativo (Freire, 1975). Estaremos perante analistas simbólicos que, face a situações que precisam de ser alteradas, realizam um uso criativo de elementos externos à prática em articulação com os seus saberes, por forma a resolver tais situações. Isto exige capacidade de abstração, experimentação, visão sistémica da realidade e dos problemas e também capacidade de colaboração entre os elementos das equipas de trabalho (Reich, 1996).
Este tipo de trabalho, de aprendizagem e de construção e reconstrução do saber é importante para a educação de adultos que aqui se defende: a que contribui para a emancipação, para a mudança social, para a cidadania democrática (Freire, 1975, 2001; Lima, 2007), a que é capaz de articular global e local, discurso oficial e prática.
3.3. A TRANSFERÊNCIA DAS APRENDIZAGENS E DO SABER
Outra forma através da qual se aprende e constrói saber em local de trabalho é pela transferência das aprendizagens e do saber, pela sua circulação e coletivização. Tais processos estão, evidentemente, articulados com os da construção e reconstrução do saber e da aprendizagem a que acabámos de aludir.
Existem, nas equipas que estudámos, dois grandes tipos de transferências: as que ocorrem de fora para dentro do contexto de trabalho em análise e as que acontecem dentro do próprio local de trabalho: entre contextos e no contexto, portanto (Loureiro, 2005, 2009, 2010). Devemos esclarecer que pode ocorrer que numa situação concreta se assista a transferências do primeiro e do segundo tipo em simultâneo.
Entre o primeiro tipo de transferência existem diversas possibilidades de concretização. Uma das formas mais enunciada na literatura é a que se refere às que se realizam entre os conhecimentos adquiridos em contextos de formação académica ou de formação profissional e o mundo do trabalho (Caria, 2005; Caria et al., 2014; Eraut, 2004; Loureiro, 2009). Este é um processo complexo que pode passar por diferentes fases que vão da seleção desse conhecimento prévio, considerado relevante para a situação concreta para a qual se pretende transferir, à sua combinação com outros saberes entretanto adquiridos (Eraut, 2004).
Esta situação foi observada, por exemplo, através das transferências feitas das formações profissionais contínuas para o local de trabalho. Também é possível ver a mobilização de aprendizagens e saberes adquiridos noutros contextos de trabalho para o atual. São transferências e recontextualizações de saberes entre contextos de trabalho, em que as aprendizagens e “os saberes adquiridos anteriormente vão sendo accionados no novo contexto e, dessa forma, vão-se introduzindo no local novos saberes, que vão sendo apreendidos pelos restantes elementos da equipa” (Loureiro, 2010, p.109).
Outra possibilidade de transferência entre contextos é a que nos remete para o relacionamento interprofissões. Tal é visível quando, por exemplo, acontece um problema no local de trabalho e tem de se consultar alguém de outra profissão externo ao local para que a situação possa ser resolvida. Diga-se que este tipo de relacionamento também é observável dentro do próprio contexto de trabalho (Collin et al., 2015), por exemplo entre os técnicos de educação de adultos (mediadores, profissionais de reconhecimento e validação de competências) e os formadores (Loureiro, 2009).
No segundo grande tipo de transferências, aquelas que ocorrem no próprio contexto de trabalho, podemos distinguir duas formas de concretização, que se misturam muitas vezes: entre situações e entre pares.
Há dois grandes tipos de transferências entre situações. Aquelas que remetem os atores para situações semelhantes, e nestas alturas acontece: “a mobilização de aprendizagens e saberes prévios […] para situações presentes e, até, para se preverem situações futuras que se sabe que vão ocorrer”, por exemplo, quando se atua junto de “um formando, com base num procedimento efetuado no passado para se resolver uma situação semelhante” (Loureiro, 2020, p. 166).
Nestes casos estamos perante o que Frenay (1996) designa por transferências de baixa gama, que quase são realizadas de forma automática, assentes na memorização, na experiência-memória (Cornu, 2003).
Quando colocados perante situações diferentes, as transferências de aprendizagens e de saberes prévios dos atores não são, muitas vezes, suficientes, por isso “há que combinar esse reportório com a procura de novos saberes […] para ajudar a resolver a situação em causa” (Loureiro, 2020, p. 167). Estamos, nestes casos, face às transferências de alta gama, que requerem um nível de reflexão e abstração elevados (Frenay, 1996).
As transferências contextuais de aprendizagens e de saberes entre pares é dos processos mais ricos, mas também mais complexos, pois exige a explicitação do saber implícito de uns membros junto dos outros, que por sua vez têm que o integrar no seu saber para que o possam usar (Sallis & Jones, 2002). Esta é uma das principais fontes da aprendizagem e do saber e da sua coletivização nos locais de trabalho, assumindo importância significativa neste processo de transformação o recurso a metáforas e analogias feito pelos atores para conseguirem exteriorizar o seu saber tácito e, assim, tornarem possível que ele passe do plano tácito/individual para o plano explícito/coletivo (Loureiro, 2009).
Nos casos que estudámos foi possível observar a circulação de diversos tipos de saberes:
como seja o saber relacional (saber procurar quem detém a informação necessária para se agir), o saber dizer (saber explicitar o saber-fazer, ou seja, o que, como e quando fazer), o saber declarativo (saber explicitar-se o que é determinada coisa da acção: um instrumento de trabalho)” (Loureiro, 2010, p. 111).
As trocas de saberes realizam-se, na maior parte dos casos, dos atores mais experientes para os menos experientes e é, também assim, que se vai aprendendo o fazer e o saber associado. Todas estas formas de transferências dão conta da complexidade da circulação e coletivização do saber em local de trabalho.
Outros estudos efetuados no nosso país também identificaram processos semelhantes. Paulos (2015) chama a atenção para o relevo que os trabalhadores mais experientes assumem nos processos de heteroformação ocorridos entre profissionais de reconhecimento e validação de competências ou entre os formadores, através da explicitação que fazem do seu saber junto dos menos experientes. A autora chama ainda a atenção para a importância das trocas de informação entre pares em geral (Paulos, 2020). Guimarães (2016) refere-se à partilha de materiais ou aos processos de interpretação conjunta da prática, como uma forma de aprendizagem e construção do saber nos locais de trabalho. Esta maneira de trabalhar partilhada constitui-se como a base das comunidades de prática definidas por Lave e Wenger (1999) e identificadas em diversos estudos dedicados aos locais de trabalho como espaços de educação, aprendizagem e construção de saberes entre pares (Ha, 2008; Loureiro et al., 2019).
O destaque que aqui damos às aprendizagens coletivas não nega a existência de processos individuais de educação, de aprendizagem, de autoformação (Pineau, 1991), pelo contrário, estes são de grande importância nos locais de trabalho. O que normalmente ocorre em contextos de trabalho que fomentam a aprendizagem coletiva é que tais processos individuais se vão tornando comuns aos que do contexto fazem parte.
3.4. A DIMENSÃO TEMPORAL DA APRENDIZAGEM E DO SABER
O aprender e o saber estão intimamente relacionados com a dimensão temporal do fazer, pelo menos nos locais estudados. Tal manifesta-se de três formas. Em primeiro lugar, é, várias vezes, próximo ou na altura do fazer que se procura aprender o saber que permite realizar a tarefa. Este processo corta, altera os ritmos normais do trabalho (Sue, 2001). Estas são algumas das alturas em que se inicia o processo de explicitação de saberes implícitos.
A dimensão temporal está ainda presente porque há aprendizagens e saberes que perduram mais do que outros: “Quanto maior a duração temporal da realização de uma atividade, mais o saber associado a ela se incorpora, mais implícito se torna e acompanha o indivíduo durante mais tempo” (Loureiro, 2020, p.167).
Por fim, observou-se que as experiências mais significativas, positivas ou negativas, das quais resultaram aprendizagens e saberes, permanecem no tempo e com frequência são mobilizadas para pensar o presente e planificar situações futuras (Loureiro, 2010; Loureiro & Caria, 2013).
4. NOTA FINAL
Procurámos dar conta de algumas das características daqueles que trabalham na educação de adultos, enfatizando uma das mais marcantes, a inexistência generalizada de uma formação inicial e de conhecimentos prévios que os prepare para nele trabalharem. Daqui partimos para a pergunta: como realizam estes atores as aprendizagens e desenvolvem os saberes necessários para efetuarem as suas funções?
Ao assinalarmos as formas como os contextos de trabalho podem ser relevantes para tal processo de aprendizagem e de construção de saber, podemos dizer que uma parte significativa da resposta à pergunta feita está dada.
No entanto, isto não quer dizer que a situação esteja resolvida. Estamos bem longe de tal realidade, quer em Portugal, quer em muitos outros países. Por um lado, continua a não haver uma formação académica prévia e um conhecimento específico que seja exigido para quem trabalha na educação de adultos; por outro lado, todo o património de aprendizagem e saber que se vai construindo em determinados momentos a partir dos locais de trabalho, que assenta nos processos referidos anteriormente, ou a partir de outros espaços de formação, é destruído frequentemente.
Na nossa perspetiva, uma das maiores causas da falta de solidificação e sistematização das aprendizagens e dos saberes construídos por parte de:
quem trabalha neste campo da educação é o facto de não haver, pelo menos em Portugal, uma aposta política consistente no setor que permita que o que se vai a espaços edificando perdure e se possa transmitir aos que entram no campo. (Loureiro, 2020, p. 169)
Lima (2008), entre outros, tem alertado para este processo de descontinuidade da política educativa na educação de adultos. Guimarães e Barros (2015), ao referirem-se ao que se passou não há muito tempo em Portugal, ajudam a dar conta do processo de destruição referido:
Foi no contexto da nova política de educação e formação de adultos que novas profissões foram criadas. Estas abrangiam novas áreas de intervenção educativa e formativa. Este novo mercado de trabalho revelou-se atraente para recém-licenciados que, não tendo formação inicial específica, se empenharam num trabalho que foram descobrindo, umas vezes de modo mais fácil, outras enfrentando dúvidas e dificuldades. (…) Todavia, estes educadores de adultos nunca se reconheceram enquanto tal e gozaram de pouco reconhecimento social, dado que as políticas de educação de adultos foram marcadas neste país pela intermitência e descontinuidade. (p. 403)
Como referimos noutro momento:
Tal como a cultura de um povo (…), se ela não é transmitida a alguém, perde-se e deixa de haver identificação com tal património, deixa de haver identidade. O mesmo tem acontecido no campo da educação de adultos em Portugal: não há identidade porque o que se aprende, se sabe, se conhece em determinada altura, esse património que se constrói a espaços, não é passado a ninguém. Veja-se o que ocorreu bem recentemente no nosso país com o desinvestimento político no setor: perdeu-se uma parte significativa do património de saber construído por aqueles que, durante uma década, trabalharam no campo da educação de adultos. E perdeu-se simplesmente porque uma esmagadora maioria destes trabalhadores tiveram de procurar emprego noutros setores de atividade (Loureiro, 2020, pp. 169-170).
Esta realidade não é só nossa, verifica-se noutros contextos e desta forma é difícil defender que há profissionais da educação de adultos, é difícil falar da existência generalizada de um dos que seria um dos seus traços identitários mais marcantes: um conhecimento, um saber específico que os distinga. Assim, a identidade profissional dos que trabalham na educação de adultos continua a ser, em geral, muito ténue, e o processo de profissionalização de difícil edificação.
É verdade que existe uma retórica política na União Europeia em volta da profissionalização dos que trabalham na educação de adultos. No entanto, como defendem Zarifis e Papadimitriou (2014), tal retórica não busca os aspetos relevantes de profissionalização dos educadores de adultos de maneira realista. Essa retórica discute o “rótulo” da profissionalização e da profissão, mas não se preocupa com os processos que podem criar as condições para que os educadores de adultos se tornem profissionais. Tal retórica política está centrada nos resultados do processo de aprendizagem dos adultos e no desenvolvimento de competências profissionais que os educadores devem adquirir para garantir o que designam por qualidade da prática de educação de adultos, sem que, no entanto, se discuta verdadeiramente quais são essas competências e como podem ser identificadas na multiplicidade de ambientes de educação de adultos que existem (Zarifis & Papadimitriou, 2014, 2015).
Num documento recente produzido pela União Europeia (Jornal Oficial da União Europeia, 2021), que nos dá conta da Resolução do Conselho sobre uma nova agenda europeia para a educação de adultos 2021-2030, verificamos que a linha do discurso acerca da profissionalização dos educadores de adultos parece manter-se vaga e centrada na sua formação baseada nas competências. O Conselho da União Europeia alerta os Estados-Membros para a necessidade de “profissionalizar e reforçar as capacidades” dos que trabalham na educação de adultos, sendo que a “definição e a validação das competências-chave dos profissionais da educação de adultos podem constituir um valor acrescentado”, completando que a “profissionalização na educação de adultos é essencial para a qualidade da educação e da formação ministradas […] Os educadores e formadores de adultos deverão ser apoiados para oferecer um ensino e aprendizagem baseados nas competências, nomeadamente através de conselheiros” (Jornal Oficial da União Europeia, 2021, p.16).
Para nós não se trata apenas de discutir que competências são essas, pois não é a lógica das competências viradas para uma aprendizagem utilitarista e mercantil, que norteia grande parte do tal discurso político e, inclusive, influencia a própria formação dos que trabalham na educação de adultos, que deve estar na base da sua profissão e dos seus saberes, mas sim uma lógica assente na educação crítica, emancipatória, transformadora, participativa, cívica (Canário, 2021; Costa et al., 2021; Freire, 1975; Lima, 2012, 2021), que considera as experiências vivenciais dos adultos e promove a sua autonomia para continuarem a educar-se vida fora.
Assim, para além do desinvestimento a que é votada em diversos quadrantes geográficos, a educação de adultos enfrenta outro desafio: o de ser dominada pela lógica de uma retórica política que leva a que os que atuam neste setor baseiem, muitas vezes, a sua ação na racionalidade técnica, agindo como especialistas, como portadores de procedimentos específicos que usam na relação com os seus “clientes” de forma a, supostamente, resolverem os seus problemas. Aplicam certos métodos e práticas da educação de adultos como um instrumento, uma técnica racional que “resolve” os problemas dos adultos. Esta é a lógica que tem sido predominante em muitos setores da educação de adultos (Jansen, 1998). É esta lógica que faz com que muitos dos que trabalham neste campo se deixem “burocratizar”, se deixem “seduzir pelas tentações míticas”, entre as quais está a da “escravidão às técnicas” (Freire, 2001, p. 20).
Acontece que tal lógica é responsável por diversos desajustes porque não considera, muitas vezes, a cultura vital dos adultos, por isso não resolve os seus problemas. Ela não questiona o porquê da inserção de certos discursos e práticas na educação de adultos e o afastamento de outros(as), que tenham em conta as experiências contraditórias e multidimensionais dos educandos, que articulem o conhecimento científico e técnico com a construção de verdadeiras de biografias significativas dos adultos, com as suas experiências vitais, com o “humanismo”, partindo do modelo dialógico de educação (Freire, 2001, p. 22).
Esta é, para nós, a forma de pensar a educação de adultos, forma que se deve constituir como a base da profissão, da formação e do saber dos que atuam neste setor. É esta forma, que articula teoria e prática, reflexão e ação (praxis), conhecimento do trabalhador especializado - fundado cientificamente - e saber/cultura dos adultos, que permite o cumprimento do que deve ser o compromisso profissional social dos que aí laboram: o compromisso de contribuírem para a mudança individual e social dos adultos, para a implementação de uma educação que leva ao surgir de uma consciência crítica que permita a cidadania (Freire, 2001). O papel do educador de adultos deve assentar na praxis libertadora, autêntica e verdadeira (Freire, 1975).